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terça-feira, 26 de novembro de 2019

Gandhi era um misógino pervertido?

Volta e meia surgem acusações polêmicas, sensacionalistas e pouco fundamentadas em torno da interessantíssima figura de Mohandas Karamchand "Mahatma" Gandhi (1869-1848). Algumas delas são sobre racismo (tema que não será tratado aqui) e outras o qualificam como misógino, pervertido, abusador de mulheres em seus polêmicos "testes de castidade", praticante de violência doméstica, entre outras menções pouco edificantes. Os exemplares dessas correntes polêmicas são inúmeros, como essa superficial e tendenciosa resenha do autobiográfico Minha vida e minhas experiências com a verdade; ou esta sensacionalista matéria sobre o legado de misoginia deixado por Gandhi, que atormentaria ainda hoje as mulheres indianas; ou ainda esse texto que pinta Gandhi como um verdadeiro bicho-papão e circula na Internet há alguns anos, respondido por uma crítica interessante, mas que não dá conta de todo o assunto.

Curiosamente, a maior parte dos (supostos) "podres" de Gandhi foi exposta por ele mesmo em seus escritos públicos. De resto, muitas atitudes dele podem soar hipócritas para nós, ocidentais, mas possuem um contexto na mística Brahmacharya, que ele seguia. Existem muitos aspectos complexos, contraditórios e paradoxais na vida de Gandhi, e ele mesmo nunca fez questão de escondê-los, mas esses aspectos volta e meia são usados em polêmicas sensacionalistas e maniqueístas cujos objetivos são mais de difamar sua imagem e seus pensamentos que de compreender o homem Gandhi em toda sua fascinante complexidade. Estudo profundamente a trajetória de Gandhi há quase 20 anos e já li um bocado sobre o assunto; o presente texto é uma tentativa de alinhavar uma análise crítica, mas generosa, sobre o personagem.
Geralmente pensamos em Gandhi apenas a partir de sua queda de braço com o Império Britânico, mas ele também foi um profundo crítico da Índia de seu tempo - o que já dá muito que pensar. Foi a figura mais visível a combater o sistema de castas (isso não é pouca coisa), teve uma preocupação vital e visceral em garantir a integração dos párias à sociedade, foi um severo crítico da miséria em que a maior parte da população da Índia vivia, explorada pelas próprias elites indianas. 

Gandhi incomodou muita gente - britânicos e indianos, hindus e muçulmanos e por aí vai. Ele nunca foi uma unanimidade, mas provavelmente ele era a rainha no lado indiano do xadrez (para desagrado de muitos de seu próprio "lado"). 

Acho triste o modo como muita gente, por agendas ideológicas variadas ou por puro deleite iconoclasta, tenta diminuir e depreciar a figura de Gandhi. Mas isso faz parte do jogo de extremos com que sua figura foi historicamente construída: parece que só conseguimos pensar em Gandhi enquanto um santo imaculado ou o mais sórdido dos pecadores - ele mesmo, como escreveu muitas vezes, sabia que não era nem uma coisa, nem outra. O apelido de "Mahatma", "Grande Alma", o incomodava profundamente, por conhecer seus próprios defeitos.

Já em 1949 o célebre escritor Geroge Orwell publicou um hoje clássico texto sobre Gandhi, onde o tratava de maneira crítica, mas extremamente respeitosa e equilibrada. Ainda hoje, escrever sobre o pitoresco personagem indiano de maneira ponderada é uma tarefa difícil para historiadores e biógrafos.

Começando pelas acusações de violência doméstica, nunca vi nenhum biógrafo sério mencionando isso. Gandhi e Kasturba casaram muito cedo, num matrimônio arranjado. Ele tinha 13 anos e ela era ainda mais nova. Eles brigavam literalmente por causa de brinquedos (dizem). De qualquer forma, o próprio Gandhi, em seus escritos autobiográficos, sempre profundamente autocríticos, reconhece que era um marido imaturo e mesquinho nos primeiros anos de matrimônio. Em todo caso, a afirmação de que ele batia na esposa carece de fundamentos historiográficos, até onde vão meus conhecimentos.

Quanto à misoginia, vale lembrar que Gandhi sempre destacou a centralidade de sua mãe em sua formação moral e espiritual. Ela era uma mulher muito religiosa e devota, e deixou marcas indeléveis em sua personalidade nesse sentido. Ele tinha verdadeira veneração pela mãe, em sentido muito profundo. As palavras que escreveu sobre sua mãe dificilmente caracterizariam uma personalidade misógina. Em sentido mais amplo e genérico, em escritos públicos e privados, Gandhi falava sobre as mulheres de modo muito positivo, em sentidos inclusive espirituais. Ele considerava mesmo ter características de personalidade femininas muito desenvolvidas e afirmava que gostaria de reencarnar como mulher.

Por outro lado, a cultura hinduísta tinha (e ainda tem) posturas muito ambíguas acerca da mulher e de sua pureza, como salienta a antropóloga Mary Douglas. Cabe (ou cabia) à mulher, em grande medida, a preservação da pureza ritual de toda a família, em termos sexuais, alimentares, entre outros. Em grande medida isso estava ligado ao sistema de castas, cabendo à mulher preservar a família da contaminação de impurezas derivadas do contato com castas inferiores; esse importante papel, por outro lado, acarretava pesadas cobranças por parte da família e da sociedade, em diversos aspectos. É interessante notar aqui que Gandhi foi certamente o principal defensor, ao menos o mais visível e notório, da abolição legal do sistema de castas e isso provavelmente impactou direta e indiretamente na condição social e na vivência cotidiana das mulheres na Índia (mas aqui já estou conjecturando, nunca li nada explorando essa questão específica).

Ora, Ghandi foi educado numa cultura repleta de ambiguidades sobre a mulher e seus papeis sociais e, obviamente, algumas dessas ambiguidades se refletiriam em suas próprias posturas e atitudes pessoais. Para se ter uma ideia da complexidade do contexto em que ele nasceu e cresceu, oito anos antes de seu nascimento ainda se praticava a cremação de viúvas (vivas!) junto com seus falecidos maridos em algumas regiões da Índia. A lei permitindo um segundo casamento para viúvas datava de apenas 13 anos antes. 

Feitas todas as contas, o modo como ele se expressava acerca das mulheres era bastante "progressista" - se podemos dizer assim. Em tudo isso devemos ter sempre em mente que seus anos de formação universitária na Inglaterra e seu contato com a cultura ocidental tiveram grande importância para ele, um homem que viveu entre diversas encruzilhadas culturais e cujo pensamento e vida resultavam de uma complexa síntese entre todos esses díspares elementos. Durante seu período de estudante em terras britânicas Gandhi pôde conviver com o emergente movimento feminista.

Quanto aos polêmicos "testes de castidade" a  que o personagem se submeteu em alguns momentos de sua vida, é necessário destacar que o binômio sexualidade-castidade sempre foi complexo para Gandhi, devido a uma experiência traumática de sua juventude. 

Assim que casou (aos 13 anos, lembremos), o jovem Mohandas desenvolveu intensa compulsão sexual, um comportamento realmente obsessivo - conforme ele mesmo relata. Pouco tempo depois, seu pai caiu doente, em estado gravíssimo. Em certa noite ficou encarregado de tomar conta do pai acamado, mas no meio da madrugada sua compulsão sexual o assaltou de tal forma que, sentindo-se incapaz de resistir aos impulsos, foi para junto da jovem esposa para satisfazer seu desejo. Durante sua breve ausência, seu pai passou pela crise final e faleceu inteiramente sozinho, sem qualquer socorro. 

O jovem Gandhi, em seus 14 ou 15 anos de idade, naturalmente, se sentiu extremamente culpado, passando a partir daí a viver sua sexualidade de modo bastante conflituoso, lutando para obter controle sobre o impulso que o afastara do pai no leito de morte. Como hindu fervoroso que era, graças à influência materna, o caminho natural era que ele buscasse as respostas para sua incontinência sexual entre as possibilidades que a tradição hindu lhe oferecia - e, como se sabe, ao longo dos milênios, o hinduísmo desenvolveu diversas correntes ascéticas que, ainda hoje, exercem grande influência social.

Durante os anos seguintes, até a maturidade, Gandhi passou a desenvolver um rigoroso ascetismo alimentar - passou a simplificar cada vez mais sua alimentação (era vegetariano desde a infância), passando a evitar temperos e condimentos, reduzindo severamente sua ingestão diária de alimentos e praticando jejuns prolongados. Em certo momento, passando por uma crise depressiva, assumiu voto de silêncio, se abstendo de falar durante um dia inteiro por semana - hábito que manteve até o fim da vida. Finalmente, Gandhi fez votos de pobreza e se desfez de todos os seus bens materiais - segundo ele, as posses mundanas que mais dificultaram essa decisão foram seus preciosos livros, pois ele era dono de uma considerável biblioteca à qual se sentia muito apegado.

Um dos aspectos essenciais do ascetismo de Gandhi era ligado à noção de responsabilidade: o indivíduo precisava assumir as consequências de seus prazeres, fossem eles alimentares ou sexuais. Por exemplo, ele considerava uma atitude errada que uma pessoa se alimentasse excessivamente e depois tentasse escapar das consequências ingerindo medicamentos (nada de Engov!). 

Da mesma forma, sustentava que, estando a sexualidade diretamente ligada à procriação, o uso de métodos contraceptivos também seria uma forma de fugir das consequências da sexualidade. Vale notar que ele adotava essa conduta para si mesmo, mas não a impunha a ninguém como norma geral (embora não saibamos se sua esposa pensava da mesma forma). 

Devido a essa atitude, ele e Kasturba chegaram a ter muitos filhos (cerca de sete, se não me engano). A certa altura, ficou muito difícil equilibrar o sustento e o cuidado de uma família cada vez maior com uma vida pública que se tornava cada vez mais intensa. Para conciliar essas dificuldades, só lhe restavam duas opções: usar métodos contraceptivos (o que ia contra seus princípios) ou partir para a abstinência sexual integral (o que exigia controlar seus intensos impulsos genésicos). Sempre fiel a seus princípios, Gandhi ficou com a segunda opção, embora fosse certamente a mais difícil e a mais dolorosa para ele e para sua esposa. Muito se discute sobre essa decisão, afirmando-se que Gandhi a tomou unilateralmente, contra a vontade de Kasturba. Lendo e relendo seus escritos, não sei se é verdade; é fato que ele não enfatiza muito a participação da esposa nessa deliberação e não sei se existem registros mais precisos sobre a reação dela a essa decisão.

Mas a questão não se resume a esses aspectos pragmáticos, e fica ainda mais complexa. Em paralelo a toda essa trajetória, Gandhi, que desde criança sempre fora muito religioso e devoto, passou a desenvolver grande interesse pela experiência mística em sentido mais profundo. Durante muitos anos empreendeu intensas buscas existenciais, com leituras aprofundadas sobre Cristianismo, Islamismo, Teosofia, entre outros assuntos e vertentes religiosas. Os dois textos que desde esse momento se tornaram a base para sua vida pública e fundamento para suas concepções de Satyagraha e Ahimsa foram o Sermão do Monte e o Baghavad Gita

Durante esse período ele também se aproximou de diversos praticantes de correntes místicas do hinduísmo, com eles mantendo ativa correspondência. Resumindo muito, foi justamente a troca epistolar com um desses "gurus" (o qual, salienta Gandhi, era casado e não praticava abstinência sexual) que lhe despertou a ideia de que o amor matrimonial mais profundo exigiria abstinência sexual, à medida que a expectativa de retribuição e gratificação sexual emprestariam aos demais gestos de afeto, carinho e cuidado um viés interesseiro; apenas onde não houvesse expectativa de retribuição sexual o amor poderia ser plenamente espiritual e desinteressado - isso diz muito sobre como Gandhi vivenciava sua sexualidade, mas não vamos nos aprofundar nesse caminho.

Resumindo, seu trauma de juventude, sua situação familiar e suas experiências místicas acabaram conduzindo Gandhi, após muita hesitação, a fazer votos de "Brahmacharya". Normalmente traduzido como "castidade", Brahmacharya é uma noção muito antiga e passível de múltiplas interpretações e variadas práticas dentro do hinduísmo, do budismo e do jainismo. Não sou profundo entendedor do complexo assunto, e não me arrisco além dos meus limitados conhecimentos. 

Para todos os efeitos, em determinada altura da vida Gandhi se tornou um brahmachari. Os famosos e polêmicos "testes de castidade" aos quais Gandhi se submeteu em vários momentos de sua vida não eram uma maluquice ou uma esperteza tirada da sua cabeça; eles faziam parte de antigas práticas ligadas ao Brahmacharya, que já começavam a se tornar raras à época de Gandhi. 

Esses testes se davam com conhecimento público; Gandhi, como qualquer outro brahmachari, nunca os fez às escondidas, sorrateiramente. Como se sabe, o teste para o praticante da castidade consistia em passar uma noite inteira nu, deitado na companhia de uma ou mais mulheres nuas; durante essa prova, o praticante não deveria ter sequer uma ereção ou pensamentos "impuros". Vale ressaltar que as mulheres que participavam desse tipo de teste o faziam com pleno consentimento; algumas das que passaram por esse gênero de experiência com Gandhi eram casadas com amigos dele, inclusive. Enfim, me parece difícil caracterizar tal situação como "abuso sexual" ou algo semelhante.

Para nós, ocidentais, esse tipo de exercício místico pode soar como impostura ou hipocrisia, mas o fato é que existem inúmeras práticas similares, sempre com conotação sagrada, dentro do universo místico hinduísta; como bem discute Victor Turner, um dos maiores antropólogos do século XX, tais práticas "bizarras" fazem todo o sentido em seu universo cultural e religioso específico. 

Qualificar Gandhi como um pervertido aproveitador simplesmente por participar desse tipo de "teste", que não foi inventado por ele e fazia parte de um contexto cultural muito mais amplo é uma atitude etnocêntrica de nossa parte. Fato é que muitos de seus amigos e companheiros o criticaram por essas decisões e tentaram dissuadi-lo, temerosos das possíveis repercussões negativas que tais práticas poderiam atrair, arranhando a imagem de Gandhi e, por conseguinte, desacreditando o movimento político do qual fazia parte. 

Fosse como fosse, Gandhi seguiu em frente com essas práticas "exóticas", que acreditava serem necessárias a sua prática como brahmachari, sem se importar com suas eventuais consequências políticas. Tal postura, da parte de um homem que abandonou todas as suas posses materiais, que jamais hesitou em se deixar surrar violentamente sem reagir durante protestos, que passou vários anos de sua vida encarcerado e que enfrentou longos jejuns que o levaram à beira da morte pela causa da emancipação indiana, permite supor que esses "testes de castidade" eram para ele algo muito sério, um ato místico-religioso realizado com profunda sinceridade. Ao longo de sua vida ele ofereceu testemunhos muito concretos de sua seriedade diante da vida; Gandhi era o tipo de pessoa que botava seus bens, seu corpo e sua alma em jogo destemidamente.

Quanto aos resultados de tais "testes", segundo as mulheres que deles participavam, Gandhi teria conseguido se manter sexualmente impassível em todas as ocasiões. Podemos confiar no testemunho delas ou sentir-se-iam intimidadas a revelar a verdade pela projeção social do "Mahatma"? Impossível saber com absoluta certeza o que se passou efetivamente nessas noites misteriosas (que, por sinal, não foram muitas). De qualquer forma, o ônus da prova cabe a quem desconfia desses relatos - e não o contrário. Ainda que, hipoteticamente, em alguma dessas ocasiões Gandhi tenha eventualmente cedido a pensamentos "impuros", tido uma ereção ou mesmo chegado a manter intercurso sexual, ficaria provada apenas sua incapacidade de se manter impassível diante de tentações às quais a maioria dos homens sucumbiria - não significando necessariamente que ele teria agido de modo desonesto e astucioso desde o começo. 

Usar isso para desqualificar toda a trajetória de Gandhi me parece intelectualmente desonesto. Eu, particularmente, acredito que ele teria possibilidades muito mais simples de manter relações sexuais ou cometer adultério às escondidas, através de subterfúgios variados, que inventando uma elaboradíssima e arriscada desculpa místico-religiosa EM PÚBLICO. Me parece pouco verossímil imaginar um homem que se desfaz de todos os seus bens, se entrega à pobreza, entrega seu corpo aos golpes do inimigo, se deixa encarcerar para depois inventar pífias desculpas para se entregar, por umas poucas horas, aos prazeres da carne, sabendo as repercussões daninhas que isso poderia trazer à sua reputação e, ainda mais importante, à obra de toda uma vida de pungentes sacrifícios - uma obra que ele sabia ser muito maior que ele mesmo. 

Em suma, Gandhi é uma das personalidades mais complexas, paradoxais, desconcertantes e fascinantes do século XX. Quaisquer que fossem suas falhas e limitações enquanto ser humano, ele deixou um rico e importante legado de pensamento e ação para a humanidade, fundamentada numa criativa síntese de linhagens intelectuais e religiosas do mundo inteiro. O belíssimo Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos é um dos frutos nascidos de sua semeadura, como sempre destacou Martin Luther King. 

Gandhi é uma figura histórica que deveríamos avaliar com toda a generosidade, e não buscando encontrar (ou mesmo inventar) fissuras com as quais derrubar tudo que ele nos deixou.

Gandhi em um de seus inúmeros jejuns político-religiosos, com que tantas vezes desafiou as autoridades britânicas ou apaziguou os ânimos dos indianos excessivamente revoltados.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Ecos da Revolução Francesa

Lembranças do filósofo dinamarquês Henrik Steffens sobre a chegada em Copenhague das primeiras notícias da tomada da Bastilha, em Paris, em 1789.

Eu tinha dezesseis anos. Meu pai retorna ao lar fora de si; ele chama seus filhos: "Meus filhos, vocês têm sorte! - grita ele - Que dias felizes e brilhantes se levantam para vocês! Agora, se cada um de vocês não criar uma posição independente, reclamem apenas de si mesmos. Todas as barreiras do nascimento e da pobreza cairão; doravante, o último entre vocês poderá lutar contra o mais poderoso com armas iguais e no mesmo terreno!" Ele parou, vencido pela emoção, e se pôs a chorar por alguns instantes. Depois ele nos contou como a Bastilha fora tomada e as vítimas do despotismo libertadas. Não era apenas na França que uma revolução começava, era em toda a Europa. Ela deitava suas raízes em milhões de almas.

Folheto da época com gravura da tomada da Bastilha, acompanhada de narrativa e versos.

sábado, 16 de novembro de 2019

"There and back again"

"Deste modo, há povoadores que, por mais arraigados que estejam à terra, pretendem levar tudo para Portugal, porque tudo o que querem é para lá, e isto não vale apenas para os que de lá vieram como também para os que aqui nasceram, pois tanto uns quanto os outros aproveitavam a terra, não como senhores, senão como usufrutuários, e só para desfrutá-la, e por isso deixam-na destruída".
Frei Vicente Salvador

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Quem pode ser índio?

"O Estado [brasileiro] diz para o índio: se você é incapaz e vive na floresta, então eu protejo você; se você recebe educação e mora na cidade, então você se torna brasileiro, e não tem mais direito à sua cultura ou ao seu território".
Azelene Kangiang, socióloga indígena

Há muito mais índios entre o Oiapoque e o Chuí do que suspeitam nossos vãos preconceitos...

Jesus Andino

"É inconcebível que no século XXI, Deus ainda tenha que ser definido de acordo com padrões europeus... Nós pensamos que a vida de Jesus é a Grande Luz vinda de Inti Yaya (Luz Paternal e Maternal que sustenta todos nós), cujo objetivo é deter qualquer coisa que não nos deixe viver em justiça e fraternidade entre seres humanos e em harmonia com a Mãe Natureza... O papa devia notar que nossas religiões NUNCA MORRERAM, nós aprendemos como fundir nossas crenças e símbolos com aqueles de nossos invasores e opressores".
Humberto Cholango - Em documento endereçado a Bento XVI pela Confederação dos Povos de Nacionalidade Kichwa do Equador (Maio de 2007)

Clarinero nas celebrações de Corpus Christi (Cajamarca, 2019)

Comemorações de Corpus Christi (Cusco, 2019)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Torcida

Há gente que há de torcer para o caçador, assistindo "Bambi"...

E para o trooper, assistindo Star Wars...

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Abolição como Apocalipse

"A instituição da escravidão é o maior interesse material do mundo. Seu trabalho fornece os produtos que, de longe, constituem as maiores e mais importantes porções do comércio da Terra. Esses produtos são peculiares aos climas próximos das regiões tropicais, e por uma imperiosa lei da natureza, apenas a raça negra pode suportar a exposição ao sol tropical. Esses produtos se tornaram necessidades do mundo, e ferir a escravidão é ferir o comércio e a civilização".
Declaração de Secessão do Estado do Mississipi, 1861


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Pensadores e ideólogos

A diferença entre o pensador e o ideólogo é que o pensador busca humildemente a verdade, enquanto o ideólogo busca apenas convencer terceiros sobre a inquestionável verdade que ele supõe possuir. O pensador procura assenhorear-se de si mesmo, enquanto o ideólogo deseja apenas dominar a consciência alheia. Um cultiva reflexões laboriosamente, enquanto o outro fabrica sofismas compulsivamente. O primeiro almeja a liberdade intelectual, enquanto o outro visa apenas os servis aplausos de sua própria claque. O pensador fala ao mundo e às eras, mas o ideólogo prega apenas para sua tribo. É por isso que o genuíno pensador transpõe limites, enquanto o ideólogo ergue barreiras.

Seu Madruga, um dos maiores pensadores do século XX

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

"Coringa" - Breves impressões

Como ando muito ocupado me falta tempo para um comentário de fôlego acerca do novo e brilhante "Coringa"; deixo aqui breves notas, aguardando tempo para escrever algo mais aprofundado.

AVISO: CONTÉM SPOILERS

- Gostei e não gostei do filme. Achei impecável enquanto arte cinematográfica e Joaquín Phoenix atua com virtuosismo, mas não consigo ver o Coringa ali. É um personagem parecido com o Coringa, que se chama Coringa, mas não é o Coringa (um tanto como os sucos do Chaves). O personagem não tem agência, sua postura é notavelmente passiva, ele só reage ao que acontece - me parece que isso descaracteriza demais o Coringa, mesmo se tratando de um filme "de origem".

-Tendo a discordar das análises muito "politizadas" do filme. A obra tem dimensões de crítica social e política, mas me parece muito mais complexa que isso. O próprio Coringa afirma mais de uma vez que não liga para política - esse dado não é irrelevante, pois os atos do Coringa não se querem políticos; os demais personagens é que se apropriam politicamente desses atos, em apoio ou oposição. Creio que o mesmo vale para as apropriações do público sobre a mensagem da obra cinematográfica. Acho que o filme atira para todos os lados, e não consigo ver sua mensagem como propriamente "esquerdista" ou "direitista". Thomas Wayne e os ricos decerto são apresentados de maneira antipática, mas olhando com atenção, os "movimentos sociais" da ficção - inspirados por um múltiplo assassinato e compostos por uma multidão acéfala sob o absurdo slogan "kill the rich" - não me parecem tampouco enaltecidos pela direção do filme. De resto, a película adota uma estética visual formalmente realista, mas a narrativa joga com muitas camadas de delírio (o duplo delírio do Coringa e de sua mãe), o que confere a todo o resto certo caráter emblemático ou alegórico, mais conotativo que denotativo, por assim dizer. As críticas sociais e políticas do filme são apresentadas com grande sutileza e é com igual sutileza que precisam ser interpretadas.

-Eu diria que o tema central da obra é, sobretudo, loucura versus "normalidade". O Coringa é um doente numa sociedade doente, cuja aparente "normalidade" é, em verdade, doentia. O descaso das autoridades e das elites para com os cidadãos de Gotham é patológico.  Os "movimentos sociais", tal como retratados, também são doentes e parte da patologia coletiva - são loucura inspirada por um louco.

-No começo do filme, "Arthur Fleck" não é vítima dos ricos, mas de uma gangue de garotos latinos, levando um sujeito "normal" a oferecer uma arma a um paciente psiquiátrico para ele "se defender"; depois que as coisas dão errado, esse mesmo sujeito "normal" simplesmente lava as mãos, como se não tivesse qualquer responsabilidade.A obra retrata uma sociedade profundamente adoecida,  conflagrada. Coringa reflete essa doença e a sociedade reflete a doença do Coringa, num jogo de espelhamentos.

-Achei fantástico o uso do lixo como alegoria, aludindo às grandes greves de lixeiros dos EUA nos anos 70 e 80. A sociedade não consegue lidar com seu próprio lixo - material e moral - e os ratos proliferam. Ratos como o Coringa, Thomas Wayne ou os manifestantes-palhaços. Por fim, a discreta alusão humorística do apresentador Murray Franklin à necessidade de "super-gatos" para combater a infestação de ratos me parece um interessante comentário metalinguístico sobre o próprio gênero ficcional de super-heróis.

-O passado da família Wayne é objeto de constantes, sensacionalistas e desnecessárias revisões nos quadrinhos. No caso específico do filme, não gostei da ideia de retratar o assassinato de Thomas e Martha Wayne como um crime político - o que retira ou perverte boa parte do significado da futura cruzada de Bruce Wayne contra o crime. Enfim, o assassinato dos Wayne como ato político esvazia completamente a figura do Batman. Não gosto da versão de Tim Burton, em que os Wayne são assassinados por um jovem "Jack Napier", futuro Coringa, mas ao menos faz mais sentido; Napier seria apenas um assaltante de rua.

-Um detalhe me pareceu espetacular, de uma deliciosa ironia: a versão de Zorro que os Wayne assistem antes do assassinato é justamente "Zorro - The Gay Blade"... remetendo (conscientemente ou não) às paranoias do Dr. Frederick Wertham sobre os quadrinhos e à persistente brincadeira popular sobre a sexualidade de Batman e Robin.

-Achei o filme muito pesado e tenho experiências e relatos de que fez muito mal a alguns pacientes psiquiátricos. Me parece um tanto leviano produzir uma obra com tintas tão carregadas para um público de milhões de espectadores. Obviamente não quero aqui advogar qualquer tipo de censura ou sequer autocensura, mas concordo com João Caetano quando dizia que o artista deve ter certo comedimento ao manipular as emoções do público. A arte pode tanger fibras muito sutis da alma humana e isso exige algum tipo de responsabilidade.