quinta-feira, 16 de abril de 2020
Evitando a fadiga - e a pandemia
Outra emblemática imagem do momento presente: a estátua erigida em honra ao carteiro Jaiminho, no Estado de Michoacán, México, sendo higienizada contra o COVID-19.
Como bem sabe a maioria dos latino-americanos de minha geração, o carteiro Jaiminho (ou Jaimito) é um personagem introduzido tardiamente no seriado mexicano Chaves ou, no original, El Chavo del Ocho.
O personagem, encarnado pelo ator Raúl "Chato" Padilla, passou a integrar o elenco após a saída de dois atores e personagens de peso, Ramón Valdés e Carlos Villagrán, que viviam respectivamente Seu Madruga e Quico (ou Don Ramón e Kiko, conforme se prefira).
O bonachão Jaiminho aparece então como o novo carteiro da vizinhança, natural da (então) obscura localidade de Tangamandápio. A característica mais saliente do personagem é seu firme empenho em "evitar a fadiga". A maioria das gags envolvendo o personagem gira em torno de sua lentidão e sua preguiça, que muitas vezes o levam a ser folgado e abusado.
Um dos maiores feitos de Jaiminho foi, sem sombra de dúvida, fazer com que milhões de espectadores descobrissem a existência de Tangamandápio. Em tempos anteriores à Internet, muito se especulava sobre a real existência da localidade. O fato é que o lugarejo não apenas existe como há alguns anos erigiu uma estátua em homenagem ao personagem e seu intérprete, em gratidão pelo renome internacional que trouxe ao povoado. Por sinal, o mero fato de que a pandemia, saindo de Wuhan, tenha chegado a um "fim-de-mundo" latino-americano como Tangamandápio é muito emblemático do mundo hiperconectado em que vivemos.
A bem dizer, Jaiminho é um personagem um tanto apagado e nunca parei para refletir mais detidamente sobre ele em minhas meditações chavológicas. A imagem acima e o contexto de pandemia e quarentena, no entanto, me convidam a pensar melhor sobre Jaiminho, o carteiro.
Com seu ar pacato e imperturbável, Jaiminho é um verdadeiro subversivo. Para evitar a fadiga, burla as normas dos Correios e mesmo o decoro comum - sem jamais se mostrar agressivo ou raivoso (afinal de contas, a raiva também cansa).
É interessante notar que um dos adereços do personagem é sua bicicleta. Uma escolha de figurino brilhante, pois Jaiminho jamais a usa. Na verdade, o carteiro oculta da empresa de correios o fato de que não sabe andar de bicicleta - o que acarretaria em sua demissão, como explica aos demais personagens em diversas ocasiões. Desse modo, Jaiminho arrasta sempre consigo sua inútil bicicleta, oferecendo oportunidades para várias gags.
Vale refletir melhor sobre a relação entre Jaiminho e sua bicicleta. O veículo serviria para que o carteiro, atendendo às urgentes necessidades da sempre apressada modernidade, executasse seu trabalho com maior rapidez, mas é precisamente o contrário que ocorre - longe de auxiliar, a bicicleta se torna um estorvo, um fardo adicional que acaba atrasando o trabalho de Jaiminho.
Desse modo, a singela bicicleta acaba encarnando todas as traquitanas e bugigangas modernas que, em teoria, deveriam simplificar a vida, mas a tornam apenas mais complicada. A bicicleta de Jaiminho é um pouco como tantos sistemas informatizados atabalhoadamente introduzidos tanto pela iniciativa pública quanto privada que, longe de facilitar a vida dos profissionais, só reduzem sua eficiência e os distraem de tarefas mais importantes.
A pesada pasta carregada por Jaiminho também convida a refletir. Quanto daquela correspondência, tão penosamente transportada pelo carteiro, é realmente relevante? Faz pensar nos megabytes de e-mails e mensagens que recebemos e emitimos diariamente, drenando nosso tempo, muitas vezes a troco de nada.
Pensando bem, em muitos aspectos, a figura de Jaiminho ressoa em outra modulação muitos dos temas que perpassam a caracterização de Seu Madruga. Apesar das disparidades de temperamento, o pacato carteiro tem muito em comum com o explosivo malandro-biscateiro-faz-tudo. O zeloso empenho do tangamandapiano em evitar a fadiga ecoa a madruguiana sabedoria: "Não existe trabalho ruim - ruim é ter que trabalhar".
Aprofundando o paralelo, tanto Madruga quanto Jaiminho pertencem ao universo de figuras deliberada ou involuntariamente marginalizadas da modernidade, por deserção ou inadaptação. Madruga é o malandro da periferia urbana, pouco letrado, sobrevivendo às margens do emprego formal. Jaiminho é o homem egresso do interior, de um lugarejo rural como Tangamandápio à selva urbana da Cidade do México.
Sua mansidão no falar é muito característica de tantos interioranos transplantados à pressa louca da cidade grande. Me lembra um bocado meu antigo e querido barbeiro, Seu Virgílio, que já conheci sexagenário. Viera em sua juventude de Tupaciguara, lugarejo de Minas Gerais, para viver nos subúrbios do Rio de Janeiro; depois de tantos anos, perdera o sotaque mineiro, mas não a fala mansa.
Embora muito laborioso, Seu Virgílio trabalhava sem pressa, com esmero e, mais importante, com uma conversa inteligente e agradável, em prosa mansa e vivaz, transmitindo uma serenidade e uma alegria de viver revigorantes. Sua humilde barbearia era um oásis de tranquilidade nesse mundo inquieto e ansioso.
Para evitar a fadiga do leitor, encerro por aqui esse texto, com um convite: que a pandemia e a quarentena que ora experimentamos nos ajudem a viver um pouco mais como Jaiminho, com menos pressa e sofreguidão, no ritmo de Tangamandápio...
Dedico esse texto ao meu amigo Fernando, que me enviou a imagem acima.
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