"Eu tô putão! Eu tô puto contigo, Coronavirus! Eu vou te matar, Corona! Corona filho-da-puta! Tu vai morrer, Corona! Eu tô muito puto!"
De minha janela, acabo de ouvir esses gritos enfurecidos de um passante - ao que tudo indica, um paciente psiquiátrico.
Minha reação imediata foi o riso, mas provavelmente não há graça nenhuma. Antes de tudo, porque esses comportamentos exuberantes costumam ser o extravasamento de um inimaginável sofrimento íntimo.
Difícil imaginar o motivo de tamanha explosão de fúria. Talvez o passante em questão tenha algum ente querido doente ou até tenha perdido alguém. Talvez seja simplesmente reflexo do bombardeio midiático em torno do tema.
Me lembra o interessante livro O homem que se achava Napoleão - Por uma História política da loucura, da historiadora Laure Murat, que se debruçou sobre prontuários de pacientes internados em instituições psiquiátricas francesas durante a Revolução, constatando que muitos deles apresentavam delírios psicóticos relacionados ao contexto político. Um dos casos mais curiosos era de um homem que julgava ter sido guilhotinado e afirmava, contra todas as evidências, não ter mais cabeça.
Apesar de repetitiva (ou talvez por isso) a fala do homem que acaba de passar pelo meu prédio tem nuances muito elucidativas.
Antes de tudo, chama atenção o modo como ele personifica o vírus. Dirige-se a ele como se fosse uma pessoa humana, dotada de intencionalidade. Toma o vírus efetivamente por interlocutor, tratando-o na segunda pessoa.
Aos berros, revela ao vírus sua raiva e sua inequívoca intenção de vingança e de retribuir o malefício: "Eu vou te matar, Corona!" - uma ameaça que projeta sobre o próprio vírus a capacidade de sentir medo.
Creio que Lévy-Bruhl, Bergson, Huizinga e Lévi-Strauss, cada um a seu modo, teriam muito a dizer sobre a triste e curiosa cena passada em minha rua. Certas passagens de La pensée sauvage me vêm à mente enquanto traço essa reflexão. O pensamento "selvagem" dormita no homem "civilizado", e vem à tona na sibilina linguagem dos sonhos, das artes e da loucura.
De certo modo, o passante furioso se faz porta-voz de cada um de nós: estamos "putões" com o Corona, mas nossas cartesianas racionalizações nos impedem de expressar dessa maneira. Que são nossos esforços de criar vacinas e coqueteis antivirais senão essa mesma pulsão vital por matar o Corona? Não é a fé desesperada e irracional de alguns na milagrosa cloroquina um sentimento muito próximo ao do passante em seu delírio?
Espero, sinceramente, que esse homem fique bem e tenha quem o acolha em seu desespero.
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