Tião Canhão é um jovem com delírios conspiratórios, opiniões bombásticas e ideias truculentas. Certo dia, ele inicia um canal no Youtube, onde expõe seu doentio modo de pensar de maneira grosseira e grotesca, em vídeos repletos de palavrões e expressões exaltadas.
A princípio, o canal de Tião rende poucas visualizações e tem menos de cem pessoas inscritas; é apenas mais um revoltado raivoso esbravejando nos esgotos do mundo digital.
Passado algum tempo, o jovem Juquinha recebe um vídeo de Tião Canhão, compartilhado por um primo em alguma rede social. Enojado e indignado, Juquinha compartilha o abominável vídeo, devidamente acompanhado de um longo texto recriminando e refutando veementemente as sandices de Tião.
Inúmeros amigos e conhecidos de Juquinha visualizam a postagem e se manifestam concordando com Juquinha ou defendendo Tião, gerando uma acalorada discussão, que se prolonga por alguns dias.
Algumas pessoas compartilham a postagem de Juquinha (com o vídeo de Tião devidamente anexado). Outras encaminham o texto e o vídeo em grupos de aplicativos de mensagens. Outros tantos, empolgados com o exaltado discurso de Tião, se inscrevem em seu canal ou, ao menos, curtem o vídeo.
Os algoritmos do Youtube, sempre vigilantes, percebem o pico de visualizações e começam a sugerir o vídeo a milhares de usuários que acompanham canais de conteúdo semelhante, atraindo mais inscritos para o canal.
Tião Canhão viralizou!
Agora, com uns poucos milhares de seguidores em diversas redes sociais, Tião se tornou um "influencer" com uma audiência fiel e mais alguns milhares de visualizações e compartilhamentos flutuantes.
Burro, mas não bobo, Tião aproveita os crescentes retornos da monetização de seu canal e começa também a vender camisetas com seus slogans incendiários.
Por outro lado, Tião virou uma subcelebridade odiada por muitos. Constantes manifestações de repúdio seguem sendo postadas contra Tião que, além disso, passa a ser ridicularizado em inúmeros memes. A hashtag #TiãoBobão se populariza.
Vendo tamanha oposição, os admiradores passam a ver Tião como um ousado pensador denunciando verdades inconvenientes, relevante defensor de elevados valores, aguerrido combatente contra os inimigos da sociedade, um incansável herói acossado por crueis perseguidores.
Tião Canhão, gradativamente, passa de mero "influencer" à condição de liderança de milhares de jovens que o defendem com unhas e dentes.
Sem grande dificuldade, Tião é eleito deputado estadual. Apesar de sua inépcia como legislador, Tião segue bombando nas redes.
Os sagazes dirigentes de seu partido veem no popular e polêmico Tião uma poderosa ferramenta eleitoral. O partido aposta em lançá-lo como candidato a prefeito de uma grande capital, mesmo sabendo que não há reais chances de vencer a eleição.
Apesar da carência de um programa de governo consistente e da baixa viabilidade de sua campanha, Tião ganha alguma cobertura da grande imprensa, pelas absurdidades que vocifera - que, afinal de contas, rendem belas manchetes, apesar de sua irrelevância. Em dias de marasmo eleitoral, Tião tem sempre alguma nova abominação para preencher a carência de notícias relevantes e entreter leitores entediados.
Em paralelo, o turbilhão virtual em torno de Tião não cessa de crescer e crescer, com novos memes, hashtags e acalorados debates em torno de sua lastimável figura. Até pessoas relativamente sensatas, a pretexto de equanimidade, ressaltam que Tião tem algumas ideias "interessantes".
Como esperado, Tião perde as eleições para prefeito, mas consegue aumentar a bancada de seu partido na Câmara de Vereadores, piorando ainda mais o já periclitante legislativo municipal de uma grande capital. Missão cumprida, Tião retorna a seu posto de deputado e inepto e, mais importante, agitador digital.
Mas Tião não está satisfeito, tem planos grandiosos para o futuro. A vida foi generosa até aqui: fama, poder, dinheiro. Nada mal. Tião sabe que há oportunidades maiores a sua espera. Os algoritmos o amam e um imenso exército de encarniçados opositores que involuntariamente ajuda a promove-lo.
Tião começou como uma lagartixa e agora é um crocodilo. Com um pouco mais de esforço, pode virar um dragão.
Excetuando certa licença poética, esta é uma história real. "Tião" existe. Me recuso a nomea-lo diretamente porque não quero mais alimentar um monstro. Eu mesmo, admito, em alguns poucos momentos, concedi a "Tião" uma atenção que ele não merecia.
Não desejo que "Tião Canhão" cresça ainda mais e nem que outros como ele surjam.
Aqueles que combatem monstros, muitas vezes, os alimentam sem perceber. Não alimente os monstros. Deixe que eles morram de fome.
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