Então Deus disse, "Façamos a humanidade a nossa imagem de acordo com nossa semelhança; e deixemo-los dominar sobre os peixes do mar, e sobre as aves do ar, e sobre o gado, e sobre todos os animais selvagens da terra, e sobre toda coisa rastejante que rasteja sobre a terra" (Genesis 1:26).
Uma montanha de comentários foi devotada a este texto. A que se refere a imago Dei, e que tipo de poder ela inspira e legitima? Qual é o sentido, como o texto à frente elabora, de ser fértil em número e subjugar a terra (1:28)?
As respostas a essas questões têm sido diversas e numerosa. O que eu gostaria de destacar, todavia, é o papel dessa passagem no desenvolvimento de várias ramificações do excepcionalismo humano, e seu emprego para inspirar e garantir a moderna busca por controlar a natureza e arquitetar ["engineer"] a vida. Como historiadores como Peter Harrison e Rémi Brague defenderam, o desejo científico de conhecer o mundo, e a obsessão tecnológica para refazer o mundo, podem ser entendidas como uma variante moderna, frequentemente secular, do desejo de restaurar os seres humanos à sua natureza deificada. Retomar a imago Dei nessa leitura significar adquirir o conhecimento e desenvolver o poder que libera as pessoas do esforço físico que as confronta com os limites e necessidades da vida corporal. Isso as coloca em um caminho para o que ecomodernistas vêm descrevendo como um bom Antropoceno* - um caminho em que catástrofes são engenhosamente evitadas e a criatividade e as liberdades humanas florescem.
O desejo de libertar a humanidade de doença, fome, e tanta miséria e labuta é certamente recomendável. Mas o desejo de assumir uma posição deificada no mundo também é supremamente perigoso, pois tão frequentemente resulta na subjugação e instrumentalização de pessoas e lugares. Posto nos termos do texto de Gênesis que nos deu a imago Dei, isso pode levar a presunção, orgulho e poder que eventualmente levam Deus a dizer a Noé: "Eu determinei dar fim a toda carne, pois a terra está repleta de violência" (6:13). Quando as pessoas se elevam acima daquilo que podemos chamar de sua condição "criatural" ["creaturely"], finita e necessitada, como quando elas buscam se isentar do cuidado dos outros e seus lugares, elas também põem em movimento padrões de comportamento que irão inevitavelmente violar os outros e sua capacidade de existir.
Liberdade, neste contexto, significa a emancipação da humanidade das necessidades e cuidados da vida "criatural" conjunta. Esta liberdade busca uma posição autônoma e autárquica no mundo, uma posição em que a liberdade de ser é melhor realizada no poder de estar sozinho e gozar a vida de acordo com os termos de sua escolha individual. A construção da torre de Babel, uma torre que poderia elevar os humanos aos páramos celestes (11:4), e assim posiciona-los para obliterar a distinção entre o humano e o divino, não foi senão uma precoce expressão do sonho tecno-utópico que nos leva ao Antropoceno.
*Antropoceno - termo proposto e discutido por alguns acadêmicos de diversas disciplinas das ciências naturais e humanas para postular a ideia de que hoje vivemos uma nova era geológica, posterior ao Holoceno, em que o conjunto da ação econômica e tecnológica humana chega a se projetar como uma verdadeira "força da natureza" capaz de alterar severamente a constituição ecológica de nosso planeta.
Can we live in a world without a Sabbath? - Interessante provocação de Norman Wirzba, nesses tempos em que um reles vírus põe em causa a supremacia humana sobre toda a vida planetária; é bem verdade que Gênesis menciona apenas peixes, pássaros, gado, animais selvagens e rastejantes... Teria a esfera microbiana ficado de fora das cláusulas do pacto adâmico?!
Michelangelo e a "Imago Dei" - sem vírus à vista... |
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