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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Mais uma pequena tragédia parisiense

No breve período em que minha esposa e eu moramos em Paris, as livrarias Gibert Joseph e Gibert Jeune estavam entre nossos refúgios preferidos, constituindo paradas obrigatórias em muitas de nossas andanças.

Depois de devidamente instalados, impossível esquecer de nosso primeiro passeio. Uma visita a Notre Dame, oportunamente concomitante a uma feira de gastronomia. Almocei um delicioso sanduíche "jambon-beurre", e um sanduíche de creme de cereja por sobremesa. 

Após as subidas e descidas pela catedral que tanto me encantava, atravessando o Sena, passando pela monumental fonte de São Miguel, penetramoa no mágico mundo de Gibert Jeune, com seus muitos andares. Saímos de lá carregados de livros (dois dos quais tenho diante de mim enquanto escrevo), especialmente os dois últimos volumes de "Nausicaa do Vale do Vento", de Hayao Miyazaki, cuja publicação brasileira fora interrompida anos antes pela Conrad. Passei a noite lendo a tão aguardada conclusão da magnífica obra de Miyazaki.

Atendidos por Sévérine...


Nos tornamos assíduos frequentadores de Gibert Jeune e dos primosoncorrentes, Gibert Joseph - com sua magnífica papelaria, onde compramos boa parte dos materiais de desenho e pintura que ainda hoje usamos. Excetuando o banheiro e a cozinha, não há cômodo em nossa casa sem algum butim dos Gibert.

Me recordo de nossa última visita a Gibert Jeune, quando deixei de comprar um livro de Roland Mousnier, cujo preço me pareceu à época exagerado, mas que depois muito me arrependi de não ter adquirido.

Hoje leio, com muita tristeza, a notícia de que Gibert Jeune fecha as portas - uma catástrofe afetiva comparável ao incêndio de Notre Dame, sendo a catedral e a livraria tão intimamente vinculadas em minha memória emocional.

Posso suportar a ideia de jamais rever Paris, mas é intolerável pensar que, visitando Paris, não poderei mais subir as escadarias de Gibert Jeune.

Cada livraria que fecha é uma luz que se extingue e deixa o mundo um pouco mais frio e sombrio.

Perder a velha e gloriosa Leonardo Da Vinci, a efêmera Livraria Cultura da Senador Dantas, a antiga Casa Mattos do Méier, a FNAC do Barra Shopping e agora Gibert Jeune são duros golpes em minha vida de leitor e bibliomaníaco, disposto a devaneios em qualquer lugar, brega ou chique, onde se vendam livros.

Uma das coisas que mais me entristecia em Paris era passar pelo Palais Royal, outrora ninho fulgurante das melhores livrarias da Europa, frequentado por grandes figuras literárias dos séculos XVIII e XIX e constatar que ali não se vendem mais livros, sendo necessário atravessar a rua para visitar a discreta e simpática livraria Dellamain - se é que ela ainda existe. 

Hoje só se encontram no Palais Royal antiquários hiper-sofisticados, lojas de grifes internacionais e uns poucos restaurantes careiros "au nez en l'air" (exceção feita ao velho restaurante outrora frequentado por ninguém menos que Voltaire, "sans trôp de chichi").

Vivemos em um século bárbaro, em que se fecham tantas livrarias. Sunt lacrimae rerum.



quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Das chances de errar

Errar é humano, muito humano. Nossas chances de acertar são elevadas apenas em situações banais, triviais, simplórias e irrelevantes - como em pequenas operações do cotidiano e na resulação de problemas intelectuais como soletrar uma palavra de uso corriqueiro ou somar pequenos números.

Conforme a complexidade das situações aumenta, as probabilidades de errar crescem em proporção direta. Nas circunstâncias da vida de maior relevância existencial devemos nos sentir gratos se as chances de erro e acerto forem meio a meio, 50% para cada lado.

Nas questões mais vitais, singulares e desafiadoras, as chances de erro costumam ser elevadíssimas, e por vezes a probabilidade de 1% de acerto deve ser considerada uma dádiva generosa.

O erro é inevitável e nos acompanha do nascimento à morte. Tudo que podemos fazer é tentar aprender com esse grande mestre - o que, infelizmente, não costumamos fazer: erramos repetidamente e até orgulhosamente.

Formigas e até elefantes provavelmente  cometem muito menos erros que o bicho-homem ao longo de suas vidas. Apesar de nosso intelecto, talvez mesmo por causa dele, nos vemos constantemente inclinados a errar. O ser que inventa o arco é o mesmo que falha com suas flechas. Individual e coletivamente criamos condições de vida tão complexas que o acerto exige nosso melhor e mais um pouco. Na maioria das vezes perambulamos na periferia do alvo; encontrar seu centro geralmente exige muita perícia e um pouco de sorte. Com efeito, errar é humano, muito humano.

Para cúmulo da ironia, embora seja uma operação trivial, errei várias vezes na tentativa de inserir essa imagem. A inclemente Fortuna zomba de mim...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Brasil - Tragicomédia policial

O Brasil se tornou uma espécie de tragicomédia policial em que cabe aos cidadãos o gozo quando são presos seus desafetos políticos, a indignação quando se prendem os políticos estimados e a certeza de que "as instituições funcionam" quando uns e outros conquistam a almejada prisão domiciliar.  

Esse lamentável estado de coisas seria perfeitamente evitável se, enquanto coletividade cívica, votássemos mais com o cérebro que com o fígado. O povo brasileiro está criando o péssimo hábito de "resolver" como matéria penal aquilo que deveria ser questão eleitoral. 

Que sejam presos aqueles que sequer deveriam ter sido eleitos é um alívio, mas é lamentável que tenham sido eleitos (e até reeleitos), em primeiro lugar.

Mas ainda há tanta gente por prender...



sábado, 20 de fevereiro de 2021

"É na escuridão que mais claramente vemos" - entrevista com o escritor Rodrigo Watzl

Entre as obras de ficção científica que li nos últimos anos, uma das mais instigantes e surpreendentes é Herdeiros da Eternidade, de Rodrigo Watzl. Tive a oportunidade - e o imenso prazer - de ler o romance ainda no manuscrito, mas o livro já se encontra publicado, pela Editora Gana. Nesta entrevista, o criador permite entrever o que há de tão fascinante na criatura...


Um dos aspectos literários mais fascinantes de Herdeiros da Eternidade - ao menos para mim - é o modo complementar e paralelo com que a trama política e aquela de ficção científica se desenrolam. A meu ver, o romance é quase um híbrido de sci-fi e thriller político. Como você desenvolveu essa simbiose temática? Era algo previsto desde a concepção ou foi emergindo com o desenvolvimento da obra?

Luiz, em primeiro lugar, obrigado pela oportunidade que você está me oferecendo. De verdade. Bem, a coisa toda foi a seguinte: eu estava em uma festa de ano novo (isso foi em 2005/2006) e houve um momento em que o céu capturou a minha atenção. Ali, veio a ideia inicial que tem relação com a parte da ficção científica propriamente dita, embora de uma forma ainda muito superficial. Embora não fosse tão novo nessa época (eu tinha vinte e sete anos), minhas preocupações tinham outra natureza (principalmente trabalho e estudos). Mas o tempo prosseguiu em sua marcha e, é claro, ninguém passa por isso impunemente. Meu pensamento foi mudando, fui dedicando mais atenção a aspectos mais mundanos do ambiente social. E os primeiros capítulos, ou melhor, seus primeiros esboços, foram rabiscados em 2009. Eu entendo esse processo como um início de "fermentação" da ideia no "caldo" do inconsciente. E o protagonista era um alto funcionário de Estado em um país fictício. Quando se pensa em escrever uma história assim, é natural (ou pelo menos esperado) que o desenvolvimento exija essa abordagem em um cenário correspondente. Não fazer isso seria, acredito, escrever uma história com, vamos dizer assim, "pouca densidade". Afinal, indivíduos e contextos se afetam reciprocamente, seja na ficção, seja no mundo real. Ainda assim, a ideia estava a quatro mil anos luz do que foi se tornando. E a referência à distância, você deve entender, foi intencional.

Fascinante - como diria o Sr. Spock. Pelo que você diz, o processo criativo foi, em boa medida, "dialético". Suponho que isso tenha em alguma medida ajudado o desenvolvimento das dimensões filosóficas da obra, que ficam mais evidentes na relação entre os personagens Vera e João Paulo. Mas você mesmo tem um grande interesse por filosofia. Indagar se esse interesse influenciou a obra seria, talvez, trivial. Me sinto mais curioso para saber se, de alguma maneira, o processo de criação do romance afetou a sua maneira de encarar a filosofia. E ainda: qual foi a maior dificuldade que você enfrentou ao escrever os diálogos entre Vera e João Paulo?

Sim, foi. E acredito que essa dialética tenha uma relação bastante próxima com uma tentativa de compreensão do ambiente, enquanto autor. Algo como encaixar a realidade em uma moldura teórica, sem precisar sucumbir a um preciosismo filosófico que tornaria a narrativa provavelmente muito cansativa. Nesse sentido, e respondendo à sua primeira pergunta, acredito que sim. Há ali uma intenção ontológica, porque se trata de uma tentativa de compreender o real, o ser. É, portanto, uma exposição da apreciação da realidade de uma forma que preserva a "superfície", e mesmo a materialidade, do ser enquanto tal, mas que procura entender sua essência sob um ponto de vista um pouco... diferente. Como indivíduo, eu carrego uma bagagem de crenças e algumas destas foram consideravelmente reformuladas com o objetivo de usar a história para transmitir a mensagem que me interessava. É curioso pensar que não apenas os livros que lemos, mas os que escrevemos também têm a propriedade de nos modificar.

Respondendo à sua segunda pergunta, as dificuldades foram consideráveis. Aliás, eu levei anos para concluir o livro não apenas porque havia aperfeiçoamentos a serem feitos, detalhes para "amarrar", contradições para corrigir, etc., mas também porque, em se tratando dos diálogos entre João Paulo e Vera, estamos falando aqui de uma conversa entre um humano e a criatura mais poderosa do universo. Alguém dotada de um conhecimento absoluto. Mas também é justo e honesto dizer que o trabalho somente foi possível, porque passou por um longo processo de "fermentação" no caldo do inconsciente, como respondi antes.

Seu comentário sobre as modificações que um livro pode suscitar em seu leitor me fazem pensar em minha própria experiência ao ler Herdeiros. Como já conversamos em outra ocasião, a leitura não apenas me ofereceu temas para semanas de ruminação como me parece ser o tipo de livro que exige ao menos uma segunda leitura para ser plenamente fruído. Que tipo de reações, como autor, você espera que Herdeiros suscite entre os leitores?

Eu costumo criar aforismos. Não é algo como um trabalho programado, que me exija o pensamento e a atenção direcionados a um assunto específico. É um processo bem diferente e que, um dia, eu tive a sorte de perceber acontecendo. Funciona da seguinte maneira: alguma coisa banal desperta minha atenção. Pode ser um idoso na rua com dificuldade para andar, uma criança se comportando mal, alguém que maltrate um garçom, etc. Enfim, você terá compreendido a ideia da banalidade a que eu me refiro. Pois bem, essa situação trivial captura minha atenção e dispara, sabe-se lá o motivo, alguns processos mentais: lembranças, ideias e conceitos que aprendi, conclusões anteriores (minhas ou de outros). Tudo vai se combinando na minha cabeça. É como a "fermentação" de que falei outras vezes. Finda a etapa, eu enuncio um aforismo.

Então, respondendo a sua pergunta, acho que vale a pena pensar nos papeis que a filosofia e a arte exercem nas vidas das pessoas. A arte, assim entendo, exerce uma papel profilático: ela nos impede de sucumbir às pressões, oferecendo-nos a sensação de encantamento. É como dizer: "amigo, você está vivo e isso é extraordinário". Ao mesmo tempo, veja que interessante, a razão, instrumento cardeal da filosofia, exerce um papel diametralmente oposto. Dialeticamente, e parece impossível evitá-la, sob este ponto de vista, é a antítese do encantamento.

E é aqui que começa a fazer sentido a razão pela qual mencionei os aforismos. Um deles, foi este aqui: "a razão existe como remédio diante do espanto, como antídoto para o encantamento. O que, se você pensar bem, é espantoso e a torna encantadora".

É esta síntese aquilo que eu desejo ao leitor.

Adorei sua reflexão sobre o processo de alquimia aforismática; daria que pensar até a La Rochefoucauld. Eu diria que essa resposta me pôs em xeque. Assim sendo, meu lance final é perguntar sobre o engenhoso uso de epígrafes em cada capítulo do romance, cujo efeito narrativo me impressionou vivamente. Aqui passo a você a responsabilidade de realizar o xeque-mate para finalizar essa entrevista.

Quero novamente agradecer pela oportunidade, Luiz, de me fazer conhecido dos leitores do seu blog. Você foi muito generoso.

Respondendo a pergunta, eu entendo o cenário não apenas como uma parte do romance no qual a ação se desenvolve, mas como um personagem em si. Não sei se é uma abordagem muito original da minha parte, mas é a ideia fundamental e foi com base nela que as epígrafes foram concebidas. É, entretanto, a razão mais superficial, por assim dizer. Nesse sentido, acho que posso afirmar que o recurso foi utilizado com o objetivo de situar o leitor no ambiente sujo, degradado, cínico, mesquinho e calhorda da história, sem que, para isso, eu precisasse me estender no desenvolvimento dos outros personagens pelo narrador.

Aqueles canalhas são o que são e, nas epígrafes, mostram bem por que são.

Seja como for, o entendimento do cenário como personagem também está imbuído de uma razão filosófica mais profunda e que estaria arruinada se eu a explicasse aqui em detalhes. Perceba que eu me refiro à razão, não exatamente ao romance. É que, embora este, em larga medida, dependa daquela, seria uma pena privar o leitor da possibilidade de aproveitar esta oportunidade. Para compreendê-la, e aqui está a intenção do autor, o leitor deve apreciar a obra. Talvez encontre lá muito mais do que eu, o autor, entendo que esteja dito.

É este o meu convite.

Com efeito, as epígrafes cumprem essa tarefa com perfeição. Excelente artimanha literária. Como trickster existencial que sou, e genjutsushi amador, fingirei que não houve xeque-mate e prolongarei um pouco mais nossa entrevista. Como seu comentário anterior deixou claro, a ambientação da trama é sórdida e alguns personagens - Sérgio e Magno, particularmente - chegam a ser mais que canalhas. No entanto, de tanta sordidez, você tira, como um mago do chapéu, coisas sublimes - como o leitor terá o prazer de descobrir. Essa mistura entre o sórdido e o sublime, na medida certa, era o que almejava Victor Hugo em sua prosa e sua dramaturgia - bem como, evidentemente, em sua obra poética. Hugo, em boa medida, encontrou esse caminho pelas vias da dor e da compaixão. Como você diria que esse processo se dá para você? Como você olha para tanta coisa vil e mesquinha e encontra ali matéria para a busca do excelso?

Como estamos usando metáforas do xadrez, essa pergunta se assemelha ao famoso, e poderoso, "Cavalo do Kasparov". No xadrez, fala-se em temas: o "garfo" (quando o adversário ataca duas peças ao mesmo tempo), as colunas abertas para as torres, o xeque duplo, o xeque a descoberto, etc. Eu acho que, quanto ao livro e ao processo para escrevê-lo, trata-se do tema do "alívio". Como te falei antes, minhas ideias foram sofrendo modificações muito profundas com o passar dos anos. Eu costumava me definir como um otimista, um "entusiasta da raça humana". Pobre de mim... Passei, porém, e por razões que não consigo compreender, tampouco lhe explicar, a dedicar muita atenção aos vícios, à maldade. Só que é preciso levar a sério a lição de Nietzsche e tomar cuidado com isso. Então, voltando ao tema do "alívio", a ideia foi, primeiro, pintar o cenário e seus atores com as piores e, entendo, as mais realistas tintas possíveis para poder, depois, sentir o prazer visceral de respirar ar puro. E acho que é um processo natural, na verdade. É preciso ver a beleza do devir, a impermanência do mal, ou, pelo menos, acreditar nisso. Porque, no fundo, se você pensar bem, talvez concorde comigo que o pessimista não passa de um otimista amargo.

Muito bem. Me dou por vencido e convencido. Agradeço a agradável entrevista. Que tal um aforismo para encerrar a conversa?

Quem agradece sou eu, Luiz. Gostaria de dizer algumas palavras finais e que se relacionam com o aforismo que você me pediu. É que boa parte de Herdeiros, como o leitor talvez perceba, é sobre o conhecimento. No sentido mais amplo possível. E o conhecimento tem como condições o que percebemos e o que sabemos de antemão, ainda que este saber também tenha dependido, antes, da percepção. É, em última análise, algo que se fundamenta na dualidade do “ser”: sujeito e objeto. Isso em um sentido hegeliano, por assim dizer. Não pretendo, com isso, antecipar nada, embora, provavelmente esteja fracassando miseravelmente neste propósito. Espero que o leitor me compreenda e me perdoe.

Dito isso, encerro com o seguinte aforismo: “é na escuridão que mais claramente vemos”.



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Gosto e Relevância

Nem tudo que me agrada é relevante; tampouco tudo que me desagrada é irrelevante. Infelizmente tendemos a medir a relevância das coisas de acordo com nossos gostos e desgostos - o que pode, ao fim e ao cabo, nos tornar irrelevantes...

Quanto vale um mero centavo?

Mente x Máquina - Vitória impossível?

 John Henry, well, he told his captain

“Captain, a man, he ain’t nothing but a man

Before I let your steam drill

beat me down

I’m gonna die with a hammer

in my hand, Lord, Lord

I’ll die with a hammer in my hand


A lenda do bravo trabalhador John Henry sempre me encantou desde a primeira vez em que ouvi falar dela em um gibi do Supernan, com meus 10 anos de idade. O fascinante personagem folclórico é um trabalhador negro que não aceita a supremacia da máquina e morre vitorioso em uma competição contra uma perfuratriz a vapor, usando apenas seu martelo.

Na última semana travei meu próprio duelo à la mort, com uma máquina e realizei mais de uma vez algo que sempre julgara impossível: vencer um jogo eletrônico em modo "gauntlet".

Como se sabe, o modo "gauntlet" consiste em lutar contra sucessivas ondas de adversários, com poucos recursos (ou nenhum) para recuperar os danos da batalha: o que significa um árduo confronto até a derrota, sem a menor chance de vitória - exceto uma,  como me dei conta ontem.

Embora já tivesse jogado inúmeros games em "gauntlet", me tornei um aficcionado pela modalidade com meus 13 ou 14 anos,  jogando o arquiclássico Golden Axe em meu então poderoso Pentium 166. Em minha ignorância, eu imaginava que após determinado número de ondas inimigas derrotadas, haveria algo como um final surpreendente ou um prêmio. Após inúmeras tentativas descobri que estava terrivelmente equivocado. Quanto mais longe prosseguia, mais adversários enfrentava, até a inevitável "morte" no campo de honra. Essa constatação me deixou imensamente frustrado,  especialmente após todo o esforço que dedicara à empreitada guerreira.

Nunca mais retornei a Golden Axe (exceto em exposições de games antigos), mas o modo gauntlet permaneceu em minha vida. Durante alguns anos, apenas como um passa-tempo bônus após a conclusão de algum game. No entanto, amadurecendo, percebi que enfrentar gauntlets significava enfrentar a mim mesmo e superar meus próprios limites.

Para se manter de pé onda após onda, cada vez mais longe, são necessários foco e determinação a resistir "sobrevivendo" até a derrota. O momento crucial de um gauntlet é o final da partida, em que a barra de energia (ou o que o valha) se encontra praticamente esgotada e qualquer golpe adversário significa o fim da daquela batalha. Nesse momento prevalece a clareza mental de que a derrota está próxima, mas emerge a firme determinação de resistir por quantas ondas ainda for possível. A iminência da destruição e a resolução de resistir, combinadas, levam a um paradoxal estado de espírito, serenamente tenso, em que conta apenas fazer o melhor possível pelo tempo possível. Quando o "golpe mortal" finalmente chega, é recebido com a tranquiliidade de quem fez o melhor a seu alcance em uma luta onde nunca houve a mínima chance de vitória. Chegou-se tão longe quanto possível em uma jornada infinita.

Com o passar do tempo, comecei a ver os gauntlets como uma alegoria da própria vida: um combate incessante onde o que conta é a determinação de enfrentar reoluta e graciosamente cada nova onda de desafios que chega. Cada onda vencida sem danos, ou com danos mínimos, pode ser considerada, em si, uma vitória. E, com efeito, um gauntlet consiste em uma longa sucessão de vitórias contra dezenas,  até centenas de adversários, até a queda. O mais importante é tirar o máximo proveito dos limitados recursos oferecidos no início da jornada para superar os desafios encontrados.

No entanto, para minha imensa surpresa, na última semana, após tantos anos, consegui o impossível - venci o modo gauntlet.

Em minha postagem anterior, "Acidentalmente épico", registrei o momento em que, pela primeira vez, atingira a 75ª onda de atacantes no modo gauntlet do jogo Thor - God of Thunder, um excelente "beat'em-up" retrô produzido pela Wayforward para o Nintendo DS. Adquiri o jogo em dezembro de 2012 e, desde então, tenho jogado muitas vezes, tanto no no modo "story" quanto no modo "gauntlet" (ou "survival", na terminologia própria do jogo). No entanto, no preciso momento em que superava  meus limites, a máquina encontrava os seus, e travou - o que frustrou minhas expectativas de lutar "até a morte", muito embora deixando uma bela imagem residual.

No entanto, encorajado por meus progressos e determinado a vencer ao menos 100 ondas, nos dias seguintes vim jogando e, quanto mais ondas de adversários eu conseguia superar, mais ocorriam problemas técnicos. Por mais duas ou três vezes o jogo travou e, em outras ocasiões o áudio experimentou falhas cumulativas - em geral, os efeitos sonoros de ataque e feedbacks diversos iam desaparecendo, até que sobrava apenas a trilha sonora de fundo.

Somente ontem, no mais árduo dos confrontos, me dei conta de algo: nos últimos dias eu vinha derrotando não apenas o software Thor - God of Thunder em seu modo gauntlet, mas também o próprio hardware do sistema Nintendo 3 DS - especialmente, imagino eu, sua memória RAM.

A partida de ontem foi aquela onde não apenas alcancei, mas superei minha meta, derrotando 104 ondas e sendo abatido na seguinte. Durante o confronto os efeitos sonoros se foram completamente e, em minha imaginação, comparei a situação à de um combatente ensurdecido pelo ruídos do campo de batalha. A analogia tem lá seu fundamento, uma vez que a perda do feedback sonoro durante a partida causa certo desconforto e desorientação, pela perda das costumeiras pistas auditivas.

Por volta da nonagésima onda me questionei se valia a pena seguir adiante, temeroso de que o sistema de meu DS, com seus mais de 8 anos de operação não resistisse ao esforço. Ainda assim, achei que valia a pena experimentar e a partida veio a bom termo, com minha derrota no centésimo quinto round.

Mas que pensar, efetivamente, de minha "vitória" sobre a máquina? Certamente há que se pensar em suas condicionantes. A principal delas, creio eu, é que o sistema, com oito anos de uso,  já não opera mais em sua máxima potência - afinal de contas,  cedo ou tarde a entropia se faz sentir. Nesse sentido, há que se pensar mais em derrota do sistema que em vitória do usuário.

No entanto, ainda aqui há uma curiosidade: meu "hardware", por assim dizer, tem 28 anos de "uso".a mais que meu Nintendo. Não obstante, em nossas respectivas capacidades de processamento de informação, via interface de jogo, eu permaneci funcional,  enquanto o console entrou em colapso sistêmico.

Por banal que seja esse episódio,  me parece quase alentador "vencer a máquina" em tempos em que muitos advogam a substituição do humano em tantas tarefas demasiadamente humanas. Certo contemporâneo de Ford dizia que eram necessários trabalhadores baratos para operar máquinas caras. Infelizmente notamos que a mentalidade industrial pouco mudou nesses últimos 100 anos.

Apenas tardiamente me dou conta de que tanto Thor quanto John Henry travam suas respectivas batalhas usando martelos - uma das mais arcaicas, simples e eficientes ferramentas humanas. 

Não estranha que os antigos escandinavos e os trabalhadores dos EUA tenham associado o martelo a seus heróis míticos e folclóricos - afinal de contas, há pouco de heroico nas aventuras de uma perfuratriz a vapor, mas um humano com um martelo apela à imaginação, ainda que se trate apenas do Chapolim Colorado com sua marreta biônica. Não contavam com nossa astúcia!




domingo, 14 de fevereiro de 2021

Acidentalmente épico

Após 75 ondas de atacantes, o game resolveu travar em um enquadramento épico. Thor levando uma flechada certeira na nuca. Um troll com o arco retesado para a flechada seguinte. Dois trolls caídos no chão e um terceiro em pleno impacto contra o solo. Ao fundo, o impávido perfil da cidadela de Asgard. Acima, dois astros misteriosos no céu sombrio. Uma cena digna de tapeçaria medieval ou dos pinceis de William Blake. Já vi capturas de tela publicitárias menos dinâmicas e interessantes.



sábado, 13 de fevereiro de 2021

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

"A severidade é caminho que conduz ao ódio. Não do outro, mas de si próprio".

Sir Rodrigo Watzl


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Primatologia, Desigualdade e Capitalismo

Não simpatizo com Sader, mas achei essa formulação simples, direta e elegante - preciosa, enfim. Creio que Pickety aprovaria.

E faz pensar no que os índios Tupinambá visitando a França no século XVI disseram a Montaigne: não conseguiam compreender como os miseráveis franceses toleravam a opulência da nobreza, nem como uma criança (Carlos IX) podia ser o "chefe" de um povo tão numeroso. 

Não à toa é nesse mesmo ensaio que Montaigne profere uma de suas frases mais célebres: "Cada um acha bárbaro o que não é seu hábito".



Encantos da Arqueologia

Dedicado à amiga Ana Delmas, interlocutora original do texto que segue

Qualquer escavação arqueológica é mágica, indendentemente da relevância do sítio. 

Falo por experiência própria. Me recordo de certa ocasião em que encontrei uma pequena argola de ferro, de uns três centímetros de diâmetro, em uma humilde fortificação setecentista em Angra dos Reis, na enseada de Piraquara. No curso da escavação, a peça se mostrou isolada. 

A quadrícula onde a encontrei continha apenas um caco de telha, um caco de vidro e uma moeda de pouco valor, datada do Primeiro Reinado. 

Nunca soube, nem saberei, para que servia aquela argola, onde foi manufaturada, como ela chegou até lá,  nem quem a usou. Mas é fascinante pensar em todos esses mistérios sem respostas. 

São ínfimos testemunhos de que, em algum momento entre os séculos XVIII e XIX, naqueles isolados rincões do litoral atlântico, pessoas viveram ali, sentinelas olhando para o mar, à espera de alguma embarcação inimiga que provavelmente nunca apareceu.

Talvez tivessem um precário telheiro sobre a cabeça e guardassem dinheiro para gastar em alguma localidade próxima. 

Também é interessante pensar que aquela isolada fortificação em uma colina à beira-mar, cercada pela Mata Atlântica, estava ligada ao resto do mundo e aos acontecimentos de seu tempo. 

As pedras da construção (um rude trabalho de cantaria assentado com argamassa de óleo de baleia) eram de origem local, mas a moeda, a telha, o vidro e a misteriosa argola vieram de outros lugares - assim como, provavelmente, os soldados da guarnição.

De resto, o humilde sítio arqueológico testemunha o quanto a relevância que atribuímos a espaços e territórios muda ao longo do tempo. Em longínquos tempos, as autoridades coloniais lusitanas e, depois, a monarquia brasileira, julgaram que era necessário construir uma rede de fortificações para resguardar aquela enseada de ameaças variadas - de contrabandistas luso-brasílicos a corsários como Duguay-Trouin (que, bem se sabe, desembacara não muito longe dali, em Guaratiba, para saquear a Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro).

As fortificações propriamente ditas eram muito humildes - apenas toscas plataformas de vigilância, em pontos elevados, e outras, em pontos mais baixos, onde encontramos vestígios de baterias de canhões - embora só tenham sobrado os suportes de pedra, tendo as valiosas peças de artilharia certamente sido removidas para outro lugar que, no século XIX, tenha se tornado estrategicamente mais relevante (ou, quem sabe, o sistema de fortificações tenha sido desativado justamente para facilitar o tráfico clandestino de escravos, após a Bill Aberdeen).

No entanto, naquele longínquo ano de 2004, embriagado por Tolkien, minha imaginação quis jocosamente crer que aquela argola era um dos   Anéis de Poder saídos das sinistras forjas de Sauron. 

Cheguei então a colocar a larga argola em meu dedo anelar e brinquei com meus colegas de escavação - também eles embriagados por Tolkien. Talvez algum de nós tenha imitado o Gollum de Andy Serkis, como tanto se fazia na época: "My Precioussssss"!

Seduz imaginar que algum perverso Nâzgul tenha andado pela brasílica terra. Afinal de contas, a tirania de Mordor parece sempre perto daqui e há muitos Sarumans dispostos a destruir florestas em nome do progresso. Mas não há Ent que nos salve...



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Brasileiro pensa?

Brasileiro vota e dorme. Com alguma sorte, come; com mais sorte ainda, trabalha. Se tiver fé, reza (e vota). Pensar? Nem pensar... Já pensou?!


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Essência de um mau roteiro - "The Force is confuse with this one..."

Um dos casos em que uma imagem explica três películas totalizando quase oito horas de duração no relógio (e uma eternidade na poltrona do cinema). Seria melhor ver o filme do Pelé. Tragam George Lucas de volta!





sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Alvo e dardos

Há poucas coisas que me satisfazem mais que jogos de mira e precisão. Uma humilde sequência de lances bem agrupados já proporciona um prazer considerável. Nunca ganhei na loteria, mas duvido que seja alegria maior que acertar um alvo na mosca.







quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Sobre tédio, foco, estruturas, hábitos e métodos

Não creio que as sociedades e culturas humanas possuam uma "estrutura", para além de um nível meramente figurativo.

Tendo a seguir Bergson, quando qualifica o ser humano como um animal dotado do hábito de adquirir hábitos.

Com efeito, adquirimos hábitos de maneiras, no mínimo, curiosas. Após um mês na casa de minha mãe, usando o notebook dela, tenho sentido dificuldades ao utilizar o meu próprio, embora me acompanhe desde meados de 2017. Ao ligar o aparelho, meu primeiro impulso é de digitar a senha de minha mãe. Às vezes percebo o lapso no meio do caminho e corrijo a tempo, mas em outras recebo a resposta do sistema: "senha incorreta".

Não sou, decerto um estruturalista, no entanto reconheço que a análise estruturalista, em suas várias vertentes, ofereceu ao campo das humanidades valorosas contribuições - ao passo que os ditos "pós-estruturalistas" me parecem, via de regra, cronicamente perdidos em cacofônicas e pedantes reflexões, como cães correndo atrás dos próprios rabos, em estranhas misturas de niilismo e solipsismo.

Não à toa Nietzsche, padroeiro dos pós-estruturalistas encerrou seus escritos com uma carta a Jacob Burckhardt, onde afirmava que - contrariamente a seus projetos - fora impedido de tornar-se professor universitário pela necessidade de virar Deus. Logo depois foi hospitalizado em uma instituição psiquiátrica e, até onde se sabe, não escreveu mais uma linha sequer.

Em todo caso, há que se reconhecer que o mérito maior da abordagem estruturalista é seu rigor metodológico - embora, em alguns casos, tenha um que de rigor mortis.

Retornando a Bergson, me encanta notar o modo discreto, mas constante e consistente, com que figura na obra de Lévi-Strauss. Me pergunto se o autor das "Mitológicas" chegou a frequentar os cursos do célebre Nobel de Literatura no Collège de France - cronologicamente falando, é não apenas possível como muito provável.

Concluo, muito provisoriamente, que uma das grandes conquistas do projeto estruturalista foi esquadrinhar com rigoroso método, não exatamente o modo pelo qual nós, humanos, adquirimos e desenvolvemos hábitos, mas ao menos os complexos,  variados e dinâmicos fenômenos sociais e culturais que emergem de nossos hábitos desenvolvidos.

Se nos movemos em um constante "élan vital", como diria Bergson, a metodologia estruturalista ao menos foi (e ainda é) capaz de realizar um minucioso registro dos momentos que compõem esse movimento, um pouco como a câmera fotográfica, no abrir e fechar de seu obturador, consegue capturar, nos limites de seu quadro, um trecho de uma realidade mais ampla, embora sempre evanescente.

Por sinal, o próprio nome "obturador" dá o que pensar - a função da peça é ambígua: preservar o filme fotográfico de exposição à luz durante a maior parte do tempo. Um obturador permanentemente aberto só pruziria fotos "vazias" de imagens e significados. Para ser eficaz, a abertura do obturador precisa ser realizada apenas no instante correto.

Vale notar ainda que, assim como as antigas câmeras analógicas só revelavam sua "presa" muito após o clique, não é senão longas e maduras reflexões que conseguimos entender aquilo que se passou conosco ou com nossos semelhantes, em algum momento-lugar do sempre fluido espaço-tempo.

Como seres paradoxais que somos, é por paradoxos que nos conhecemos. Quando eu finalmente estiver bem afinado com a senha de meu próprio computador provavelmente cometerei lapsos com a senha do dispositivo de minha mãe. Talvez, até lá, o "obturador" de minha mente esteja funcionando melhor.

Finalizo citando uma instigante reflexão do crítico literário Colin Wilson com a qual "esbarrei" há poucas horas:

"Boredom is one of the great mysteries of psychology. It seems to be a matter of focusing, like focusing a very powerful microscope or telescope; and we are just not very good at focusing. 'Focusing' occurs in moods of serenity or of creative excitement. Its greatest enemy is the ordinary, noisy distractions of everyday reality".




quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Convivendo com monstros

Como dizia o matemático e filósofo Alfred Whitehead, tudo que é perverso se arruina pelas próprias forças. Quando há briga entre as cabeças de uma hidra, a melhor coisa a fazer é se afastar dela e deixar que se mordam umas às outras - pela simples impossibilidade de convencê-las a agir de outra forma.



Quem decide sobre nossas vidas? - Aulas presenciais, pandemia e "protocolos científicos"

"Não ser ouvido não é razão para silenciar-se".

Victor Hugo


Entrando em fevereiro de 2021 as redes de ensino públicas e privadas do Brasil retomam suas atividades letivas e volta à baila a discussão sobre a possibilidade de um retorno "seguro" às atividades presenciais - com ou sem vacina. Apesar da verdadeira matança ocorrida em 2020, há quem teime em brincar com a vida (alheia).

Inúmeros gestores públicos se valem de comitês científicos para deliberar sobre protocolos de retorno. Há aí um imenso, colossal problema.

Ninguém, em sã consciência, há de negar os avanços e confortos que a ciência moderna proporcionou à humanidade. No entanto, nada disso faz de cientistas - e, portanto, comitês científicos - autoridades inquestionáveis em relação à gestão de riscos.

Não quero com isso desacreditar a valorosa contribuição dos cientistas em relação à gestão sanitária da pandemia. No entanto, cientistas geralmente são bons em sinalizar aquilo que é potencialmente perigoso, mas péssimos em garantir que algo é seguro. É mais fácil provar a existência de um grave perigo que provar a inexistência de uma ameaça - ou, em termos de lógica formal, "ausência de evidência não significa evidência de ausência".

Para ficar apenas com um exemplo recente, vimos há poucos anos a terrível tragédia nuclear de Fukushima, da qual o Japão ainda não se recuperou completamente.

O desastre de Fukushima é um alerta contra a arrogância científica. Examinando em retrospecto, chega a ser absurdo que comitês científicos permitissem o funcionamento de um obsoleto reator nuclear de circuito aberto justamente no litoral de um país tão vulnerável a terremotos e tsunamis. Fukushima era uma tragédia anunciada, mas cientistas garantiam que a operação da usina era "segura". O preço dessa arrogância se conta em milhares de mortos, vítimas de envenenamento radiativo e famílias desalojadas de seus lares, com suas vidas desfeitas pelo risco de exposição à radiação residual.

Luc Ferry, filósofo e ex-Ministro da Educação da França, em obra de 1992, já criticava a ilusão de que comitês científicos sejam capacitados a tomar decisões éticas com repercussões na vida de terceiros. Cientistas, quaisquer que sejam suas especialidades, estão aptos apenas a prestar esclarecimentos técnicos sobre sua área de atuação profissional. Isso não significa que lhes caiba decidir sobre os desdobramentos éticos de tais pareceres, mormente quando se trate de questões de vida ou morte. Os cientistas que garantiram a "segurança" operacional de Fukushima são responsáveis por todas as mortes e danos provocados pela usina.

Da mesma forma, quando um comitê científico subscreve as decisões de qualquer político a respeito de retomada de atividades educacionais presenciais ele se torna responsável por todos os enfermos e mortos em decorrência dessa situação, seja entre estudantes, profissionais da educação e respectivos familiares.

A situação se torna ainda mais perversa quando os gestores da educação tornam a decisão de retorno ao ensino presencial facultativa aos estudantes e suas famílias, mas lançam mão de recursos administrativos variados para pressionar os profissionais da educação a retomar suas atividades.

Tomo a liberdade de adaptar o testemunho* de uma amiga professora que adoeceu de COVID devido à atabalhoada retomada de atividades presenciais no segundo semestre de 2020:

Estou apavorada. Sofri com essa doença. Só eu sei  o que passei. Quando foi dito novamente que tínhamos que ir à escola, não consegui dormir. Tive crises de ansiedade e pânico. Não sei, para mim, como será esse retorno. Meu médico me passou remédios para relaxar e dormir. Está muito difícil para mim. Ou perco minha sanidade ou perco meu sustento.

E temos aqui o cerne da questão. A profissional mencionada se sente ameaçada e coagida em sua subsistência a retomar suas atividades laborais, apesar de ter sofrido terrivelmente com a enfermidade. É exatamente por essa razão que cientistas não estão aptos a tomar decisões de ordem ética que afetem terceiros: é relativamente simples e fácil para um comitê científico definir protocolos sanitários "seguros" sem levar em consideração as complexas realidades vivenciadas em uma escola. 

Afinal de contas, protocolos são apenas instruções redigidas e registradas em documentos, que muitas vezes não funcionam na realidade. E aqueles que redigem os protocolos, muitas vezes, não são aqueles cuja pele será posta em jogo pela aplicação dos mesmos. Como em Fukushima, aqueles que dizem o que é "seguro" não costumam ser os mesmos que arriscam suas vidas. 

Para usar uma velhíssima analogia, são como generais que, no conforto de seus gabinetes, decidem sobre a vida de soldados lutando para sobreviver na trincheira. Qualquer ser humano com o menor escrúpulo percebe quão sórdida e perversa é essa situação.

O mínimo que comitês científicos e gestores educacionais poderiam fazer seria EFETIVAMENTE ouvir o que os profissionais com anos de experiência nas trincheiras escolares têm a dizer sobre a suposta eficiência e segurança de tais protocolos.

Mais ainda, é absurdo, injusto e mesmo indecente tornar o retorno facultativo aos estudantes, mas compulsório aos profissionais da educação. Isso significa simplesmente dizer que uns têm o direito a decidir sobre sua saúde, integridade física e, no limite, sua vida, enquanto a outros é negado esse direito.

É ainda mais paradoxal ver que tantos advogados de longa data do ensino remoto em condições "normais" se manifestam agora como intransigentes defensores da retomada de atividades educacionais presenciais e da importância da presença do estudante em sala de aula - em meio à pior crise sanitária global desde a Gripe Espanhola, com elevado risco de contágio.

Por fim, tudo que os profissionais da educação desejam é simplesmente o DIREITO de preservar a vida e a saúde deles mesmos, assim como de suas famílias. 2020 não foi um ano de ócio para os profissionais da educação; foi um período de intenso trabalho, tentando atender às necessidades dos estudantes sob as mais adversas condições.

Nenhum de nós - professores ou trabalhadores administrativos da educação - se recusa a trabalhar. Queremos apenas trabalhar em condições seguras para nós e nossos entes queridos.

O mero fato de ainda precisarmos lutar por esse direito diz muito sobre o modo como a sociedade realmente enxerga a educação e seus profissionais. Pouco adianta realizar homenagens piegas no Dia do Mestre quando nossa vida não é valorizada em um momento de crise sanitária. Não somos super-heróis nem sacerdotes; somos apenas profissionais dedicados à instrução da juventude - e é assim, com profissionalismo, que gostaríamos de ser tratados pela coletividade da qual fazemos parte.


*Texto ligeiramente modificado para preservar a privacidade de minha amiga.



Ambitopias

Toda distopia é a utopia de alguém... Meu maior sonho pode ser seu pior pesadelo. Seu Paraíso pode ser meu Purgatório. O "bem comum" é sempre evasivo, como uma miragem que se perde na distância. Desejos são criações insidiosas da mente, maçãs de casca lustrosa cujas entranhas permanecem imprevisíveis e indecifráveis. Platão era excelente filósofo, mas péssimo político. Toda idealização do melhor dos mundos, da sociedade ideal ou da mais perfeita república pode conter traiçoeiras sementes de tirania. Prefiro o diálogo e a dialética, com todas as imperfeições, dúvidas e ambiguidades do mundo real e das pessoas reais aos grandiosos delírios de ingênuos visionários.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Tragicômica profecia

A fantasiosa arrogância petista em toda sua pompa e circunstância. Só faltou combinar com os eleitores. Petistas e simpatizantes necessitam DESESPERADAMENTE abandonar semelhantes delírios messiânicos, que nos condenam coletivamente a aventuras eleitorais estapafúrdias e pouco edificantes. Lula não é Dom Sebastião, mas cada processo eleitoral desde 2016 vem sendo uma picaresca reedição de Alcácer-Quibir.



Sobre "santidades" e "religiões laicas" do século XXI

Contribuição de Rodrigo Watzl

Apesar do “choro e do ranger de dentes”, o inferno é um lugar provavelmente silencioso: na própria consciência, ninguém ouve a dor alheia.

A “deusa internet” disse o seguinte: “faça-se o som... e o som se fez”. Só que, se você pensar bem, sob esse ponto de vista, não parece haver muita diferença entre o silêncio sideral e uma enlouquecida torcida de futebol.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

"The mirror lied" and "Bandersnatch" - Do those works have a meaning?

I just played the intriguing "The mirror lied", a short and strange RPG game developed by Kan Gao, from Freebird Games. As a developer, myself, I can praise it's charming graphics, it's enjoyable gameplay and it's smoothly bumpy flow, reminiscent of old-school point-and-click games (but never the boring ones). Gao accomplished an atmospheric and involving game, which takes the player to a dreamlike experience, following Leah, the lonely protagonist.

The game takes roughly 20 minutes to end. Although set in a very common and even cozy house, "The mirror lied" is weird, to say the least, and, as I just found, has been the subject of many debates on it's meaning. Someone nicknamed "Katthecat" wrote a very good and comprehensive essay about it.

Gao took himself a part on this debates, to "explain" the game in a short video - all he does is shrugg his shoulders to the viewers, showing an ammused expression.

I guess the best answer on the "meaning" of the game is advanced by a short review on the site "Grinding Down". The work is just "an experiment intently too vague":

However, here, in The Mirror Lied, it all felt like an exercise in simply trying out mechanics and puzzles–nothing more, nothing less. A half-hearted attempt at a narrative to connect everything was provided with Leah, Birdy, and the phone calls, but the rest is left on the back-burner, because it doesn’t matter if you understand what is happening by the end, only that you got there, by figuring out how to unlock drawers, access a computer’s email network, and fill up a bucket with reddish liquid to water your ladder to freedom.

And I would add something more: Gao was probably trying to stir a buzz among indie gamers, in order to promote his masterpiece, "To the moon" (that I did not yet play). And it is fine to be so.

"The mirror lied" makes me think about "Bandersnatch", the interactive episode of the cult Netflix series "Black Mirror". The series itself is too grim, bleak and gloomy to me, but this interactive experiment left me curious. There are many endings, and people around the Internet kept endlessly discussing them and their supposed "meanings". There are many complex and even confuse flowcharts available on Google trying to outline "Bandersnatch".

I must confess the interactive episode felt exciting at first, but the chase for it's differente endings, through many repeated and looping paths soon became boring to me. As to the "meaning" of "Bandersnatch", I think the only way to "win" the challenge is just turning the smartphone off and moving on to some good book. 

"Bandersnatch", as I see it, is something like a practical joke or a prank on the viewers, intended to drag as much attention as possible and potential followers for the series. After all, attention is the most precious merchandise in our overconnected world. I must confess that I was only interested in that interactive experience by the overexcited chat about it among my high-school pupils.

Returning to the ingenious and enjoyable game developed by Kan Gao, I can say it made a very good work at creating a vague narrative exquisitely tailored to left the players puzzled after just half an hour (or even less) of gameplay. Quite an accomplishment, for an indie game.

To make my point, I guess both "Bandersnatch" and "The mirror lied" are purposefully "disturbing" and made to leave the public wondering about their respective "meanings" - that can be many or none. In both cases, I dare to say, the mean is the meaning. We, humans, are inclined to search for meaning everywhere - and I believe there are many meaningful thing in this world we live in.

However, many human endeavours are meaningless, by accident or by purpose - which I particularly believe is the case of Mr. Gao intriguing game. Such "meaningless" works of art may feel boring or disturbing just because we want to find not only a meaning but THE meaning, the true, final and unambiguous one. Our questions crave for answers, even if the answers are shoddy or far-fetched.

It is striking that all the interpretations about "The mirror lied" available on the web tend to be allegorical, concerning specially the main features of the game: the characters Leah and Birdy and the constantly watered plant. But are they truly allegories? Can they not be just a girl, a bird and an overgrown potted plant in some bizarre and lonel setting?

As a bad poet, I am fond of allegories and, generally, figurative language, but as a historian, I tend to be very cautious about them. And so, to conclude this reflexion, I quote Tolkien, scholar and novelist,  whose point of view about allegories is very keen, accurate and sound:

I cordially dislike allegory in all its manifestations, and always have done so since I grew old and wary enough to detect its presence. I much prefer history, true or feigned, with its varied applicability to the thought and experience of the readers. I think that many confuse applicabiliy with allegory; but the one resides in the freedom of the reader, and the other in the domination of the author.

In an interview about "The Lord of the Rings", the author was even more straight: "It has no allegorical intentions, general, particular, or topical, moral, religious, or political". 

And thus I must yet congratulate Mr. Gao as, mischievously shrugging his shoulders to the audience, he abdicates the "domination" of the artist for the sake of the "freedom" (and joy) of the players. "The mirror lied" is a dreamlike game, and, as it goes for dreams, find it's meaning might just ruin it's oniric atmosphere.

And to properly close, "Mischief managed!"