Por
que algumas pessoas matam por futebol? Porque têm fortes laços de identidade
com seus respectivos clubes, passaram e passam por um radical processo de identificação (no sentido psicológico do
termo). No entanto, outros torcedores – a maioria, felizmente – não seriam
capazes de fazer a mesma coisa, pois não se identificam com seus respectivos
clubes de modo tão extremo. Alguns torcedores, eventualmente, perdem até seus
interesse pelo esporte ao longo do tempo, num processo de tendencial desidentificação – mais uma vez, no
sentido psicológico.
Em
cada um desses casos, temos perspectivas específicas e diferenciadas em jogo.
Algumas dessas perspectivas são mais próximas ou mais distantes entre si. Mas
como se forjam tais perspectivas? A partir de trajetórias específicas, tanto
pessoais quanto coletivas, formuladas no tempo e no espaço – históricas,
portanto. Essas trajetórias podem apontar em sentido convergente (identificação crescente) ou divergente (desidentificação crescente). Assim, a experiência de
torcer (e matar) se configura a partir da trajetória pessoal e individual de
cada torcedor quanto de uma trajetória coletiva e social – a história do
esporte, a história do clube, a história da região, do país, do mundo, etc.
Existe hoje uma Copa do Mundo e campeonatos nacionais porque a partir do século
XIX tivemos tanto a emergência do esporte e do Estado-nação como os conhecemos.
Assim, o torcedor assassino chega a tal perspectiva homicida através de uma
trajetória que é ao mesmo tempo pessoal e coletiva. Temos então identidade e
perspectiva como processo
desenvolvido no tempo e no espaço.
Nesse
processo se forjam conexões mais ou menos fortes, convergentes ou divergentes,
no âmbito de cada grupo. Essas identidades e alteridades se formulam em redes,
de modo complementar, interdependente e dinâmico, por retroalimentação. Como
uma dança complexa, onde os participantes se movimentam, determinando suas
perspectivas a partir de suas posições e distâncias respectivas, sua dêixis, em perpétua mutação, às vezes
imperceptível. As trajetórias se cruzam e interferem umas nas outras, momento a
momento. Os ritmos da dança se alternam sem cessar. Alguns dançarinos saem, e
entram outros, continuando a dança como a encontraram. Temos aí uma dimensão
mereológica, fractal, onde cada dançarino é parte da dança e interfere na dança
inteira. Um simples tropeço repercutirá de modo mais ou menos intenso em todo o
conjunto. Como diria Sonmi-451, do filme Cloud
Atlas,
“Existir
é ser percebido, então conhecer a si mesmo só é possível através dos olhos dos
outros. A natureza de nossas vidas imortais está nas consequências de nossas
palavras e atos, que vão em frente e se impulsionam através dos tempos. Nossas
vidas não são nossas. Do berço ao túmulo, estamos ligados a outros, no passado
e no presente. Através de cada crime e de cada ato generoso, nós damos
nascimento a nosso futuro”.
Tais
dinâmicas se aplicam à torcida de futebol, mas também às religiões, aos
gêneros, às nações – em suma, a quaisquer identidades. Mas como se elabora no
tempo uma linguagem do “nós”? Como se
forma um “nós” vascaínos? Como surge um “nós” tupinambá? Como se elabora um
“eles” flamenguistas ou margaiá? Por que algumas pessoas soltam pipa e outras,
nascidas no mesmo bairro, fazem pós-doutorado?
No
fundo, cada identidade se formula em “nuvens de probabilidades”, emergindo de
situações específicas, reconfiguradas a cada compasso na melodia do tempo.
Possibilidades e probabilidades se entrecruzam o tempo inteiro, gerando novas
realidades potenciais, mudando trajetórias a cada interação. Esse texto mesmo
emerge de vários encontros. Ele não existiria se os tupinambá não comessem
carne humana, se Hans Staden não tivesse escapado da morte, se eu não fosse
casado com minha esposa, se ela não fosse filha de meu sogro, se meu sogro não
fosse vascaíno, se não tivessem inventado e popularizado o futebol, se não
existisse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, se eu não tivesse preguiça
de ir a Niterói, se eu nunca tivesse morado em Paris, se David Mitchell não
tivesse escrito Cloud Atlas, se esse livro
não fosse adaptado para as telas, se eu não tivesse sido covardemente reprovado
em um concurso, se eu não desejasse praticar yoga, se não houvessem brigas de
torcida nem atentados em Paris, se eu não sofresse de TOC. Mas esse texto
emergiu dessa improvável “nuvem de probabilidades”.
Seriam
todos os fatos e atos humanos o produto de uma imensa e improvável “nuvem de
probabilidades” em “eterna recorrência” e mutação no tempo e no espaço, uma
grandiosa e mal-coordenada coreografia de moléculas, átomos e partículas,
talvez conduzidas por um regente invisível? Seria possível reunir História,
Antropologia, Física, Meteorologia e Filosofia para resolver todas essas
questões, para desenhar um atlas dessas nuvens?
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