Nas últimas semanas peguei o Nintendo 3DS que andava há meses esquecido e resolvi mergulhar em suas janelas virtuais. Restava escolher um título.
Optei por Star Fox 64 3D, remake do clássico de 1997. Pilotar naves espaciais pelo sistema estelar Lylat - nada mal para tempos de confinamento.
Nenhum reencontro com um grande clássico, qualquer que seja a mídia, é igual ao anterior. Não poderia ser diferente com uma das obras-primas de Miyamoto Sensei. Jogar Star Fox em tempos de pandemia se mostrou uma experiência única.
O jogo é um bizarro e divertido pastiche de Star Wars, combinado a elementos cartunescos, marionetes bunraku e pinceladas de espiritualidade xinto. Reza a lenda que a inspiração para o tema veio de um santuário em Tóquio dedicado a Inari, divindade associada a raposas e por vezes representada sob a forma do animal.
Deste modo, o jogo encena as aventuras do mercenário e piloto espacial Fox McCloud. Todos os personagens são antropozoomórficos, cartunescos e se movimentam como marionetes. Os diálogos são deliberadamente exagerados, com uma gravidade propriamente burlesca, sem jamais perturbar o acelerado ritmo da aventura, mantendo um delicado e virtuoso equilíbrio entre epopeia e comédia. É um game que se faz sério ao rir ininterruptamente de si mesmo - como apenas Miyamoto consegue fazer e nenhuma continuação da franquia soube emular.
Mas nesse período pandêmico quem capturou minha atenção foi o vilão, Andross, um macaco albino que remete ao macaco-da-neve nativo das montanhas japonesas. Seus capangas retratados ao longo do game possuem forma símia ou reptiliana - com maior destaque para os símios. De certo modo, a escolha de personagens primatas causa um curto circuito na caracterização antropozoomórfica - afinal de contas, a morfologia original dos macacos já é demasiadamente humana, deixando de causar a mesma estranheza que raposas, pavões, sapos, lebres e outros animais humanizados.
O próprio nome "Andross" é muito significativo, remetendo muito obviamente ao grego andrós, genitivo para adultos masculinos e radical de muitas palavras nas línguas modernas. Longe de ser nome "found in translation", cabe lembrar que o jogo foi desde o início uma produção nipo-britânica, em parceria com a Argonaut Software, então cooptada pela Nintendo por seus significativos avanços na área de computação gráfica 3D. Com efeito, os nomes dos personagens foram originalmente pensados em inglês e apenas depois transliterados para o japonês - transformando o vilão em "Andorufu" na versão japonesa.
Para além disso, a participação de Andross na trama também se mostra demasiadamente humana. O macaco é um cientista maluco, cujos "evil experiments" levam ao seu banimento do luxuriante, dadivoso e utópico planeta Corneria para um exílio forçado em Venom (muito sugestivamente "Veneno"), um planeta vulcânico descrito como "a barren wasteland" na abertura do jogo.
Em Venom, Andross retoma seus macabros experimentos e constroi uma pesada infraestrutura industrial, preparando-se para uma guerra de conquista que poria todo o sistema de Lylat sob seu controle.
Andross não mostra qualquer respeito à Vida, sendo retratado como um impenitente poluidor, o que fica particularmente evidente na "missão" executada no planeta Zonness, cujas águas foram completamente contaminadas por substâncias tóxicas.
Produzido em meados dos anos 90, Star Fox 64 é bem característico de seu tempo. Na época que testemunhou a inesquecível conferência Eco 92 no Rio abundavam fantasias e alegorias infantojuvenis com temática ecológica, a exemplo da animação Capitão Planeta, que fez tremendo sucesso em vários países e da sofisticada e premiadíssima animação Princesa Mononoke, do mestre Hayao Miyazaki, igualmente lançada em 1997.
A belíssima película de Miyazaki, situada em um Japão atemporal, retrata a guerra entre os seres naturais e sobrenaturais da floresta e os humanos da vizinha refinaria metalúrgica. Sem apelar para maniqueísmo ou pieguice, os humanos da refinaria são desclassificados, prostitutas e leprosos arrebanhados pela empreendedora Eboshi-Sama, que lhes proporciona uma vida digna com o suor de seus rostos. Eboshi é pertinaz e intransigente, mas dificilmente uma vilã. Os seres da floresta, a seu turno são variados e conduzem, cada um a seu modo, a guerrilha contra os humanos que invadem e depredam seu espaço. Sen, a brutal e encantadora "Princesa Mononoke" do título, é uma jovem criada por lobos.
Entre as criaturas da floresta se encontram os macacos (mais semelhantes a gorilas que macacos-da-neve), cujos sinistros olhos vermelhos traem uma perversidade que choca aos outros animais. Numa cena memorável, durante uma altercação sobre o destino de um humano desacordado, os honoráveis lobos acusam os símios de perfídia, culminando na gravíssima acusação: "Vocês estão se tornando humanos".
É nesse mesmo limiar entre animalidade e humanidade que encontramos Andross e seus lacaios símios em Star Fox. O que mais me despertou a atenção jogando o título nesses tempos pandêmicos é a obsessão de Andross em criar "bioweapons". Armas químicas e biológicas também estavam na ordem do dia em meados dos 90 - e mais tarde chegaram mesmo a servir de pretexto para a vexaminosa guerra do Iraque. Muitos adeptos de teorias da conspiração hoje também não hesitam em sustentar que o COVID-19 seria uma arma biológica produzida pelo governo chinês - o "chinese virus" ou "Comunavirus".
Jogando no presente contexto pandêmico são ainda mais risíveis as armas biológicas de Andross: em lugar de traiçoeiros microorganismos, o game oferece um elenco de gigantescos monstrengos à Godzilla, que geralmente despertam nos protagonistas uma mistura de indignação, repulsa e compaixão. Matam as inocentes feras artificiais com lágrimas nos olhos, por assim dizer. Em diálogos cujo tom muito lembra a dinâmica dupla Adam West e Burt Ward, os mocinhos se perguntam como Andross ousava fazer tais experimentos.
1997 era logo ali, mas como estamos distantes desse "ecologismo" ingênuo de Star Fox. Mais de duas décadas se passaram, e a catastrofe ambiental se nos mostra muito mais patente - inclusive na pandemia que nos arreganha os dentes. E nós, bichos-primatas como Andross, somos em última análise os "vilões" da trama.
Na abertura do game uma imagem exibe um imenso Andross com expressão gulosa, com ambas mãos estendidas sobre o planeta Corneria, cuja aparência muito lembra a própria Terra. Soa e ressoa familiar.
Como a película de Miyazaki, o game de Miyamoto opõe as forças da "humanidade" e da "natureza", respectivamente representadas pelo antropoide Andross e pelo quarteto de protagonistas - uma raposa, um pavão, um sapo e uma lebre (animais com forte importância no folclore japonês ou na religiosidade xinto).
Essa oposição se desdobra igualmente entre duas polaridades, no binômio Corneria-Venom, implícita no próprio desenrolar da trama; independentemente do trajeto selecionado pelo usuário, o jogo sempre começa com a defesa de Corneria e termina pela tomada de Venom.
Corneria (que provavelmente deriva de "corn") é uma utopia sustentável, onde uma futurista megalópole se integra harmoniosamente ao litoral e à floresta circundantes. A resistência corneriana é organizada pelo General Pepper - um cão, o animal doméstico mais próximo do ser humano.
Pepper, o cão, é uma benigna figura de autoridade, e é também o inimigo mais odiado por Andross. Na abertura, a narrativa do banimento do primata é representada por uma imagem onde metade do rosto Andross se situa em primeiro plano, à esquerda da tela, com expressão raivosa, enquanto Pepper figura da cintura para cima, com o dedo em riste, em segundo plano, à direita.
Desde o nome de Corneria à liderança canina, tudo nos remete ao universo da agricultura e da domesticação, a uma integração benigna entre natureza e engenho humano.
No polo oposto temos o peçonhento planeta Venom, de natureza hostil e estéril, mas sede do império industrial de Andross. Curiosamente, no entanto, a base do maligno Andross e cenário do confronto final não é uma futurista planta industrial, mas um arcaico e sinistro templo decorado com estátuas e relevos simiescos - um estranho contraste entre arcaísmo e modernidade.
Somente jogando nesse contexto pandêmico me dei conta de algo que estava há duas décadas diante de mim. Star Fox 64 (SF 64) compõe uma espécie de díptico com outro projeto de Miyamoto, The Legend of Zelda - Ocarina of Time, lançado em 1998 e desenvolvido simultaneamente a SF 64. Apesar da imensa distância de gênero e temática, ambos games possuem profundas ressonâncias que, imagino, não foram conscientemente trabalhadas por Miyamoto. Apesar do desenvolvimento simultâneo, jamais vi Miyamoto ou quem quer que seja cotejar as duas obras, aparentemente tão dessemelhantes.
Muitos consideram Ocarina of Time (OOT) o melhor game de todos os tempos - é quase uma unanimidade; não subescrevo essa opinião, mas concordo sem hesitar que é a melhor obra de Miyamoto Sensei.
Ao contrário da ambientação sci-fi e futurista, OOT é uma fantasia "euromedieval" situada nas terras de Hyrule. O heroi, Link, é personagem genérico (ao contrário do genioso Fox), mas interessa o vilão, Ganondorf - um inescrupuloso feiticeiro, equivalente medieval do cientista louco Andross. Ambos são figuras que ambicionam conhecimento e poder sem limites (integrando o imenso e inesgotável repertório de figuras ficcionais faustianas).
Apesar da aparência europeia, a cosmologia de Hyrule remete sobretudo ao imaginário xintoísta. O mundo é criação coletiva das "Deusas Douradas", Jynn, Nayru e Farore, respectivamente deidades do Poder, da Sabedoria e da Coragem. OOT é o primeiro game da franquia Zelda em que as três figuram com proeminência. As três são retratadas como figuras etéreas e luminosas, com vaga silhueta antropomórfica, nas cores azul, verde e vermelho - ao contrário de outros games da franquia, onde ganham formas humanas bem definidas. A feminilidade do poder criador em Hyrule bem remete à proeminência da poderosa e graciosa Amaterasu no panteão xinto. Após a criação do mundo, as Deusas Douradas se retiram para o etéreo Reino Sagrado, deixando em sua saída a TriForce, um resíduo de sua potência criadora.
A primeira metade de OOT, na infância de Link, gira em torno das maquinações rasputinescas de Ganondorf para obter a TriForce e dominar o mundo. Indigno do poder divino, a TriForce se esfacela em suas mãos. O feiticeiro captura para si o Poder de Jynn, mas a Sabedoria de Nayru é absorvida pela princesa Zelda e a Coragem de Farore é assimilada pelo herói Link.
Com o Poder adquirido, Ganondorf se instala como um tirano e profana os templos de Hyrule, causando desequilíbrios naturais e transtornando as vidas dos povos (ou "raças" - sic) de Hyrule. As florestas ficam repletas de monstros, o vulcão onde vivem os telúricos goron sai de controle, o território aquático dos zora é congelado, o deserto do povo gerudo é tomado por tenpestades de areia, fantasmas poluem o poço do vilarejo Kakariko e assim por diante. Já adulto, Link inicia uma jornada para matar os monstros que infestam os templos da Floresta, da Água, do Fogo, das Sombras, e do Espírito. Conforme a pureza de cada templo é restaurada, partes do mundo começam a se regenerar, gradativamente conduzindo ao confronto final contra o feiticeiro em sua torre. Após o derradeiro embate, a TriForce é restaurada e o equilíbrio é restabelecido nas terras de Hyrule.
Como se sabe, pureza e rituais de purificação são um dos aspectos centrais da religiosidade xinto em suas múltiplas vertentes, desde as periódicas misogi harai, purificações de efeito temporário, geralmente obtidas nos grandes festivais anuais ou momentos cruciais da vida dos indivíduos, ao constante esforço ascético de misogi shugyo, empreendido por muitos indivíduos e bastante enfatizado entre praticantes de artes marciais. O local privilegiado para os rituais de purificação, obviamente, são os santuários, grandes ou pequenos. Nada mais razoável, portanto, que o heroi Link se apresente como um purificador de santuários ou que a batalha final contra o cientista Andross se trave num arcaico templo.
Com fortes elementos animistas, a religiosidade xintoísta pouco diferencia natureza, "sobrenatureza" e, por incrível que pareça, tecnologia - lugares, seres vivos variados e artefatos podem ser imbuídos de shin, espírito ou ser kami, deidades. Kami, por sinal, é um termo polissêmico que bem pode significar "divindade" como "cabeça" ou "autoridade", a depender dos contextos.
Esses elementos figuram de maneiras variadas na rica cinematografia de Miyazaki. O célebre e simpático Totoro é o espírito de uma centenária canforeira sagrada - um meigo espírito-árvore, enfim. No encantador A viagem de Chihiro, a protagonista se vê transportada a um mundo-outro onde acaba forçada a trabalhar numa casa-de-banhos onde os espíritos vão relaxar. Numa das cenas mais importantes e catárticas da animação, Chihiro atende um espírito imundo, disforme, malcheiroso e repelente. Durante o banho, vão saindo do espírito sujeiras variadas, inclusive objetos claramente identificáveis como lixo produzido por seres humanos. Logo se desencadeia uma violenta torrente de imundície, ao fim da qual se revela que aquele repelente espírito era um rio poluído; límpido, aliviado, revigorado e grato, ele flui vigorosamente para fora da casa de banhos. A alegoria de Miyazaki nos fala tanto sobre a presença vibrante do xintoísmo na cultura nipônica quanto escancara a contradição de um povo que polui a natureza que ele próprio imbui de sacralidade.
Para todos os efeitos, esse é um universo de referências onde poluição natural e poluição ritual eventualmente convergem (nem sempre, nem para todos). Andross, o cientista maluco e Ganondorf, o tenebroso feiticeiro, são faces da mesma moeda. Em Lylat ou Hyrule, cada um polui seu cosmos ficcional, com tecnologia amoral ou com magia sombria.
Não muito curiosamente, por detalhados que sejam ambos universos sob muitos aspectos, deixam a desejar em relação à política. Em SF64 a figura de autoridade benigna é um general, enquanto em OOT se destaca a princesa Zelda. Ambos games parecem interessados em temas ecológicos em suas dimensões científica e sagrada, mas não política.
Não custa lembrar que no encerramento das Olimpíadas de 2016 a Nintendo cedeu seus direitos intelectuais e suas marcas para que o primeiro-ministro Shinzo Abe emergisse em pleno Maracanã de uma verde manilha de esgoto como Mario, protagonista da franquia Nintendo mais famosa no Ocidente. Muita gente achou a cena fofa, engraçada e simpática - conhecendo Abe, ultraconservador nacionalista que flerta com o autoritarismo e sonha com a reconstituição do Japão enquanto potência bélica, me senti nauseado. Antes viesse fantasiado de Andross ou Ganondorf.
Olhando retrospectivamente, a figura de Abe emergindo dos esgotos virtuais me parece quase emblemática, quiçá como um presságio. Eis que agora, graças à terrível pandemia, os Jogos Olímpicos de Tóquio foram adiados para 2021, enquanto o próprio Abe toma medidas polêmicas e controversas no combate ao COVID-19.
Me pego pensando nas admiráveis figuras de Miyamoto e Miyazaki. Quase ausentes nos games do primeiro, as dimensões políticas da vida (inclusive da ecologia) costumam figurar nas animações do segundo, especialmente no mencionado Princesa Mononoke e no pós-apocalíptico Nausicaa do Vale do Vento.
Mais que falar, Miyazaki faz. Numa época em que trabalhadores da animação japonesa recebiam pagamentos miseráveis, se entregou à luta sindical e, mais tarde, fundou com o amigo Isao Takahata o famoso Studio Ghibli, cujos profissionais são valorizados e bem remunerados.
Em meu confinamento, parti para pilotar minha nave em Lylat e agora pouso no Acre, relembrando a célebre frase de Chico Mendes: "Ecologia sem luta de classes é jardinagem". Mesmo não sendo marxista, concordo com a essência da mensagem de Mendes e Miyazaki - não haverá renovação ecológica sem profundas mudanças sociais, econômicas e políticas em nosso mundo. Não enquanto Abes e outros circularem em nossos esgotos.
COVID-19 está aí para provar.
Somente jogando nesse contexto pandêmico me dei conta de algo que estava há duas décadas diante de mim. Star Fox 64 (SF 64) compõe uma espécie de díptico com outro projeto de Miyamoto, The Legend of Zelda - Ocarina of Time, lançado em 1998 e desenvolvido simultaneamente a SF 64. Apesar da imensa distância de gênero e temática, ambos games possuem profundas ressonâncias que, imagino, não foram conscientemente trabalhadas por Miyamoto. Apesar do desenvolvimento simultâneo, jamais vi Miyamoto ou quem quer que seja cotejar as duas obras, aparentemente tão dessemelhantes.
Muitos consideram Ocarina of Time (OOT) o melhor game de todos os tempos - é quase uma unanimidade; não subescrevo essa opinião, mas concordo sem hesitar que é a melhor obra de Miyamoto Sensei.
Ao contrário da ambientação sci-fi e futurista, OOT é uma fantasia "euromedieval" situada nas terras de Hyrule. O heroi, Link, é personagem genérico (ao contrário do genioso Fox), mas interessa o vilão, Ganondorf - um inescrupuloso feiticeiro, equivalente medieval do cientista louco Andross. Ambos são figuras que ambicionam conhecimento e poder sem limites (integrando o imenso e inesgotável repertório de figuras ficcionais faustianas).
Apesar da aparência europeia, a cosmologia de Hyrule remete sobretudo ao imaginário xintoísta. O mundo é criação coletiva das "Deusas Douradas", Jynn, Nayru e Farore, respectivamente deidades do Poder, da Sabedoria e da Coragem. OOT é o primeiro game da franquia Zelda em que as três figuram com proeminência. As três são retratadas como figuras etéreas e luminosas, com vaga silhueta antropomórfica, nas cores azul, verde e vermelho - ao contrário de outros games da franquia, onde ganham formas humanas bem definidas. A feminilidade do poder criador em Hyrule bem remete à proeminência da poderosa e graciosa Amaterasu no panteão xinto. Após a criação do mundo, as Deusas Douradas se retiram para o etéreo Reino Sagrado, deixando em sua saída a TriForce, um resíduo de sua potência criadora.
A primeira metade de OOT, na infância de Link, gira em torno das maquinações rasputinescas de Ganondorf para obter a TriForce e dominar o mundo. Indigno do poder divino, a TriForce se esfacela em suas mãos. O feiticeiro captura para si o Poder de Jynn, mas a Sabedoria de Nayru é absorvida pela princesa Zelda e a Coragem de Farore é assimilada pelo herói Link.
Com o Poder adquirido, Ganondorf se instala como um tirano e profana os templos de Hyrule, causando desequilíbrios naturais e transtornando as vidas dos povos (ou "raças" - sic) de Hyrule. As florestas ficam repletas de monstros, o vulcão onde vivem os telúricos goron sai de controle, o território aquático dos zora é congelado, o deserto do povo gerudo é tomado por tenpestades de areia, fantasmas poluem o poço do vilarejo Kakariko e assim por diante. Já adulto, Link inicia uma jornada para matar os monstros que infestam os templos da Floresta, da Água, do Fogo, das Sombras, e do Espírito. Conforme a pureza de cada templo é restaurada, partes do mundo começam a se regenerar, gradativamente conduzindo ao confronto final contra o feiticeiro em sua torre. Após o derradeiro embate, a TriForce é restaurada e o equilíbrio é restabelecido nas terras de Hyrule.
Como se sabe, pureza e rituais de purificação são um dos aspectos centrais da religiosidade xinto em suas múltiplas vertentes, desde as periódicas misogi harai, purificações de efeito temporário, geralmente obtidas nos grandes festivais anuais ou momentos cruciais da vida dos indivíduos, ao constante esforço ascético de misogi shugyo, empreendido por muitos indivíduos e bastante enfatizado entre praticantes de artes marciais. O local privilegiado para os rituais de purificação, obviamente, são os santuários, grandes ou pequenos. Nada mais razoável, portanto, que o heroi Link se apresente como um purificador de santuários ou que a batalha final contra o cientista Andross se trave num arcaico templo.
Com fortes elementos animistas, a religiosidade xintoísta pouco diferencia natureza, "sobrenatureza" e, por incrível que pareça, tecnologia - lugares, seres vivos variados e artefatos podem ser imbuídos de shin, espírito ou ser kami, deidades. Kami, por sinal, é um termo polissêmico que bem pode significar "divindade" como "cabeça" ou "autoridade", a depender dos contextos.
Esses elementos figuram de maneiras variadas na rica cinematografia de Miyazaki. O célebre e simpático Totoro é o espírito de uma centenária canforeira sagrada - um meigo espírito-árvore, enfim. No encantador A viagem de Chihiro, a protagonista se vê transportada a um mundo-outro onde acaba forçada a trabalhar numa casa-de-banhos onde os espíritos vão relaxar. Numa das cenas mais importantes e catárticas da animação, Chihiro atende um espírito imundo, disforme, malcheiroso e repelente. Durante o banho, vão saindo do espírito sujeiras variadas, inclusive objetos claramente identificáveis como lixo produzido por seres humanos. Logo se desencadeia uma violenta torrente de imundície, ao fim da qual se revela que aquele repelente espírito era um rio poluído; límpido, aliviado, revigorado e grato, ele flui vigorosamente para fora da casa de banhos. A alegoria de Miyazaki nos fala tanto sobre a presença vibrante do xintoísmo na cultura nipônica quanto escancara a contradição de um povo que polui a natureza que ele próprio imbui de sacralidade.
Para todos os efeitos, esse é um universo de referências onde poluição natural e poluição ritual eventualmente convergem (nem sempre, nem para todos). Andross, o cientista maluco e Ganondorf, o tenebroso feiticeiro, são faces da mesma moeda. Em Lylat ou Hyrule, cada um polui seu cosmos ficcional, com tecnologia amoral ou com magia sombria.
Não muito curiosamente, por detalhados que sejam ambos universos sob muitos aspectos, deixam a desejar em relação à política. Em SF64 a figura de autoridade benigna é um general, enquanto em OOT se destaca a princesa Zelda. Ambos games parecem interessados em temas ecológicos em suas dimensões científica e sagrada, mas não política.
Não custa lembrar que no encerramento das Olimpíadas de 2016 a Nintendo cedeu seus direitos intelectuais e suas marcas para que o primeiro-ministro Shinzo Abe emergisse em pleno Maracanã de uma verde manilha de esgoto como Mario, protagonista da franquia Nintendo mais famosa no Ocidente. Muita gente achou a cena fofa, engraçada e simpática - conhecendo Abe, ultraconservador nacionalista que flerta com o autoritarismo e sonha com a reconstituição do Japão enquanto potência bélica, me senti nauseado. Antes viesse fantasiado de Andross ou Ganondorf.
Olhando retrospectivamente, a figura de Abe emergindo dos esgotos virtuais me parece quase emblemática, quiçá como um presságio. Eis que agora, graças à terrível pandemia, os Jogos Olímpicos de Tóquio foram adiados para 2021, enquanto o próprio Abe toma medidas polêmicas e controversas no combate ao COVID-19.
Me pego pensando nas admiráveis figuras de Miyamoto e Miyazaki. Quase ausentes nos games do primeiro, as dimensões políticas da vida (inclusive da ecologia) costumam figurar nas animações do segundo, especialmente no mencionado Princesa Mononoke e no pós-apocalíptico Nausicaa do Vale do Vento.
Mais que falar, Miyazaki faz. Numa época em que trabalhadores da animação japonesa recebiam pagamentos miseráveis, se entregou à luta sindical e, mais tarde, fundou com o amigo Isao Takahata o famoso Studio Ghibli, cujos profissionais são valorizados e bem remunerados.
Em meu confinamento, parti para pilotar minha nave em Lylat e agora pouso no Acre, relembrando a célebre frase de Chico Mendes: "Ecologia sem luta de classes é jardinagem". Mesmo não sendo marxista, concordo com a essência da mensagem de Mendes e Miyazaki - não haverá renovação ecológica sem profundas mudanças sociais, econômicas e políticas em nosso mundo. Não enquanto Abes e outros circularem em nossos esgotos.
COVID-19 está aí para provar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário