Ontem, por volta de meio-dia, eu aguardava na faixa de pedestres para atravessar a Rua Barata Ribeiro, no cruzamento com Siqueira Campos. Quando o sinal fechou, os carros pararam à minha direita. Iniciei a travessia.
De repente, olhei para a esquerda: uma moto vinha em minha direção, pela contramão! Pânico - uma vaga impressão de perigo iminente. Um átimo de segundo depois, percebi que o veículo era, na verdade, uma bicicleta elétrica. Num infinitesimal intervalo de tempo - sem pensar muito bem, ou talvez pensando bem demais - tomei uma estranha decisão: em lugar de me esquivar, avancei com as mãos estendidas ao encontro da embicicletada besta. Num movimento (felizmente) certeiro fui capaz de agarrar a bicicleta pelo guidon, parando bruscamente o veículo. Senti aguda dor nas palmas das mãos e nos punhos, sugerindo que em situação menos vantajosa o impacto poderia ter provocado até uma fratura.. Felizmente fui mais rápido que o gato E o Quico - e não, eu não olhava para uma moça bem bonita.
Passado o perigo, a raiva - ainda com as mãos agarradas ao guidon, gritei alguns impropérios: "Tá maluco, seu babaca?!"... O ciclista, de 20 ou 22 anos, simplesmente riu - de desdém, nervoso, alívio... Vai saber! Larguei o guidon e ele partiu a toda, ainda na contramão, enquanto eu gritava mais um desaforo, vagamente homofóbicos ("Viado!"). Dois senhores que também esperavam para atravessar comentaram comigo sobre a falta de responsabilidade e respeito do não-tão-jovem ciclista.
Me acalmei de modo extraordinariamente rápido. Fiz uma breve oração pelo imprudente ciclista. Quando o sinal abriu novamente, atravessei a rua sem maiores incidentes e entrei na estação de metrô Siqueira Campos, onde o bilheteiro me deu um troco repleto de moedas de 10 e 5 centavos, se desculpando; sorri: "Moeda também é dinheiro". Retornaremos a isso.
Cerca de meia-hora mais tarde, já no Centro do Rio, relatava o caso a minha esposa durante o almoço, refletindo sobre nossos curiosos processos mentais. Em primeiro lugar, destaco a costumeira sensação de dilatação do tempo ante o perigo, em que tudo parece acontecer mais devagar, num outro ritmo, quase fora do próprio tempo.
Por outro lado, em um intervalo incomensuravelmente pequeno saltei da distração à máxima concentração. "Vi" uma moto, mas logo corrigi o equívoco; baseado nessa correção, tomei uma decisão inteiramente contraintuitiva e um tanto arriscada ("atacar" o veículo, e não fugir dele), cujos resultados se provaram satisfatórios, apesar da dor imediata. Tudo isso - visão, identificação, correção, deliberação, ação, dor - se passou de modo absolutamente consciente, sem emergir ao nível do raciocínio verbal em NENHUM momento. Sem recorrer à verbalização, agi com inteira racionalidade; a seguir, passado o perigo, me entreguei a uma explosão verbal inteiramente irracional, e mesmo preconceituosa. Mais curioso ainda, passei rapidamente desse estado de intensa irritação a uma profunda calma. Em tudo isso parecem perceptíveis as influências tanto de meu incipiente treinamento em Aikido e minhas recentes incursões no campo da meditação budista e da espiritualidade teresiana - disciplinas mentais que tendem a se tornar uma "segunda natureza", modificando reflexos e reações. Com efeito, se o episódio tivesse ocorrido dois anos ou mesmo alguns meses atrás, passaria uma semana resmungando irritado contra o ciclista barbeiro.
Terminado o momento introspectivo e o almoço, saímos pela Saara a fazer compras de material de artesanato. [Intervalo publicitário: bazar em dezembro.] Numa das lojas, a simpática senhora chinesa ao caixa, fluente em português, indagou se tinha troco para facilitar. Catei algumas moedas na minha carteira. "Essa moeda não vale", respondeu ela sorrindo, devolvendo uma enferrujada moeda de cobre. Não eram 5 centavos de real; eram 5 cêntimos de euro, cunhados na Espanha! Eu e minha esposa também rimos do equívoco. Logo deduzi que a moeda viera de algum turista distraído que pagar o metrô em Copacabana. A comerciante chinesa recomendou que a guardasse, para "dar sorte". De fato, a sorte chegara antes da moeda!
Como não lembrar de Dukheim, que usa a circulação de moeda como exemplo de um fato sociológico coercitivo? ...não se pode pagar na Saara com moeda europeia! No entanto, a distração abre brechas à coerção social, como pode acontecer numa movimentada estação de metrô ou num cruzamento de ruas. A moeda estrangeira passou em contrabando, assim como meu homofóbico xingamento, não-tão-estrangeiro, burlando a consciência através da desatenção ou da irritação. Dinheiro e ofensas são linguagens: fluem da sociedade para nós, e de nós de volta para o mundo. Às vezes, como lembrava Freud, lapsos podem acontecer... "Orai e vigiai", dizia Jesus.
De volta à rua, conversávamos sobre o incidente que reunira três continentes através de um turista, um bilheteiro e um passageiro distraídos e uma atenta comerciante chinesa da Saara, fluente em português e "dinheirês". Um ciclista imprudente, uma moeda "na contramão". Uma bicicleta tomada por moto, 5 cêntimos tomados por centavos. Duas infrações legais ocasionadas por equívoco e distração, sanadas pela concentração instantânea e pela rapidez de reação. Talvez, como eu, a comerciante tenha sido tomada, num primeiro instante, por uma vaga sensação de estranhamento, logo compreendida e finalmente verbalizada. Dois episódios curiosos passados em poucas horas, iluminando as fronteiras fluidas, ambíguas e efêmeras entre percepção, consciência e linguagens...
Acho que ando lendo Bergson demais.
P.S.: Há alguns meses um aluno meu respondia a um colega: "Viado não é xingamento; isso é homofobia". Preciso aprender mais com meus estudantes. Melhor, aliás, é não xingar ninguém...
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