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sábado, 10 de janeiro de 2015

Futebol, canibais, terroristas e nuvens

Dedicado a meu sogro e minha esposa

Por que algumas pessoas matam por futebol? Porque têm fortes laços de identidade com seus respectivos clubes, passaram e passam por um radical processo de identificação (no sentido psicológico do termo). No entanto, outros torcedores – a maioria, felizmente – não seriam capazes de fazer a mesma coisa, pois não se identificam com seus respectivos clubes de modo tão extremo. Alguns torcedores, eventualmente, perdem até seus interesse pelo esporte ao longo do tempo, num processo de tendencial desidentificação – mais uma vez, no sentido psicológico.

Em cada um desses casos, temos perspectivas específicas e diferenciadas em jogo. Algumas dessas perspectivas são mais próximas ou mais distantes entre si. Mas como se forjam tais perspectivas? A partir de trajetórias específicas, tanto pessoais quanto coletivas, formuladas no tempo e no espaço – históricas, portanto. Essas trajetórias podem apontar em sentido convergente (identificação crescente) ou divergente (desidentificação crescente). Assim, a experiência de torcer (e matar) se configura a partir da trajetória pessoal e individual de cada torcedor quanto de uma trajetória coletiva e social – a história do esporte, a história do clube, a história da região, do país, do mundo, etc. Existe hoje uma Copa do Mundo e campeonatos nacionais porque a partir do século XIX tivemos tanto a emergência do esporte e do Estado-nação como os conhecemos. Assim, o torcedor assassino chega a tal perspectiva homicida através de uma trajetória que é ao mesmo tempo pessoal e coletiva. Temos então identidade e perspectiva como processo desenvolvido no tempo e no espaço.

Nesse processo se forjam conexões mais ou menos fortes, convergentes ou divergentes, no âmbito de cada grupo. Essas identidades e alteridades se formulam em redes, de modo complementar, interdependente e dinâmico, por retroalimentação. Como uma dança complexa, onde os participantes se movimentam, determinando suas perspectivas a partir de suas posições e distâncias respectivas, sua dêixis, em perpétua mutação, às vezes imperceptível. As trajetórias se cruzam e interferem umas nas outras, momento a momento. Os ritmos da dança se alternam sem cessar. Alguns dançarinos saem, e entram outros, continuando a dança como a encontraram. Temos aí uma dimensão mereológica, fractal, onde cada dançarino é parte da dança e interfere na dança inteira. Um simples tropeço repercutirá de modo mais ou menos intenso em todo o conjunto. Como diria Sonmi-451, do filme Cloud Atlas,

“Existir é ser percebido, então conhecer a si mesmo só é possível através dos olhos dos outros. A natureza de nossas vidas imortais está nas consequências de nossas palavras e atos, que vão em frente e se impulsionam através dos tempos. Nossas vidas não são nossas. Do berço ao túmulo, estamos ligados a outros, no passado e no presente. Através de cada crime e de cada ato generoso, nós damos nascimento a nosso futuro”.

Tais dinâmicas se aplicam à torcida de futebol, mas também às religiões, aos gêneros, às nações – em suma, a quaisquer identidades. Mas como se elabora no tempo uma linguagem do “nós”? Como se forma um “nós” vascaínos? Como surge um “nós” tupinambá? Como se elabora um “eles” flamenguistas ou margaiá? Por que algumas pessoas soltam pipa e outras, nascidas no mesmo bairro, fazem pós-doutorado?

No fundo, cada identidade se formula em “nuvens de probabilidades”, emergindo de situações específicas, reconfiguradas a cada compasso na melodia do tempo. Possibilidades e probabilidades se entrecruzam o tempo inteiro, gerando novas realidades potenciais, mudando trajetórias a cada interação. Esse texto mesmo emerge de vários encontros. Ele não existiria se os tupinambá não comessem carne humana, se Hans Staden não tivesse escapado da morte, se eu não fosse casado com minha esposa, se ela não fosse filha de meu sogro, se meu sogro não fosse vascaíno, se não tivessem inventado e popularizado o futebol, se não existisse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, se eu não tivesse preguiça de ir a Niterói, se eu nunca tivesse morado em Paris, se David Mitchell não tivesse escrito Cloud Atlas, se esse livro não fosse adaptado para as telas, se eu não tivesse sido covardemente reprovado em um concurso, se eu não desejasse praticar yoga, se não houvessem brigas de torcida nem atentados em Paris, se eu não sofresse de TOC. Mas esse texto emergiu dessa improvável “nuvem de probabilidades”.

Seriam todos os fatos e atos humanos o produto de uma imensa e improvável “nuvem de probabilidades” em “eterna recorrência” e mutação no tempo e no espaço, uma grandiosa e mal-coordenada coreografia de moléculas, átomos e partículas, talvez conduzidas por um regente invisível? Seria possível reunir História, Antropologia, Física, Meteorologia e Filosofia para resolver todas essas questões, para desenhar um atlas dessas nuvens?

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