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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Ordem e caos

Algumas notas caoticamente ordenadas: 

-o caos faz parte da existência: não deve ser temido, mas aceito

-aquilo que parece caos muitas vezes é apenas uma ordem que não conseguimos compreender. Um cadáver em decomposição pode parecer desordem, mas a decomposição em si já é um tipo de ordem, inscrita na natureza desde tempos imemoriais.

-de si mesma, a ordem é neutra, apenas uma determinada disposição de coisas mutuamente relacionadas de determinada maneira. A ordem pode, muitas vezes, ser perversa e perversora. Escravidão, inquisição, nazismo, stalinismo não apenas eram ordenados, mas muito ordenados. A mera ordem não exclui a barbárie, e pode mesmo dar à barbárie um poder que o caos jamais lhe daria. Uma horda caótica costuma ser menos perigosa que um Estado genocida. O crime ORGANIZADO é, basicamente, um tipo de ordem.

-é fácil, demasiadamente fácil, perverter a ordem onde ela existe. Quanto mais rígida for essa ordem e mais dependentes dela forem seus integrantes, mais fácil se torna perverte-la. Quanto mais fortemente centralizada for a ordem, mais facilmente pervertida ela pode ser por aquele que venha a ocupar seu centro. Todo tirano almeja ser o centro de alguma ordem.

-é extraordinariamente fácil criar algum tipo de ordem social: basta certa truculência direcionada pela volúpia; tal gênero de ordem se baseia amplamente na heteronomia, secundada pela latente ameaça de coerção brutal; por outro lado, construir uma ordem fundamentada na autonomia de seus participantes exige laborioso cultivo de virtudes difíceis de compreender, adquirir e manter.

-toda ordem tirânica depende simbioticamente do caos, real ou fantasiado, para se manter; precisa ter ou inventar inimigos externos e internos que personifiquem o caos, tornando assim defensável e tolerável a própria ordem tirânica

-a ordem pode ser uma ilusão perigosa. Quanto mais complexas e, portanto, ordenadas, as coisas parecem, maior é sua fragilidade potencial. A estabilidade de um sistema qualquer costuma ser inversamente proporcional a sua aparência de solidez.



terça-feira, 28 de setembro de 2021

Eu, meu vizinho e o resto do Brasil

Meu vizinho de frente tem uma visão de mundo quase diametralmente oposta à minha. Nossos apartamentos, separados por menos de dois metros de corredor e com planta especular são quase como dois países diferentes.

Nosso convívio é distante e superficial, mas respeitoso e amável. Jamais tivemos qualquer tipo de altercação. Avalio, inclusive, que ele realizou uma excelente gestão como síndico, alguns anos atrás.  Em certa ocasião, nos unimos e mobilizamos para ajudar um terceiro vizinho que sofrera um acidente doméstico. Em um dos momentos mais dolorosos de minha vida, ele mobilizou membros de sua paróquia para orar por minha esposa e eu.

Somos pessoas muito diferentes, mas não inimigos. A bem dizer, no que tange ao nosso condomínio,  nossos pontos de vista tendem a convergir.

Afinal de contas, somos diferentes, mas não fundalmentalmente diferentes. No fundo, queremos ambos paz, sossego e prosperidade para nossas respectivas famílias. Um teto sobre a cabeça, emprego, comida na mesa, segurança em nossas ruas - em suma, condições dignas de viver. Nossas divergências, a bem dizer, se situam mais acerca dos meios que dos fins.

O mundo ideal para mim certamente seria um inferno para ele - e vice-versa. Mas o mundo não precisa - e nunca será - o ideal para nenhum de nós. Nenhum. Nem para mim, nem para meu vizinho, nem para todo o povo brasilero, muito menos para toda espécie humana. 

Todavia, dentro de nossas divergências, quero crer que nós dois, como todo o povo brasileiro, como toda a humanidade, precisamos abrir mão de nossos mundinhos idealizados e pisar firme no chão do mundo real.

Precisamos nos unir para construir o melhor Brasil POSSÍVEL. Um país minimamente aceitável para todos nós. Um Brasil possível, não um Brasil ideal. Um Brasil onde nossas famílias possam ter paz, sossego e prosperidade, como tanto almejamos. 

A política democrática, "arte do possível", deveria viabilizar isso. Mas, para tanto, é essencial que eu veja meu vizinho como concidadão, não como inimigo. Precisamos reconhecer e aceitar nossas divergências para buscar pacificamente e serenamente nossos pontos de convergência. 

E é exatamente o oposto disso que nós, brasileiros, temos feito ao longo dos últimos anos. Afinal de contas, é muito mais fácil, simples e emocionalmente confortável rotularmos uns aos outros e rompermos todas linhas possíveis de diálogo. Costuma ser mais fácil erguer muralhas no terreno aparentemente sólido de nossas certezas individuais que construir pontes sobre a água, sempre movente, imprevisível, traiçoeira. A solidez, ainda que aparente, nos traz conforto; a fluidez, impetuosa, incontrolável, nos deixa apreensivos, incertos de nós mesmos. 

É necessária boa dose de coragem moral para abrirmos nossas mentes e dialogar. Mas é imperativo abandonar nossas armas e couraças para isso. E cabe a mim a iniciativa de abandonar minhas defesas, se eu quero sinceramente que meu vizinho também abandone as suas. Cabe a cada um de nós romper o círculo vicioso de ofensas e retaliações que tem envenenado o ambiente político de nosso país.

Nenhum de nós é perfeito. Cada um de nós, em alguma medida é responsável pelo cultivo de animosidades e antagonismos que nos trouxe a essa situação insuportável. Cada a um de nós, a seu modo muito peculiar, é parte do problema. Precisamos refletir sobre nós mesmos e mudar algumas de nossas atitudes para que nos tornemos parte da solução. "O Inferno são os outros", mas todos nós somos o outro de alguém. 

Se há nobreza em acreditarmos em nossos ideais, há ainda maior nobreza (e realismo) em compreender que precisamos abrir mão de parte deles para construir uma sociedade um pouco melhor. Um pouco melhor para mim, mas também para meu vizinho. Às vezes, é melhor ser gentil que "vencer" um debate à custa da gentileza. Se a única maneira que encontro para afirmar meu ponto de vista é hostilizando o outro, minha causa já está perdida, pois a hostilidade fecha ouvidos, corações e mentes.

Palavras virulentas e discursos apaixonados são ótimos para políticos que buscam votos a qualquer custo, mas são péssimos para nossas relações cotidianas. E é justamente nas esferas de convívio cotidiano que podemos e precisamos cultivar o diálogo saudável, sem o qual a democracia definha e se desfigura, tomando ares de uma guerra mental que a cada dia nos desgasta emocionalmente e intoxica nossa existência. 

Queremos todos viver em paz com nossos vizinhos - e todo mundo é vizinho de alguém. 



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O declínio de Cosme e Damião?

Tendo a pensar que a distribuição de doces de Cosme e Damião pode se extinguir, pelo próprio desinteresse dos católicos. 

Em minha família, todos que ofereciam doce já morreram ou, pela idade, não distribuem mais. Os católicos mais jovens não se interessam pela prática - o próprio hábito da promessa, em sentido geral, parece estar desaparecendo do catolicismo popular. Em certo sentido, a dinâmica psicológica subjacente à promessa tem migrado do catolicismo para o neopentecostalismo, embora sob expressões religiosas distintas, desta vez de inspiração veterotestamentária ("jejum de Daniel", vigílias, "subir o monte", entre outras). 

De todo modo, puxando pela memória, no meu círculo familiar havia seis pessoas ou casais que distribuíam doces. Desses, quatro morreram e duas não o fazem mais - de seis para zero. Uma mudança quantitativa drástica que,  penso eu, reflete um quadro social mais amplo. 

Avanço a hipótese de que, hoje, a prática ainda se mantém viva sobretudo entre praticantes de religiões afrobrasileiras - afinal de contas, a festa sempre teve forte conotação "afrocatólica".

Vale ainda lembrar que a própria festa sofreu muitas transformações ao longo do século XX, ao menos nos subúrbios cariocas. As mesas de doces nas residências particulares momentaneamente abertas para estranhos gradativamente perdeu espaço para os saquinhos de doces embalados para viagem e os próprios doces caseiros foram sendo substituídos por guloseimas industrializadas, normalmente adquiridas em comércio atacadista. Os banquetes comunitários também foram se tornando menos comuns, de certo modo "migrando" para as feijoadas de São Jorge. 

Curiosamente, a devoção por Ogum-São Jorge tem crescido nas últimas décadas, enquanto a festa de Cosme e Damião parece minguar.

Mudanças culturais entre gerações, o ritmo cada vez mais acelerado da vida urbana, permutas simbólicas no campo da própria religiosidade, tudo parece contribuir para o deslocamento da Festa de Cosme e Damião enquanto prática social - ainda que não necessariamente à sua extinção. 

Em certo sentido me lembra as reflexões de Peter Burke sobre o "triunfo da quaresma" na Idade Moderna; a religiosidade e a cultura popular sempre se transformam, às vezes drasticamente, em períodos de intensas mudanças sociais. 

Damião, Cosme e Doces

Observações do historiador Fred Oliveira

Hoje, aqui pelo Rio, devido à recusa e grosseria de algumas pessoas (geralmente evangélicas), as pessoas (geralmente católicas) que distribuem doces de Cosme e Damião chegam cada vez mais acanhadas para perguntar se alguém teria interesse em receber um saquinho de guloseimas... 

Até os anos 90 a data ainda produzia um alvoroço, se distribuindo doces e sorrisos entre todos. Era uma felicidade, e mesmo quem não queria (por crença ou gosto diferente) não demonstrava desagrado, levando numa boa, mesmo sem aceitar o doce oferecido, a farra daquela festiva e popular tradição. 

Porém de lá pra cá algo mudou na nossa sociabilidade... 

Atualmente (e já vi ocorrer) algumas pessoas fazem questão de reclamar do oferecimento do pacotinho de doces e outros mesmo falam contra aquela fé... Infelizmente católicos também tratam evangélicos de modo desrespeitoso em relação a outras questões. 

Por causa dessa luta de vetos, ainda se diluirão muitas práticas do costume!



sábado, 25 de setembro de 2021

Sobre a "ocupação" da BOVESPA pelo MTST

Essa semana o MTST "ocupou" a BOVESPA em protesto contra o desemprego, a carestia, a miséria e as profundas desigualdades sociais no Brasil. Segundo as lideranças do movimento, seria uma maneira de fazer ouvir a voz do povo no maior reduto de especuladores financeiros e rentistas no Brasil. Houve quem saudasse o acontecimento como a irrupção do "Brasil Real" na fortaleza da alta finança - óbvio exagero triunfalista.

Não sou contra o protesto, em si, mas não sei se o timing foi bom. Justamente em um momento em que várias entidades ligadas ao mercado estão se manifestando pela democracia e contra Bolsonaro, acho que não foi o instante mais oportuno. Prioridades precisam ser pensadas de acordo com as circunstâncias. Cultivar antagonismos nunca é bom e, em um contexto de acentuada tensão social, pouco contribui para a superação da crise que vivemos. 

Qualquer ação pública precisa ser pensada em termos do impacto intentado. Atos que pregam aos convertidos e geram ruído para com os que estão "de fora" só agravam o isolamento político da esquerda em um momento em que se faz essencial construir pontes.

Há que se levar em conta que vivemos em um país de mentalidade muito conservadora (mais no sentido social que político) e há muita gente apavorada com o "bicho-papão" do comunismo. Não faltou quem, nas redes sociais, identificasse o MTST como "braço terrorista" (sic) do PSOL. 

Vivemos em uma sociedade em que políticos de extrema-direita podem vociferar as piores grosserias e barbaridades sem causar grande comoção, mas em que um protesto pacífico por parte da esquerda logo ganha ares de "ato terrorista". Essa falta de critério - ou melhor, esse critério distorcido - é certamente lamentável, mas é um dado cultural de nossa sociedade com o qual se faz necessário lidar com ponderação e sobriedade.

Esse tipo de protesto satisfaz certo público de esquerda, mas não contribui para um diálogo mais amplo com outros setores da sociedade brasileira - setores muitas vezes desdenhados como "pobre de direita", "classe mérdia" e por aí vai. 

É o eterno problema de boa parte da esquerda brasileira, que se preocupa mais com a perpetuação de uma estética supostamente revolucionária que com a viabilização de programas políticos.

Guilherme Boulos, liderança mais destacada do MTST, me parece um sujeito bem-intencionado, bem articulado, mas muito dado a exageros retóricos que me soam contraproducentes. Alguém que chegou ao segundo turno nas eleições para prefeito da maior cidade do Hemisfério Sul precisa ser mais cuidadoso em suas estratégias de comunicação com o público. Para bem ou para mal, Boulos conquistou uma posição de grande visibilidade na política nacional, e é de se esperar que adquira mais sagacidade política do que tem demonstrado até agora. 

A esquerda brasileira, definitivamente, precisa abandonar a mentalidade de DCE para encontrar meios mais amplos de diálogo com a sociedade brasileira, em toda sua complexidade. O Brasil não se reduz a hashtags e slogans.

Cada vez que alguém usa o termo "burguesia" morre uma fada...



sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Monstruosos moralismos

Eis agora um paladino da moral e dos bons costumes que estupra a neta - depois de outra que matou o próprio marido e um terceiro que espancou uma criança até a morte. "Tutti buona gente".

A pretexto de salvar a "família tradicional brasileira", combater "a roubalheira do PT" e deter "a ameaça comunista", colocamos no poder sociopatas hipócritas da pior índole possível - afinal de contas, "happiness is a warm gun".

Me sinto cada vez mais desgostoso e enojado dessa sociedade cínica, ignorante, grotesca, fanfarrona, delirante, idólatra, fanática e farisaica, "temente a Deus", mas abraçada com o que há de mais diabólico e sinistro - "dragões vomitados do Inferno", para citar os versos de Anchieta.

A caixa de Pandora está aberta e seus horrores não param de sair. O fundo do poço é a última esperança - se fundo houver. 

O cinismo por aqui é tamanho que Medusa admira orgulhosa seu próprio reflexo, moralmente incapaz do pudor da petrificação.



quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Para que servem as estatísticas?

O texto abaixo resulta de uma discussão virtual acerca das supostas tendências ideológicas e preferências políticas dos professores de Humanidades, mas trata mais amplamente da importância das estatísticas (bem como de seus limites) para a compreensão de fenômenos sociais em macroescala. Como estou longe de ser um especialista no assunto, espero que os leitotes tenham isso em mente - e, caso possivel, me sinalizem equívocos implorando por correção. Vale ressaltar ainda que, por se tratar de adaptação de conversa informal, há algumas digressões um tanto pitorescas; o mesmo vale para o uso excessivo da primeira pessoa.


A realidade é opaca para qualquer um de nós. Todos trabalhamos com percepções impressionistas de onde olhamos a realidade. Nenhum ser humano é capaz de ter uma perspectiva total da realidade, como salientava Leibniz (co-criador do Cálculo "newtoniano").


Qualquer espaço amostral é suscetível a falhas, por maior que seja. Isso vale tanto para pesquisas de opinião quanto experimentos de laboratório. É por isso que pesquisadores de ciências naturais geralmente realizam milhares e milhares de vezes o mesmo experimento e, mesmo assim, surgem os famosos "pontos fora da curva", que geralmente correspondem a ocasiões em que algo "deu errado" - uma distração do experimentador, uma falha boba na aparelhagem etc. Um experimento realizado apenas 100 ou 200 vezes tem margem de erro astronômica.


Outro detalhe importante é a POSSIBILIDADE de repetir experimentos, como salientava o hoje pouco lembrado Jean Piaget. Há muitos ramos das ciências naturais que não têm como repetir experimentos. É o caso da meteorologia, da astronomia, astrofísica, etologia etc etc etc. São ciências de observação. Um exemplo: quem estuda predadores em ambiente natural tem raras oportunidades de presenciar um "evento de predação". O que se faz, geralmente, é localizar carcaças de presas, pegadas frescas que indiquem uma perseguição recente (que muitas vezes não resulta em abate), ou fezes do predador - onde se encontram pelos, penas ou indícios microscópicos que permitam identificar quem-comeu-o-que-e-quanto. Obviamente precisa-se de milhares de amostras fecais para ter um panorama acurado da coisa. Da mesma forma, há efemérides astronômicas comuns, frequentes e até previsíveis e outras raríssimas, como supernovas (lembrando que só "vemos" supernovas milhares de anos depois que elas ocorreram).


O mesmo se aplica a fenômenos sociais. Há aqueles corriqueiros e REGISTRADOS, como nascimentos, óbitos, casamentos, divórcios, campeonatos esportivos, eleições e outros relativamente raros, como revoluções, golpes de estado etc.


Mesmo fenômenos comuns são difíceis de analisar. Por exemplo, hoje, na Europa e nas Américas, em média, a duração dos casamentos tem se mantido num patamar inferior a 10 anos. Daí podemos inferir que os casamentos estão cada vez mais curtos - mas apenas na média. Digamos, por exemplo, que um país tenha uma média corrente de 5 anos. Isso não significa que a maioria dos casamentos dura 5 anos; significa que a maioria dura bem menos. Para um casamento de dez anos, há cinco de dois anos; para um de 20 anos, há outros 20 de apenas um; para um de 40, há 80 de seis meses. Ou seja, a média nos induz a uma conclusão tremendamente equivocada. A maioria dos casamentos dura bem menos que 5 anos; uma minoria fica bem acima dos 5. Na prática, a média corresponde a uns poucos casos reais que ficam acima da maioria e muito abaixo de uma minoria.


Isso nos leva à questão da modelagem estatística. O método mais comumente empregado é a um tanto grosseira estatística gaussiana, baseada literalmente em arremessos aleatórios de moedas (foi o modelo adotado por seu criador, Gauss, no século XVII). Aperfeiçoamentos foram surgindo nos séculos seguintes, majoritariamente baseados em jogos de azar - rolamento de dados, embaralhamento de cartas, lances de roleta etc. Diga-se de passagem, essa matemática bastante simples era geralmente produzida por aristocratas ociosos interessados em ganhar apostas em cassinos e mesas de carteado, e não por aristocratas e clérigos ociosos interessados em desvendar os mistérios do universo, como Newton ou Bayes. 


Mas justamente por ser simplória, é uma metodologia sedutora. Não exige muito esforço mental. Dependendo do caso, são contas que qualquer um faz de cabeça - afinal de contas, ninguém pode se dar ao luxo de resolver equações complexas durante uma partida de carteado.  A aplicação indiscriminada da estatística gaussiana é o que Nassim Taleb chama de "falácia lúdica", pois jogos são universos fechados, com começo, meio, fim e resultado claramente definidos. A realidade NÃO é um tabuleiro de xadrez ou um baralho com 52 cartas. A abordagem gaussiana realmente funciona para jogos (há alguns anos criei um modelo gaussiano que uso em partidas de War e funciona razoavelmente), mas jamais serviria para planejar estratégia em uma guerra de verdade. Para isso, é melhor ler Clausewitz (a obra de Sun Tzu, diga-se de passagem, é antiquada e um tanto banal, boa para executivos metidos a general de pijama). Note-se que, a rigor, jogos como xadrez ou War, por fascinantes que sejam, sequer são realmente jogos de estratégia - a rigor, são jogos de tática, segundo a classificação, ainda válida, de Clausewitz. E mesmo Clausewitz, que viveu e escreveu na virada do século XIX, já é antiquado - suas reflexões tomavam por modelo as Guerras Napoleônicas. E, como se sabe, a diferença entre tática e estratégia é que a primeira se se refere a situações em que os oponentes têm à vista as respectivas forças (ou seja, onde a totalidade ou maioria dos dados relevante é conhecida - como em um tabuleiro de xadrez), enquanto a última diz respeito a situações em que os oponentes desconhecem o conjunto das forças e recursos envolvidos, ocultos na tal "névoa da guerra", como diz Clausewitz. Mesmo em jogos de carteado, onde os adversários podem ocultar seus recursos, o número e tipo de cartas que cada um pode ter na mão é limitado e previamente conhecido pelos jogadores, constituindo assim um "desconhecido-conhecido".


Retornando à estatística gaussiana, ela se popularizou imensamente no século XIX e ainda é usada por muitos pesquisadores nas ciências biológicas, assim como em economia, administração, "negócios" etc. Vale notar que, a rigor, a metodologia gaussiana não é totalmente inválida, contanto que seja aplicada apenas a objetos de estudo e conjuntos de dados tratáveis por ela, ou seja, dados que não envolvam variação radical - como altura ou peso de indivíduos, por exemplo; nenhum pesquisador espera encontrar um indivíduo de 15 metros em uma população humana. O grande problema é que ela vem sendo usada de maneira generalizada e indiscriminada, com efeitos muitas vezes desastroso, especialmente na área econômica, onde são possíveis variações extremas - como restaurantes de bairro e grandes franquias mundiais com milhares de unidades, embora em ambos casos se opere no setor de alimentação.


Voltando à questão da duração dos casamentos, outra modelagem estatística seria no campo da "aleatoriedade mandelbrotiana", que comporta inúmeras metodologias, baseadas na "lei de potências" - ou seja, distribuição exponencial. Mandelbrot, como se sabe, é o "pai" da matemática de fractais, ligada ao campo da dita "matemática do caos".


O ideal seria usar um gráfico de colunas, mas vou usar uma imagem mais "palpável". Se em nosso hipotético país cada casamento fosse uma edificação em uma cidade, teríamos milhões de casas térreas, um pouco menos de prédios de dois andares, bem menos com três ou quatro e ainda menos com cinco andares (a tal "média" gaussiana) e então um número cada vez menor de prédios com 6 ou mais andares, talvez um milhão com dez, meio milhão com 20, e, numa queda brusca, umas poucas centenas de prédios com mais de 20 andares. Ou, para usar outra imagem, seria como uma escada com muitos degraus extremanente longos e baixos e poucos degraus curtinhos, mas extremamente altos (10, 20, 30 ou 40 vezes mais altos que os demais).


Aqui já resolvemos parte do problema. Toda média é uma abstração que não retrata fielmente a realidade. Médias são úteis para cálculos simples e grosseiros, mas falham miseravelmente quando se trata de captar a complexidade do real. Isso significa que é ABSURDO falar em "brasileiro médio", "americano médio", "evangélico médio" ou coisas assim. O "fulano médio" é uma abstração matemática. 


Não existe algo como o "professor de História médio", "o professor de humanas médio" ou o "acadêmico médio". Esse tipo de absurdo só existe na cabeça de "cientistas" políticos - como se política fosse "ciência". Ou de economistas, analistas de mercado, sociólogos e outros compradores da "falácia lúdica". Ressalto, todavia, que em todos esses campos há profissionais competentes e talentosos, muitas vezes marginalizados pelos pares, especialmente em áreas que adotam certa "ortodoxia", como é o caso da Economia.


Agora temos outro problema: escalas.


Escalas são algo completamente contraintuitivo, pois somos quase todos criaturinhas com menos de dois metros de altura num planeta cujo ponto mais alto é o Everest. Só conseguimos enxergar o Everest inteiro a muitos quilômetros de distância - aí perdemos os detalhes. Para ver os detalhes precisamos escalar o Everest (e aí não o vemos inteiro) ou usamos um bom telescópio refrator (e também perdemos de vista o Everest inteiro). Falo com conhecimento de causa, pois tenho alguma prática como astrônomo amador. 


Já tive um telescópio refrator razoável e com ele dava para ver até rochas lunares e mesmos distinguir a sombra projetada por elas. Mas há aqui dois problemas. Um deles é que a rocha é tão pequena e a lua tão grande que fica MUITO difícil saber exatamente em que ponto da lua está a rocha avistada. O outro problema é que o sujeito e o objeto estão simultaneamente em movimento. Eu, minha cadeira e meu telescópio estamos acompanhando a rotação terrestre, enquanto a rocha segue a translação lunar, ambas trajetórias a milhares de quilômetros por segundo!


Na prática de observação, o que vejo através de minha lente ocular é uma faixa de paisagem lunar desfilando por alguns minutos até que a lua suma de vista do telescópio, como se fosse uma tomada panorâmica de cinema. Mas na verdade é muito mais complicado que isso. Como sei que minha observação da lua durará pouquíssimo tempo, tenho que saber EXATAMENTE onde fica o pólo sul da esfera celestial (levei meses para descobrir: fica  cerca de 30 graus acima do telhado da casa de meu vizinho), traçar com antecedência uma estimativa da trajetória lunar, calibrar meu telescópio em um ponto específico da trajetória estimada e aguardar cerca de 15 minutos olhando para o vácuo. Se acertei na estimativa, a lua aparecerá por uns dois minutos na minha lente e  - puf! - desaparecerá dois minutos depois. Se errei, tenho que recomeçar tudo do zero. 


Parece tedioso, mas é emocionante como um safári. Fica mais fácil quando se tem um telescópio com tripé de montagem equatorial (melhor ainda com rotação automática), mas é caro. Para o astrônomo pobretão (como eu), o mais barato é um tripé zenital, que dificulta a tarefa. Não que a montagem zenital seja "pior" - ambas são boas, dependendo do que se queira observar. O ideal é ter mais de dois tripés, com montagens e mecanismos diferentes.


Voltando às escalas de observação, nossas  noções costumam ser muito toscas, pois somos algo como micróbios cósmicos, como diria Dr. Manhattan. Geralmente pensamos a diferença entre a Terra e Júpiter como algo como uma bola de futebol ao lado de uma bola de tênis - grave equívoco. A proporção mais adequada é algo como a Terra do tamanho de uma bola de gude e Júpiter como aquelas bolas gigantes do Quico. Comparado ao Sol, Júpiter é como um grão de areia ao lado da bola do Quico e a Terra seria virtualmente invisível.


Um hipotético astrônomo alienígena em Alfa Centauri, usando os mais avançados equipamentos astronômicos que temos hoje teria dificuldade para detectar, a Terra mesmo com um poderosíssimo radiotelescópio. Note-se bem, trata-se aqui de DETECTAR (não "ver") por métodos indiretos como anomalia gravitacional ou desvio de ondas, usando toneladas de cálculos astronômicos. E ainda restaria a dúvida: "isso é MESMO um planeta ou será outra coisa?"


"Observar" estatisticamente fenômenos sociais - como as inclinações políticas dos professores de História - é tão complicado quanto "caçar" a Lua com um telescópio refletor de montagem zenital. É mais como observar uma supernova ocorrida há milhares de anos com um radiotelescópio.


Primeiramente, pela escala. 18 professores de História, ou 100, ou dez mil são uma amostragem estatisticamente irrelevante. Não dá para fazer isso com uma pesquisa de opinião ou, digamos, contando quantos professores de História seguem Marcelo Freixo no Twitter, nem quantas pessoas seguem a página "Professores de História Marxistas e Militantes" no Facebook, muito menos lendo os comentários que essas pessoas postam ou números de curtidas. Todos esses dados são  qualitativamente interessantes, mas muito limitados e dificilmente pode-se extrapolar que representem fielmente as tendências políticas da maioria dos professores. Ainda estamos presos na perspectiva limitada apontada por Leibniz. Mesmo admitindo que a maioria dos professores se alinhem genericamente com posições políticas consideradas de "esquerda", é muito difícil inferir detalhes de sua adesão a esse campo político, com toda sua variação de qualidade e intensidade. Não se trata de uma população homogênea em que todos partilhem uniformemente das mesmas opiniões gerais e, muito menos, que venham a adotar atitudes idênticas diante de situações e questões específicas. Ainda que se chegasse a uma "média", como discutido antes, essa média, necessariamente abstrata, corresponderia a apenas uma parcela relativamente pequena do conjunto de pessoas reais envolvidas. A bem dizer, se pegássemos aleatoriamente algumas postagens em redes sociais, seria fácil constatar que há grande variedade e discordância entre os membros do grupo em questão.


Em segundo lugar, porque estatísticas consolidadas de fenômenos sociais macro são muito demoradas de coletar e calcular, então o resultado é sempre retrospectivo. Por exemplo, a mídia fala o tempo todo em PIB anual ou PIB trimestral, mas estes dados são apenas provisórios. O cálculo consolidado do PIB  geralmente leva cerca de 5 a 7 anos, então, quando sai, os governantes já não estão mais no poder. Mesmo o resultado consolidado não é "real", só é menos grosseiro. E o detalhe mais importante: entre a estimativa provisória divulgada na mídia e o resultado consolidado a discrepância sempre é enorme (algo na casa dos 30%) e SEMPRE para baixo. Ou seja, o PIB veiculado na mídia sempre é desviado para cima. Se parece maravilhoso é, na melhor das hipóteses, bom; se parece ruim, é péssimo - e se parece péssimo, na realidade, é o fundo do poço.


Para ter uma ideia realmente precisa acerca das inclinações políticas dos professores de História, teríamos que fazer um levantamento exaustivo - um recenseamento oficial ou algo assim. 


Como? O Ministério da Educação poderia abrir um site com um formulário declaratório. Não adiantaria para grande coisa, porque dificilmente alguém se declararia "extremista", já que todo extremista se considera sensato e moderado. O ideal seria um questionário discursivo - inviável, pois seria caríssimo e extraordinariamente demorado fazer algo assim. Restaria fazer um questionário de múltipla escolha. Mas, discursivo ou objetivo, qualquer questionário seria subjetivo - o resultado refletiria apenas os critérios previamente adotados pelos elaboradores do questionário. E, ainda assim, quando todo o trabalho de coleta e análise dos dados fosse concluído, é provável que os professores em questão já teriam mudado suas opiniões, ainda que sutilmente. Muito trabalho e dinheiro gastos para nada.


CONCLUSÃO

De um ponto de vista "empírico cético", é IMPOSSÍVEL ter certezas sobre as tendências políticas do conjunto dos professores de História, professores de humanas, dos acadêmicos de humanas ou o que o valha. O máximo que podemos ter é suspeitas, impressões e opiniões - "achismos", enfim. Mesmo uma ampla pesquisa estatística ofereceria apenas um vago retrato da realidade. Ficar discutindo isso não leva a lugar nenhum. É como um cachorro correndo atrás do rabo.


O melhor que podemos fazer é conviver com a incerteza - o que é incômodo. Como prova o sério, premiadíssimo e justamente reconhecido trabalho de Daniel Kahneman em psicologia experimental, o ser humano, mesmo com a mais refinada erudição e ampla formação acadêmica (o público estudado por Kahneman), tem imensa dificuldade em conviver com a incerteza prolongada. Temos, todos nós, gatilhos emocionais que nos induzem a escolher imediatamente as "certezas" que confirmem nossa visão de mundo, mesmo em questões triviais do cotidiano. Somos escravos de nossos hábitos. 


E a convicção costuma ser inversamente proporcional à reflexão. Nos deixamos guiar principalmente por nossas simpatias e antipatias inconscientes. O contrário disso exige um esforço prolongado de suspensão da certeza, cujo custo emocional costuma ser exasperante para a maioria de nós. No fundo, é basicamente o que Montaigne, La Boétie e Pascal já diziam séculos atrás. Traduzindo grosseiramente Pascal, "o ser humano é um graveto pensante".


Como "graveto pensante", me resigno à incerteza sobre este, como tantos outros assuntos. Minha única certeza absoluta e inegociável quanto a este mundo é que, a longo prazo, todos estaremos mortos. No que tange ao resto, tento sempre permanecer aberto a novos olhares e perspectivas, me dando ao luxo de não ter opiniões formadas sobre inúmeros assuntos.


No que concerne às estatísticas, elas constituem uma ferramenta extremamente válida para a abordagem de fenômenos sociais em escala macro - contanto que tenhamos plena consciência das limitações dessa ferramenta. Não se trata de acreditar ou deixar de acreditar em estatísticas, mas sim de compreender a natureza das diferentes metodologias e abordagens estatísticas e de sua aplicação adequada ao conjunto de dados por estudar.


Ao contrário do que pensava o Chaves do 8, nem tudo é "culpa das estatísticas"... Ou, como dizia certo matemático, os números não mentem, mas os seres humanos usam números para mentir.


Vale lembrar a piada: havia dois homens e um frango assado. Um deles comeu o frango inteiro e, depois, usando estatísticas, convenceu o outro de que ambos haviam comido meio frango...




quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Sublimação?

Sórdido, grosseiro, tosco, frívolo, impiedoso, insano, brutal, esse mundo é mera refração das penadas almas que somos - sórdidas, grosseiras, toscas, frívolas, impiedosas, insanas, brutais. 

Recipiente puro e cristalino, nosso mundo meramente transparece o pestilento veneno humano que contém. E não é mau que seja assim - muito pelo contrário. Do veneno nascem remédios. Todo pharmakon é bicéfalo. 

Talvez esse purgatorial mundo seja apenas ínfima peça de um inimaginável alambique, capaz de operar fabulosas transformações. E se todos os vícios forem paradoxais ingredientes de um virtuoso elixir? E se o profundo abismo for berço de arcanjos? E se a Terra que pisamos for gigantesca pedra filosofal em celeste carreira ao redor do dinâmico fogo solar? 

O sublime nasce do grotesco de maneiras que mal sonham nossas grotescas consciências...

Viaduto de Madureira, Hell de Janeiro, 24 de agosto de 2018, sexta-feira



segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Não alimente os monstros!

Tião Canhão é um jovem com delírios conspiratórios, opiniões bombásticas e ideias truculentas. Certo dia, ele inicia um canal no Youtube, onde expõe seu doentio modo de pensar de maneira grosseira e grotesca, em vídeos repletos de palavrões e expressões exaltadas.

A princípio, o canal de Tião rende poucas visualizações e tem menos de cem pessoas inscritas; é apenas mais um revoltado raivoso esbravejando nos esgotos do mundo digital.

Passado algum tempo, o jovem Juquinha recebe um vídeo de Tião Canhão, compartilhado por um primo em alguma rede social. Enojado e indignado, Juquinha compartilha o abominável vídeo, devidamente acompanhado de um longo texto recriminando e refutando veementemente as sandices de Tião.

Inúmeros amigos e conhecidos de Juquinha visualizam a postagem e se manifestam concordando com Juquinha ou defendendo Tião, gerando uma acalorada discussão, que se prolonga por alguns dias.

Algumas pessoas compartilham a postagem de Juquinha (com o vídeo de Tião devidamente anexado). Outras encaminham o texto e o vídeo em grupos de aplicativos de mensagens. Outros tantos, empolgados com o exaltado discurso de Tião, se inscrevem em seu canal ou, ao menos, curtem o vídeo. 

Os algoritmos do Youtube, sempre vigilantes, percebem o pico de visualizações e começam a sugerir o vídeo a milhares de usuários que acompanham canais de conteúdo semelhante, atraindo mais inscritos para o canal.

Tião Canhão viralizou!

Agora, com uns poucos milhares de seguidores em diversas redes sociais, Tião se  tornou um "influencer" com uma audiência fiel e mais alguns milhares de visualizações e compartilhamentos flutuantes.

Burro, mas não bobo, Tião aproveita os crescentes retornos da monetização de seu canal e começa também a vender camisetas com seus slogans incendiários. 

Por outro lado, Tião virou uma subcelebridade odiada por muitos. Constantes manifestações de repúdio seguem sendo postadas contra Tião que, além disso, passa a ser ridicularizado em inúmeros memes. A hashtag #TiãoBobão se populariza.

Vendo tamanha oposição, os admiradores passam a ver Tião como um ousado pensador denunciando verdades inconvenientes, relevante defensor de elevados valores, aguerrido combatente contra os inimigos da sociedade, um incansável herói acossado por crueis perseguidores.

Tião Canhão, gradativamente, passa de mero "influencer" à condição de liderança de milhares de jovens que o defendem com unhas e dentes.

Sem grande dificuldade, Tião é eleito deputado estadual. Apesar de sua inépcia como legislador, Tião segue bombando nas redes.

Os sagazes dirigentes de seu partido veem no popular e polêmico Tião uma poderosa ferramenta eleitoral. O partido aposta em lançá-lo como candidato a prefeito de uma grande capital, mesmo sabendo que não há reais chances de vencer a eleição. 

Apesar da carência de um programa de governo consistente e da baixa viabilidade de sua campanha, Tião ganha alguma cobertura da grande imprensa, pelas absurdidades que vocifera - que, afinal de contas, rendem belas manchetes, apesar de sua irrelevância. Em dias de marasmo eleitoral, Tião tem sempre alguma nova abominação para preencher a carência de notícias relevantes e entreter leitores entediados.

Em paralelo, o turbilhão virtual em torno de Tião não cessa de crescer e crescer, com novos memes, hashtags e acalorados debates em torno de sua lastimável figura. Até pessoas relativamente sensatas, a pretexto de equanimidade, ressaltam que Tião tem algumas ideias "interessantes".

Como esperado, Tião perde as eleições para prefeito, mas consegue aumentar a bancada de seu partido na Câmara de Vereadores, piorando ainda mais o já periclitante legislativo municipal de uma grande capital. Missão cumprida, Tião retorna a seu posto de deputado e inepto e, mais importante, agitador digital.

Mas Tião não está satisfeito, tem planos grandiosos para o futuro. A vida foi generosa até aqui: fama, poder, dinheiro. Nada mal. Tião sabe que há oportunidades maiores a sua espera. Os algoritmos o amam e um imenso exército de encarniçados opositores que involuntariamente ajuda a promove-lo.

Tião começou como uma lagartixa e agora é um crocodilo. Com um pouco mais de esforço, pode virar um dragão.

Excetuando certa licença poética, esta é uma história real. "Tião" existe. Me recuso a nomea-lo diretamente porque não quero mais alimentar um monstro. Eu mesmo, admito, em alguns poucos momentos, concedi a "Tião" uma atenção que ele não merecia. 

Não desejo que "Tião Canhão" cresça ainda mais e nem que outros como ele surjam.

Aqueles que combatem monstros, muitas vezes, os alimentam sem perceber. Não alimente os monstros. Deixe que eles morram de fome.



sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Você que se salve

Contribuição de R. Watzl

Jovem (ou nem tanto assim), eu sei que não deu tempo de lamber suficientemente a ferida. E é por isso mesmo que você deve prestar atenção ao que vou escrever agora.


A política não é uma luta do bem contra o mal. Dos honestos contra os corruptos. Da luz contra a escuridão. A política tem sua origem formal na “politia” grega, a arena na qual se discutiam os problemas que diziam respeito aos cidadãos da “polis”.


A política é o debate de interesses, mediante o qual soluções para os problemas são propostas, aceitas ou recusadas.


É claro que o primordial interesse é de quem participa do debate na arena. E é preciso entender e aceitar isso.


A política muitas vezes pode ser “suja”, mas ela é o método civilizado de resolver conflitos que, de outra maneira, resultariam em mortes.


“A política é a arte do possível”. Ainda que o possível seja ruim. E é melhor escolher o “ruim”, porque sempre pode haver o “pior”.


Portanto, jovem (ou nem tanto assim), pare de ser ingênuo. Cresça. Pare de acreditar em salvadores. Eles não existem. Ninguém, absolutamente NINGUÉM vai salvar você. Você que se salve. E, olha, se você fizer isso, vai contribuir imensamente para que os representantes no teatro político sejam melhores para todos.


Boa sorte.



Ciranda brasileira


 

Bolsonaro - Do Nada ao Nada

Desde sua posse como presidente em janeiro de 2019, Bolsonaro não ofereceu mais significativa demonstração de fraqueza que em sua "Declaração à Nação" divulgada em 9 de setembro de 2021.


Para além de sua mediocridade quase infantil, lembrando o tipo de texto "reflexivo" que estudantes travessos muitas vezes são convidados a redigir nas escolas em caráter disciplinar, a tímida declaração contrasta vivamente com o inflamado discurso proferido à multidão de apoiadores dois dias antes. 


Entre os dias 7 e 9, o Messias guerreiro se encolheu como estudante encabulado. A declaração sinaliza que, ao contrário do que se teme, Bolsonaro não dispõe efetivamente dos recursos necessários para empreender um golpe de Estado. A bem dizer, ficou evidente que lhe falta até a capacidade de organizar um prosaico bloqueio rodoviário...


Bastaram ligeiras pressões do Judiciário, do Legislativo e da opinião pública para que o presidente gritasse pelo socorro de Michel Temer, uma das figuras mais insípidas e impopulares de nossa história política recente, para mitigar a desnecessária crise que, de longa data, vem mantendo. Sempre que o calo aperta, Bolsonaro volta à gamela da "velha política" que prometia combater.


De certo modo, a Declaração é o desfecho tragicômico da patética farsa que foi o desfile de blindados realizado há algumas semanas em Brasília. Bolsonaro, ao que tudo indica, não é capaz de fazer muito mais que fumaça, literal ou figurativamente; seus arroubos grandiloquentes simplesmente se desmancham no ar.


Bolsonaro mostra cada vez mais uma inépcia política diante da qual até o fiasco protagonizado pelo doidivanas Jânio Quadros empalidece. Ao contrário do que esperavam seus eleitores tomados por frenesi messiânico, o agora presidente segue sendo apenas o deputado mandrião e o militar indisciplinado que sempre foi - uma figura minúscula que surpreende em sua capacidade de se apequenar cada vez mais e mais.


Entre seus delírios de grandeza e demonstrações de fraqueza, o capitão-presidente faz pensar em certo personagem fanfarrão da "Farsa de Inês Pereira", valentão que, nos versos de Gil Vicente, seria forte contra a esposa, mas frouxo contra os mouros.


Arrastando o terceiro ano desse farsesco mandato, Bolsonaro comprova e confirma a máxima atribuída ao Barão de Itararé: justamente de onde não se espera nada... é que não vem nada mesmo!



quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Bolsonária

 Até quando, ó BOLSONARO, abusarás da nossa paciência? 


Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? 


A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? 


Nem a Constituição da República, nem os princípios da Democracia, nem os clamores do povo, nem a afluência dos cidadãos sensatos, nada disto conseguiu perturbar-te? 


Não sentes que os teus planos autoritários estão à vista de todos? 


Não vês que a tua conspiração contra a Democracia e a República brasileira a têm já descoberta todos estes que a conhecem?


Oh tempos, oh costumes! 


O Congresso tem conhecimento destes fatos, os Magistrados têm-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua Presidente! 


Presidente?! 


Mais ainda, ameaça-nos e intimida-nos, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. 


E nós, cidadãos valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se simplesmente evitamos os dardos da sua loucura!


Ao Impeachment, BOLSONARO, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do Congresso Nacional; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós, por truculência e ignorância.


Pois não é verdade que se encheram as ruas contra Collor, que muito menos gravemente ameaçara a Constituição da República e a Democracia? 


E BOLSONARO, que anseia por devastar a ferro e fogo a face da terra brasileira, haveremos nós, os cidadãos, de o suportar toda a vida?


Que haja agora nesta República, uma tal disciplina moral que os cidadãos de coragem afastem do poder um Presidente incompetente, irresponsável, mentiroso e autoritário!


Temos uma Constituição contra ti, BOLSONARO; não é a Lei que falta à República; nós, digo-o publicamente, nós, os cidadãos, é que faltamos!


Até quando, BOLSONARO, os cidadãos brasileiros tolerarão teus desmandos e abusos?


"BOLSONÁRIA" - Parafraseando Cícero; pois os tempos passam, mas os tiranos continuam...

Esporte, identidade e violência

 Extratos do livro Ostra feliz não faz pérola, de Rubem Alves


Futebol I

Onde se encontra a emoção do futebol? Será na sua beleza? Sim, é bom ver uma partida que se parece com um balé. Mas esse espetáculo coreográfico não faz o torcedor feliz. Uma partida que termina zero a zero é um tédio. O grito vem quando o gol acontece. É no gol que mora a alegria e... o sofrimento... A alegria do torcedor cujo time fez o gol é simétrica ao sofrimento do torcedor do time que sofreu o gol. Cada gol que se faz é uma afirmação de potência, enquanto cada gol que se leva é uma afirmação de impotência. E o gol é, fundamentalmente, um ato sádico. Um estupro. Um gol é um time que enfia a sua bola no buraco do outro - dolorosamente -, embora o outro tenha feito tudo para impedir que isso acontecesse.


Futebol II

A emoção do futebol, suas alegrias e tristezas, vêm do fato de que futebol é guerra. Uma Copa do Mundo é uma guerra estilizada entre muitos países. Daí a importância das bandeiras e dos hinos nacionais. Quem está em campo é um país em guerra contra um inimigo. A seleção são seus melhores heróis guerreiros, como na Guerra de Troia. O campeão é o vencedor da guerra. Os outros, são os vencidos. Medalha de prata não tem graça. O vice-campeão é também um vencido.


Futebol III

O povo unido, esquecidas as diferenças, esquecidos os partidos políticos, esquecidas as crenças religiosas: todos sentindo igual, todos cantando igual, todos gritando ao mesmo tempo, uma única bandeira. O entusiasmo do futebol provoca a união. Essa unanimidade de sentimentos e ações é característica dos tempos de guerra. Diante de um inimigo comum que ameaça, os conflitos internos perdem o seu sentido. As esquerdas argentinas, inimigas da ditadura militar, se esqueceram da sua inimizade e se uniram ao povo e aos militares nas praças, quando as Ilhas Malvinas foram invadidas. A guerra faz esse milagre: ela transforma as inimizades internas em amizade. Campeonato mundial de futebol é a guerra que dissolve todas as oposições internas.


Futebol IV

Mas o fim da Banda é triste. "Mas para meu desencanto/ O que era doce acabou,/ Tudo tomou seu lugar/ Depois que a Copa acabou..." Terminada a guerra contra o grande inimigo, começam os conflitos entre os irmãos. Passada a Copa, os torcedores tiram a camisa verde-amarela e cada um veste a camisa do seu time. Retorna, então, a guerra antiga...




quarta-feira, 1 de setembro de 2021

 A mais elevada caridade consiste menos em compadecer-se com o sofrimento alheio que em regozijar-se com o bem de outrem, como se nosso fosse - pois verdadeiramente o é.