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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Demonologia escolar

Ontem passei por uma das situações mais insólitas de minha carreira docente: uma turma de sexto ano tendo um ataque histérico por medo do Diabo!

Um dos alunos (que, como soube depois, se encontra em avaliação psiquiátrica) teve uma rusga com um colega de comportamento "exuberante", que volta e meia se envolve em confusões com os colegas. Chamei os dois para  conversar fora de sala de aula e achei que a situação estivesse resolvida; ledo engano. 

Retornando à sala, o menino que se encontra em avaliação médica se pôs a escrivinhar no caderno. Subitamente se iniciou um tumulto em torno da carteira do rapaz, cercado por vários colegas apavorados - ele escrevia os nomes de diversos deles e desenhava "símbolos do Diabo". Vários alunos gritavam que iriam morrer, outros tentavam ver se seus nomes haviam sido registrados no "caderno diabólico". Eu tentava, em vão, acalmar os ânimos. 

O menino "endiabrado" começou a fazer cruzes com os dedos, que brandia na direção dos colegas, enquanto declamava em tom monocórdico "Fulano vai morrer... Beltrano vai morrer..." Os colegas em pânico me pediam para fazer alguma coisa (e tenho cara de exorcista?), enquanto eu tentava segurar o riso diante diante de tanta sandice - sem muito sucesso, temo dizer. 

Saí em busca da coordenadora pedagógica, que retirou o aluno do meio do tumulto e me explicou que o mesmo se encontra em tratamento médico. Aproveitando o ensejo, tentei conversar com a turma, pedindo que fossem compreensivos com o colega - em vão: estavam todos amedrontados e revoltados. Pedi a eles que se acalmassem, afirmando que o caderno do colega era apenas um caderno e nada aconteceria com eles. Resvalando no terreno teológico, cometi o deslize de dizer que "o Diabo nem existe", no que fui calorosamente refutado por diversos estudantes. Um deles chegou a argumentar que, em se cavando muito fundo, há de se sentir a "quentura" do Inferno - um argumento com base empírica, portanto... Outro insistia sobre a eficácia da "macumba" do colega, que poderia, sim, levá-los à morte! Como já se fazia tarde, liberei a turma com o compromisso, não muito sólido, de deixar em paz o colega. 

Como se não bastasse, após a saída, a coordenadora e eu conversamos com a mãe do estudante "encapetado", que fora buscá-lo e aos irmãos. A responsável se mostrou muito solícita e nos explicou sobre os problemas de ansiedade do menino. Ficou também esclarecido que o "caderno satânico" era inspirado na animação japonesa "Death Note", cuja trama gira em torno de um caderno sobrenatural que provoca a morte de todos que tiverem seus nomes registrados naquelas páginas.

O "causo" dá o que pensar. 

A situação me fez imediatamente pensar no quanto o discurso "demonológico" de figuras como a atual senadora Damares Alves encontra profunda ressonância na cultura popular brasileira, lembrando que os séculos passam, mas o Diabo ainda faz a festa na Terra de Santa Cruz - com todos os desdobramentos sociais e políticos que isso ocasiona. A recente moda dos padres exorcistas que arrastam multidões para igrejas parece bem menos espantosa quando se percebe o quanto a figura do Diabo e sua capacidade de provocar malefícios permanecem, ainda e sempre, presentes como forças aterradoras capazes de induzir pânico mesmo em estudantes cariocas que vivem em áreas conflagradas.

Por outro lado, fica também patente a vitalidade do Diabo no imaginário ocidental, capaz de encarnar tanto o Mal para os cristãos como de incorporar o medo da "macumba" afro-brasileira, salpicado ainda pela cultura pop nipônica. Como salientava o historiador Robert Muchembled, o Diabo é figura que atravessa os séculos sofrendo inúmeras metamorfoses, sempre atual porque sempre cambiante, remetendo à figura jocosa, espalhafatosa e compósita do arcano do Diabo no Tarot de Marselha. Sempre híbrido, isto-e-também-aquilo, o Diabo evoca um jogo de ecos e reflexos entre diferentes épocas, lugares e culturas - mesmo a animação "Death Note" nos devolve um imaginário diabólico cristão reinventado através do encontro com a cultura japonesa.

Not least, os acontecimentos deixam a certeza de que "jamais fomos modernos", como provoca Bruno Latour. O projeto da modernidade iluminista de uma sociedade pautada pela razão vitoriosa sobre as trevas da superstição permanece obra fadada à incompletude. Que diria Voltaire ao constatar que o Diabo ainda faz tremer jovens do século XXI, apesar de seus smartphones e tantas outras bugigangas proporcionadas pela Revolução Industrial?

Não há inteligência artificial que algo assim...

O Diabo é Pop: Klarion, o Menino Bruxo e o demônio Etrigan em episódio da saudosa série animada de Batman, no fim dos anos 90