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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Paz e sonhos juvenis

 Quando eu era um jovenzinho sonhador e esperançoso, acreditava que a plenitude humana consistia em "viver em paz consigo mesmo e com o mundo". Mais de duas décadas depois, enquanto termina o verão de minha vida e pressinto os ventos do outono que chega, ainda não encontrei essa paz. Nas pequenas e grandes batalhas da vida, enfrentadas certamente com alguma presunção e muita ingenuidade, encontrei muita fadiga e pouca glória. Nos duros choques com a realidade, meu otimismo juvenil se converteu em um agridoce "pessimismo esperançoso". Talvez eu simplesmente precise dar uma trégua ao mundo, para cultivar alguma paz dentro de mim. Como dizia um grande mestre e amigo, "buscar dentro o que não está fora". Muito me falta ainda para cultivar essa serenidade diante de um mundo que parece desmoronar. Nos refúgios mais profundos de minha alma, ainda que por breves instantes, experimento essa paz. Preciso aceitar o mundo como ele é, sem acomodação cínica, nem revolta estéril, para talvez, algum dia, "viver em paz comigo mesmo" - e, quem sabe, "com o mundo".

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Conselho aos amigos

Aperte o cinto, evite dívidas e poupe o máximo que puder. Provavelmente ainda temos muita turbulência econômica pela frente. Como diz a sabedoria popular, rezemos pelo melhor, mas estejamos preparados para o pior. Se tudo der errado, ao menos teremos alguma reserva para os dias de vacas magras. Por outro lado, se tudo der certo, teremos uns trocados a mais para aproveitar na bonança. Como diz Nassim Taleb, fugir de dívidas sempre é o melhor negócio - talvez não fiquemos ricos, mas evitando dívidas reduzimos as probabilidades de cair na miséria. O momento atual nos convida à frugalidade.



quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Profissionais da demagogia

Trecho de Tentações do Ocidente, de Pankaj Mishra, sobre políticos indianos, mas que bem serve a tantos outros lugares (inclusive nossa amada terra brasilis).


Forças bramânicas, afirmação dalit, integridade da Índia: as palavras representavam certamente algumas realidades reconhecíveis. Mas era possível ver coisas demais nelas e esquecer as intenções simples dos políticos que as usavam, pessoas que nem sempre tinham certeza do que diziam e que, apesar da diferença na retórica, falavam por eles apenas, e no final estavam lutando pelas mesmas coisas. Mal empregadas pelos políticos, as palavras as adquiriram a neutralidade de figuras matemáticas; você conseguia ajustá-las em qualquer lugar na contabilidade confusa da política eleitoral que, numa sociedade econômica e socialmente restrita, tinha-se tornado um meio cada vez mais atrativo para a mobilidade ascendente.


Para a massa dos camponeses e operários, e para a classe média de advogados, médicos, engenheiros, burocratas, professores e homens de negócio, uma nova classe de políticos profissionais tinha sido constantemente acrescentada desde 1947. Milhares de homens surgiram da massa geral de pessoas carentes e adotaram posições importantes dentro das legislaturas nacional e estadual. Homens sem nenhum treinamento ou habilidade especial, algumas vezes nem mesmo uma alfabetização e a oratória básicas. Grande número deles formado por criminosos. Poucos oferecem qualquer coisa além de sua identidade de casta e religiosa. A maior parte fica satisfeita em pilhar os recursos do Estado, e algumas vezes partilham do butim com membros de suas famílias ou grupos de casta. Eles todos procuram poder, o que, em sociedades degradadas pelo colonialismo, muitas vezes aparece separado de qualquer ideia de para que ele vai servir - o tipo de poder que, na maior parte dos casos, é pouco mais que uma oportunidade de elevar-se acima do resto da população e saborear as riquezas do mundo: viagens oficiais a Nova York, passeios de helicóptero, passagens grátis em trens, abastecimento de gás, guarda-costas vindos de "comandos" [das Forças Armadas indianas], carros dirigidos por choferes e multidões de suplicantes do lado de fora da porta.


Por trás da retórica de redenção de casta e religião, deserções, traições, colapso de governos e novas eleições, constantes intrigas em Déli e nas capitais dos estados, por detrás de todo o infinito drama da política na Índia, reside o medo que esses homens, elevados acima de sua posição, sentem: que a qualquer momento a riqueza do mundo possa lhes ser tirada e se vejam devolvidos às casinhas nas aleias sujas, à pobreza e a insignificância das quais a profissão de político os havia resgatado.


Não sei se as palavras são realmente de Lincoln, mas seu valor independe da autoria.


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 "No entanto, muitas vezes são só a reputação e o medo que protegem os navios, e não os homens que neles estão".

Richard Hawkins (1625)

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

 Ai daqueles que depositam suas esperanças na sensatez de lobos famintos!



"Lulalckmin" - O Brasil e suas reviravoltas

Breve reflexão do geógrafo Vinicius Borges

Agora chegou a vez de "Lulalckmin". Até nas alianças liberais nosso campo progressista regrediu... 

José de Alencar em 2002, com todos os senões que se pudesse ter, era um capitalista com senso de respeito à importância de um Estado forte e ativo para poder desenvolver um país.  Hoje, a maior liderança do campo progressista está pronta para se aliar em 2021 com tudo aquilo que era preciso combater em 2006... 

Em 2030, a esquerda partidária brasuca estará trabalhando a aliança com Bolsonaro para evitar a eleição de Zé Trovão ou de qualquer outro incendiário com apelo popular ainda mais "descacetado" das ideias do que o atual... 

E assim seguimos, girando em círculos ao redor de nossas tragédias, como em um romance fantástico de Gabriel Garcia Marques.



segunda-feira, 15 de novembro de 2021

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Desde que o mundo é mundo

 Alguém conhece alguém, que conhece alguém, que conhece alguém, que conhece alguém, que conhece...

Assim se tecem e tramam as vidas humanas, desde que o mundo é mundo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

"Pelo simples fato de decidir seguir as tradições de nossos pais, já lhes somos infieis".

Eric Weil

Eaux chantantes,

Ô, enchantez-moi!

Des doux rêves je veux:

Tombez des cieux,

Lavez mon âme,

Abbreuvez mon coeur!

Bercez-moi, ô,

Chantantes eaux

Je vous conjure,

Fâites sublime mon sommeil,

Comme le lit d'un serein fleuve...

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Kataguiri, Bolsonaro e a democracia putrefata

Na última semana a ministra Rosa Weber, do STF, recusou uma queixa-crime do deputado federal Eduardo Bolsonaro contra o colega Kim Kataguiri, por calúnia e difamação. Entre outras questões, o Sr. Bolsonaro se queixava do uso do apelido "Bananinha", que tem circulado na Internet desde uma declaração jocosa do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República Federativa do Brasil.

O insólito episódio diz muito sobre o atual estado de nossa democracia, que nunca foi muito saudável, mas parece ter piorado terrivelmente nos últimos anos.

Antes de mais, deixo claro que não tenho qualquer simpatia por Kataguiri, por Lula ou pelo clã Bolsonaro, mas acho no mínimo contraditório que o Sr. Eduardo Bolsonaro recorra à Justiça contra Kataguiri, considerando que seu próprio pai, ora presidente da República, não hesita em mentir, espalhar boatos e manter uma conduta, em linhas gerais, indecorosa. Entre outras pérolas, o Sr. Bolsonaro foi o primeiro presidente do Brasil a conjugar o pitoresco verbo "escrotizar" em um pronunciamento oficial, além de ter tratado jornalistas com palavras de baixo calão mais de uma vez. Como este blog se dá ao respeito, pouparei o nobre leitor de maior aprofundamento em torno do escatológico florilégio presidencial. 

No que tange a injúrias pessoais, no entanto, creio que Bolsonaro jamais desceu tão baixo como ao tratar repetidamente o ex-presidente Lula por epítetos como "vagabundo de nove dedos", entre outros similares, aludindo jocosamente à mutilação sofrida por Lula em seus tempos de metalúrgico. Doenças, mutilações, malformações e situações similares são o tipo de coisa com o qual gente civilizada não faz brincadeiras. E é simplesmente nauseante ter como presidente de nossa República uma pessoa que não respeita as mínimas questões de decoro que deveriam ser óbvias para qualquer cidadão educado - no sentido mais elementar da palavra.

Diante de todo o histórico de grosseria e deselegância da família, causa espanto que o sr. Eduardo Bolsonaro ainda tenha a audácia de buscar a Justiça por conta de um comportamento que lhes é tão costumeiro. Mas atitudes contraditórias e incongruentes são exatamente o que se espera de pessoas com caráter dúbio.

Uma das partes mais elementares do convívio social é a reciprocidade. O ser humano costuma esperar do semelhante atitudes semelhantes a suas próprias - bem por bem, mal por mal. Idealmente, deveríamos seguir a "regra de prata", "não fazer ao outro aquilo que não gostaríamos que nos fizessem" e, mais ainda, a "regra de ouro", "tratar ao próximo como gostaria de ser tratado". Todo ser humano adulto e sério tem esses princípios em mente em suas interações sociais e, na maioria das vezes, temos consciência de que a transgressão dos mesmos costuma redundar em algum tipo de reação.

Ao recorrer ao Supremo Tribunal Federal pedindo que regule uma questão de ofensa pessoal entre ele e um terceiro, o sr. Eduardo Bolsonaro deixa evidentes sua imaturidade e falta de seriedade. Age como uma criança mimada que se julga no direito de ofender a todos, mas que não aceita ser ofendido de volta. Como diz a sabedoria popular, "quem fala o que quer, ouve o que não quer". Seria de se esperar que um deputado federal fosse capaz de agir como uma pessoa adulta que aguenta as consequências de seus próprios atos, mas evidentemente não é o caso.

No entanto, a briga entre Kataguiri e Bolsonaro evidencia um mal-estar mais profundo, que corrói a democracia brasileira nos últimos anos. O ambiente do debate político em nosso país tem se tornado cada vez mais deletério - tanto por parte dos políticos quanto, em sentido muito mais amplo, pelos cidadãos. Ofensas e grosserias se banalizaram em diversas esferas de convívio cotidiano. Esse tipo de atitude dificulta seriamente o diálogo democrático.

A simples eleição de uma figura que se comporta como o Sr. Jair Messias Bolsonaro ao cargo de Presidente da República já sugere que há algo de muito errado com o exercício da cidadania no Brasil. Não se trata aqui de discutir santidade, pureza ou qualquer coisa semelhante. Se trata meramente da capacidade de manter a mínima compostura na esfera pública - o que, diga-se de passagem, se espera de todo servidor público. Durante décadas a total falta de decoro parlamentar de Bolsonaro enquanto legislador foi tolerada, confirmando que na república brasileira não há limites para o despudor. Eleito Bolsonaro, o problema subiu a outro patamar.

No entanto, os Bolsonaro não estão sozinhos nisso. Esta é uma tendência muito mais ampla da sociedade brasileira, que se percebe em quase todos os lugares e ambientes. A noção de que a liberdade de cada indivíduo termina onde começa a do outro nunca se consolidou na cultura brasileira e essa carência só tende a piorar com a vida em grandes cidades caóticas, reforçada por uma mídia que muitas vezes endossa esse tipo de comportamento. Parece que estamos indo muito além da informalidade e da irreverência que o povo brasileiro sempre cultivou como um traço de espontaneidade e que, até certa medida, são saudáveis.

A formalidade e a cortesia são um verniz social que nos permite interagir com o mínimo de atrito com pessoas com as quais não temos intimidade, não nos sentimos à vontade ou cujo convívio nos desagrada. No entanto, enquanto coletividade, cultivamos justamente o oposto disso. Em grande medida, a grosseria e a falta de polidez são vistas como sinais de sinceridade, espontaneidade, autenticidade e mesmo de coragem. Muitos eleitores, embora desaprovassem certos comportamentos e atitudes do sr. Jair Bolsonaro os botavam na conta da sinceridade, como algo não apenas justificável, mas positivo.

Que fique bem claro, todavia, que não se trata de problema apenas de problema dos eleitores do clã Bolsonaro. Nos últimos anos se viu todo tipo de comentário despropositado e injustificável por parte de seus opositores. Muita gente que se queixava de atitudes machistas para com Dilma Roussef não via problemas quando o alvo da piada fosse Marcela Temer, Michelle Bolsonaro, Janaína Paschoal ou qualquer outra figura do campo "rival".

Não se trata de estabelecer uma falsa simetria a pretexto de equanimidade. Bolsonaro e seus eleitores mais entusiastas ultrapassam e muito os limites do que seria tolerável e admissível - ainda mais de gente que se jacta de ser cristã, defensora da moral e dos bons costumes. Não custa enfatizar ainda uma vez: Bolsonaro não criou o problema, o elevou a outro patamar e lhe deu uma visibilidade inédita - dentro e fora do Brasil.

Não há democracia que se sustente sem respeito entre os cidadãos. Parece que Eduardo Bolsonaro sentiu isso na própria carne - sentiu tanto que precisou recorrer a arbitragem judicial. 

O que convém desde já indagar é se queremos que as coisas continuem assim ou se deixaremos que piorem ainda mais. Sanear o debate político em nosso país é tarefa que cabe a cada um de nós, não apenas na relação com o outro, mas na reflexão sobre nossas próprias atitudes. Se cada um de nós se observar com a devida atenção, constatará que ainda temos muito a melhorar em nosso trato com nossos concidadãos.



O "Eu" que não fala de mim

Dedicado a minha prima Leilane

Semana passada completei 38 anos de idade. No dia de meu aniversário recebi por WhatsApp a fotografia abaixo, enviada por minha prima Leilane e acompanhada de um meigo comentário: "Para aquecer seu coração, diretamente do túnel do tempo, o Luiz do passado vem saudar o Luiz do presente".

Nesta foto eu tinha cerca de um ano de idade (minha prima sequer era nascida). Não sei dizer se o local da fotografia era a varanda da casa de minha avó ou de seu irmão - ambos moravam na mesma vila e as fachadas das respectivas casas ainda permaneciam como originalmente construídas, em meados dos anos 50. A ausência de vasos de plantas, todavia, sugere que se trate da casa de meu tio-avô. Ao fundo da foto se percebem os contornos de dois adultos da família. Quem seria? Impossível identificar. A julgar por minha roupa, era uma ocasião festiva.

Mais que pela fotografia, em um primeiro momento me senti muito tocado pelo comentário de minha prima sobre o encontro entre o "Luiz do passado" e o "Luiz do presente". Um encontro entre eu e eu mesmo.

Olhando para o menino na foto e pensando na fala de Leilane, me peguei meditando sobre uma indagação de Derrida em uma antiga entrevista: "qui est ce 'Moi' qui parle de moi-même"? Embora não seja apreciador da obra de Derrida, assistindo a entrevista, a formulação do questionamento, um tanto perdida na algaravia costumeira ao filósofo, me pareceu muito feliz: quem é o "Eu" que fala de mim mesmo? 

Evocando o questionamento de Derrida, a singela fotografia me pareceu a um só tempo extraordinariamente familiar e curiosamente estranha. Quem era esse "Luiz do passado", com o indicador na boca, como a cutucar um dente, contemplado pelo "Luiz do presente"?

À época da foto eu já caminhava e, segundo fontes fidedignas, falava pelos cotovelos. A crer nas pessoas de minha família, fui muito precoce no desenvolvimento da fala. Em pouco tempo usava um vocabulário considerável e falava com uma articulação e desenvoltura incomuns para minha idade.

E, no entanto, que falava esse menino da fotografia? Mais ainda, que pensava ele? Com o dedo na boca e a encarar a lente da câmera, que pensava ele? Ou ainda, como pensava ele? Que tortuosos processos cognitivos se arranjavam na mente daquele ser falante? Quem era aquele "Eu" que não sou mais? Impossível saber.

Apesar da linguagem supostamente desenvolta, aquela mente pensante deixou poucas memórias nítidas. E, no entanto, a mente que redige essas linhas necessariamente partilha de muita coisa pensada por esse "Luiz do passado". Ao distinguir esta e aquela mente penso como Heráclito - a mente em devir nunca é igual a si mesma; talvez o próprio fato de pensar em si mesma já a faça diferente, gerando cada vez mais instâncias de metacognição, como uma imagem refletida por infinitos espelhos ou como uma gravura de Escher.

Qual era exatamente a extensão do vocabulário dessa criança seria impossível dizer, mas foi certamente nessa época que aprendi muitas das palavras que ainda hoje emprego. Esse núcleo mais primário da linguagem, alguns verbos, substantivos, advérbios faz parte do patrimônio que compartilhamos - mais ainda, do patrimônio cognitivo a mim legado por esse "Luiz do passado".

Duas palavras que certamente já deviam integrar meu vocabulário a essa altura eram os advérbios "sim" e "não". Mas que significavam essas palavras para esse "Luiz do passado"? Antes de tudo, suponho, instrumentos para manifestar ao mundo sua vontade. No "sim" e no "não" há uma consciência que emerge para a vida, um aceitar e um recusar certos modos de se relacionar com o mundo ao redor.

Segundo minha mãe, ao começar a falar, passei a rejeitar sistematicamente certos alimentos que antes consumia passivamente (entre os quais peixe e banana, aos quais voltarei). Como toda criança, descobria e formava meu paladar. A descoberta, ou mais propriamente revelação, dos alimentos que nos agradam ou não talvez seja um de nossos primeiros passos rumo ao autoconhecimento e à consciência de nós mesmos. Mas, muito antes da consciência de nós mesmos, um gesto de recusa ativa ao que o mundo - aí manifesto pela família - nos oferece e impõe. 

Um gesto primordial em que começamos o lento, incessante e interminável movimento pelo qual demarcamos um espaço entre o "eu" e os "outros". Obviamente permanecemos na condição de dependentes e comensais daqueles que nos alimentam. No entanto, deixamos gradativamente nossa posição de receptores passivos. 

A recusa é também um gesto de seleção. Uma seleção intuitiva, mas um vago despertar do "eu" que se demarca do "outro" através de uma vontade que ainda não se sabe vontade, mas que já se manifesta - mesmo sem palavras, muito antes das palavras. Na primeira vez que cada um de nós cospe um alimento desagradável se esboça instintivamente uma reação contra uma vontade que se impõe a nós - uma vontade à qual provavelmente antes cedíamos incondicionalmente, inconscientes de nossa capacidade recusar.

O cuspir do alimento tem algo de qualitativamente distinto do choro do recém-nascido. Nesse primeiro chorar se manifesta um vago descontentamento de sede, fome ou dor, mas que não reconhece bem o objeto de sua desdita. O alimento que cuspimos, todavia, é algo muito concreto, um corpo estranho cujo contato nossa língua repudia. 

Assim como o Atoun de certa cosmogonia egípcia criava Geb, Nut e Rá - Terra, Céu e Sol - através de uma cusparada no "tempo da primeira vez", nessa cusparada a um tempo instintiva e voluntária iniciamos o parto de nós mesmos, sempre incompleto e provisório. Eis a maiêutica primordial, incessantemente repetida pela maioria dos seres humanos desde o alvorecer da humanidade - e provavelmente antes, por incontáveis hominídeos, mamíferos e sabe mais quantas categorias de seres que habitam esse mundo. 

Quando meu cão cospe ou afasta o focinho de um alimento que o desagrada estamos unidos por algo muito profundo, entrelaçado talvez em nosso DNA - possivelmente uma aquisição evolutiva para evitar a ingestão de substâncias potencialmente tóxicas. Em todo caso, o cuspir do bebê humano tem algo de filogenético e ontogenético - muito individual, mas que, em muitos sentidos, transcende nossa individualidade e mesmo nossa espécie.

Nessa rejeição se manifesta o "Não", mas se inscreve também o "Sim" - "não" e "sim" que a poética taoísta tantas vezes associa ao yang e ao yin. Talvez aceitação e rejeição constituam nosso mais visceral modelo de relacionamento com a realidade, possivelmente as forças que mais nos movem em nosso cotidiano e pelas quais se tramam as redes de nossa sociedade. Em mim há alguma consciência tanto daquilo que aceito quanto do que recuso. Atração e repulsa constituem boa parte do que somos. Quando não gostamos de algo, há indubitavelmente parte desse algo em nós.

"Sim" e "Não" são as bases de nossas escolhas, o próprio caminho de nossas vidas, desde seus primeiros estágios. Mas é superando tanto o "sim" quanto o "não" que somos mais plenamente livres. Bergson diferenciava liberdade e livre-arbítrio de modo muito curioso. Segundo ele, o livre-arbítrio seria meramente nossa capacidade de escolher entre opções que a vida nos oferece. A  liberdade em sentido mais pleno só emergiria realmente nos raros momentos em que criamos algo, nas situações em que entrevemos algo além das possibilidades que a vida põe diante de nós.

De certo modo é o que temos feito ao longo de toda nossa história. O ser humano é um ser que cria todo tipo de coisas novas, de artefatos a canções - homo faber; mas esse gesto de criar livremente é também um modo de driblar as limitações que a realidade nos impõe, um jogar no qual somos também homo ludens. O brincar é certamente um de nossos primeiros modos de interagir com o mundo e com nossos semelhantes, sempre anterior à fala. E também o brincar, ressaltava Huizinga, é algo que partilhamos com boa parte dos animais. Em seu magistral "Homo ludens", Huizinga sustenta que o jogar é onde nos fazemos mais plenamente humanos - "spielen", "jouer", "to play" são verbos que as línguas alemã, francesa e inglesa relacionam às mais diversas atividades - o jogo propriamente dito, mas também a música, o teatro, a adivinhação, o ritual - atividades em que nos sentimos quase sempre absortos, distanciados das atividades ordinárias da subsistência, em que nossas mentes se sentem libertas e envolvidas pela imaginação. Durante o momento do jogo, o que mais importa é o próprio folguedo, que nos absorve e envolve. 

Esse "Luiz do passado" que encontro na fotografia era já um ser brincante. Como brincava? Não sei, mas brincava.  Brincadeiras e brinquedos constituem as memórias mais vividas e intensas de minha infância - e suponho que se dê o mesmo para maioria de nós. No brincar nos fazemos plenamente livres, no sentido bergsoniano. Para a criança que brinca, a realidade se faz trampolim para a imaginação. Tudo pode ser qualquer coisa - uma vassoura se faz cavalo, um balde se faz cachorro, uma pedra pode ser uma motocicleta...

Com efeito, uma das memórias mais vívidas de minha primeira infância remete a uma viagem ao município fluminense de Santo Antônio de Pádua. Ao entardecer eu costumava brincar em uma pracinha onde uma pedra achatada, em minha imaginação, se transformava em uma potente moto - perfeitamente estática, mas ainda assim em intenso movimento, veloz como um meteoro. A pedra-moto e eu nos movíamos imaginariamente - e não tão imaginariamente, sincronizados que estávamos com os movimentos de rotação e translação planetária. 

Coisa estranha, uma moto-pedra! Como nossos ancestrais pré-históricos eu via uma pedra, e naquela pedra imaginava algo mais. E quantas coisas somos capazes de ver no perfil de pedras, montanhas, sombras, objetos e reflexos. Em nossa imaginação podemos sempre ver e criar um "algo mais". Com sua criatividade incendiada e flamejante, o homo ludens vislumbra um potencial que, com muito esforço, o homo faber faz emergir como algo concreto. Talvez naquela pracinha de Santo Antônio de Pádua, minha mente realizasse processos não muito diferentes daqueles de nossos ancestrais na Garganta de Olduvai.

Talvez a tal pedra ainda esteja por lá até hoje. Quantas outras crianças antes e depois de mim não projetaram sobre aquela pedra seus mais acalentados desejos? 

Em minha casa, no Rio, eu tinha meu velocípede, que em minha imaginação também se transformava em motocicleta. E, no entanto, as limitações do velocípede ficavam sempre evidentes, por mais vigorosas que fossem minhas pedaladas. A ilusão talvez se tornasse um pouco mais palpável quando descia a ladeira da vila, freando com os chinelos. Ladeira abaixo, o velocípede corria velozmente e sem esforço, mas a descida era breve, e a realidade logo se impunha. Qual pequeno Sísifo, precisava de novo e de novo puxar o velocípede ladeira acima para gozar daqueles vertiginosos segundos.

A moto-pedra, pelo contrário, por sua própria condição física, só podia se mover por virtude da imaginação, que desconhece limites. Em seu contorno achatado, vagamente reminiscente de uma motocicleta, a pedra se tornava suporte para o exercício ilimitado da imaginação.

Mas o "Luiz do passado" que desvairadamente passeava em sua moto-pedra era um outro "Luiz do passado", não o mesmo da fotografia. E, no entanto, o "Luiz do presente" consegue ao menos se recordar das sensações evocadas pelos passeios em moto-pedra - o sentar-me no "assento", o inclinar-me para frente, o agarrar os guidões imaginários, o estático acelerar, as onomatopeias emitidas, o balançar-me de um lado para outro, ao sabor das curvas fantasiadas... Sensações que, mesmo sentado diante do computador, meu corpo adulto consegue, de certa maneira, emular.

Em sua moto-pedra, aquele "Luiz do passado", sem o saber, era também ator e plateia, tudo de uma vez - um tanto como o "Luiz do presente" com os videogames que não consegue abandonar. Homo semper ludens. Do berço ao túmulo, de certo modo, o viver em sociedade é um perpétuo role playing game - daí talvez boa parte do fascínio que os RPGs, em suas mais diversas modalidades, exercem sobre os jogadores.

Mas, para além do patrimônio mental partilhado, que mais nos une, "Luiz do passado" e "do presente"? Luzes olhares.

No momento, contemplo não apenas uma fotografia, mas uma fotografia de uma fotografia - mais precisamente, uma fotografia digital de uma fotografia analógica. Jogo de luzes a se perpetuar por quase quatro décadas. Em algum momento, por volta de 1984 alguém apontou uma câmera para o "Luiz do passado" e, com um clique, fez com que o filme dentro do aparelho fosse impressionado pela luz que penetrava pela lente, tendo antes "tocado" o corpo daquele menino, assim como o espaço e as pessoas ao redor. Em um laboratório, por procedimentos químicos, a frágil imagem formada no filme foi transposta para papel fotográfico, guardando o registro daquela criança naquele efêmero instante.

Guardada por anos, a fotografia foi novamente fotografada, desta vez por minha prima que sequer era nascida na época em que o retrato original fora feito, provavelmente através da câmera de seu smartphone, desta vez impressionando um delicado "fotorreceptor" capaz de registrar a luz como pixels, codificados eles mesmos através do código binário, usando o padrão .jpeg, elaborado e convencionado pela indústria do software. Enquanto escrevo, visualizo essa imagem como luz projetada pela tela de meu notebook

Mas em cada etapa desse processo, ao longe de tantos anos, luz, sempre luz, impressionando tanto esses engenhosos artefatos humanos quanto, mais importante, nossas retinas e mobilizando nosso aparato cerebral, para que nossas mentes atribuam significado essa imagem de um menino. Convertida e reconvertida, sempre luz.

Mais importante que a luz, no entanto, é o olhar, menos como potência fisiológica que como modo de interação com o mundo. Através dessa imagem, como em um espelho mágico, o "Luiz do presente" contempla o "Luiz do passado". No entanto, alguém em 1984 olhou para aquele menino, apontou a câmera em sua direção e, com um clique, registrou aquele instante preciso, naquele exato ângulo. Quem era exatamente o fotógrafo? Difícil dizer; em todo caso, era alguém que tinha interesse e carinho por aquela criança, uma das inúmeras pessoas com as quais cresci e convivi.

E, naquele exato momento, o "Luiz do passado" olhava para aquela pessoa que fotografava, com um misto de atenção e curiosidade, como quem é repentinamente chamado, como se faz normalmente para fotografar crianças pequenas. A posição dos pés esquerdo e direito, apontando em direções ligeiramente diferentes sugere a interrupção do caminhar. Provavelmente ele não tinha muita consciência de que naquele exato momento se formava uma imagem dele mesmo em um filme fotográfico. Nos anos que se seguiriam, por sinal, câmeras fotográficas permaneceram para mim objetos muito cobiçados aos quais, todavia, os adultos me negavam acesso; só muito mais tarde me foi permitido e manusear câmeras - um objeto frágil e caro, assim como relativamente caro era o próprio filme que registrava as imagens; nenhuma pose devia ser desperdiçada, algo inimaginável nesse tempo em que podemos produzir milhares de fotografias por dia a custo irrisório, fotografias cuja proliferação quase descontrolada, pulsional até, parece tornar menos e menos preciosas.

O menino fotografado ainda permitia que seus cabelos fossem penteados, e estes eram muito mais claros do que se tornaram ao longo dos anos, acompanhando as mudanças de seu metabolismo. O "Luiz do presente" começa a ter fios brancos un peu partout e uma calvície que começa a se mostrar com mais veemência. Ao longo dos anos fez as pazes com as bananas, mas continua muito reticente e seletivo no que diz respeito ao consumo de peixes. Algumas das barreiras que erguemos entre nós e o mundo ao longo da vida são mais duradouras que as outras. É através das pequenas e grandes aquiescências e desobediências que, ao longo da vida, tecemos nossa alma em sua singularidade. A cada "sim" e a cada "não" negociamos nossas fronteiras, sempre imaginárias, com o mundo e a vida.

Como a simbolizar essas barreiras e fronteiras, a emoldurar e separar o antes do agora, é possível perceber nas partes superior e inferior da imagem a superfície sobre a qual a antiga fotografia foi pousada para ser novamente fotografada. "Ceci n'est pas cela".

Há muita coisa que me aproxima e distancia deste "Luiz do passado" capturado pela fotografia. E é nesse constante movimento de aproximação e distanciamento que emerge "o 'Eu' que fala de mim mesmo", o pensamento que pensa a si mesmo. No entanto, todo esse pensamento se elabora a partir de um olhar composto por afetos sobrepostos - do misterioso fotógrafo, da prima carinhosa, do próprio "Luiz do presente". Olhar sempre portador de pensamentos, muitas vezes inconscientes, que não pensam a si mesmos - em certo sentido, o Eu que não fala de mim e, para bem ou para mal, permanece alheio a si mesmo... Virando a indagação de Derrida de ponta-cabeça, quem é o Eu-mesmo que permanece sempre além de mim?

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Era outra vez no Rio de Janeiro - A esperança resgatada por um gato

A vida tem maneiras curiosas de agir. Na última semana, minha esposa e eu tivemos o desprazer de testemunhar uma estarrecedora situação de caos e brutalidade urbana. Hoje, a Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro nos mostrou outra face, mais amável e benigna.

Desde a noite passada, por volta das 19 horas, se fez incessantemente ouvir um miado de gato filhote nas cercanias de nosso prédio. O bichano causava dó, miando e miando, ao que tudo indica durante a madrugada inteira. Quando despertamos hoje, por volta das 6 da manhã, o felino continuava com sua lamúria.

Mesmo preferindo cães a gatos, minha esposa e eu ficamos preocupados com o bichinho. Por volta das 9 da manhã os moradores da casa em frente saíram à rua em busca do animal. Da janela, vimos quando eles localizaram o animal, aparentemente preso dentro do capô de um carro. Eles tentaram resgatar o gato de várias maneiras - em vão. Cerca de meia-hora mais tarde, quando as tentativas de resgate de nossos vizinhos não alcançaram êxito, buscamos os serviços públicos.

Primeiro tentamos contato com a Prefeitura, pelo 1746. Fomos muito bem atendidos por uma simpática moça que, todavia, não tinha como ajudar, pois os abrigos municipais já se encontram lotados. Buscamos então o Corpo de Bombeiros. O atendente foi muito solícito ao tomar nota sobre o caso e avisou que o quartel mais próximo entraria em contato conosco assim que possível.

No meio da manhã, o gato parou de miar. Pensamos que talvez tivesse conseguido escapulir, estivesse dormindo ou, infelizmente, estivesse morto. No entanto, enquanto preparávamos o almoço, o "fulano" voltou a seu insistente miado. Cogitamos da possibilidade de empreender, nós mesmo, o resgate. No entanto, consultando sites de organizações de proteção aos animais, vimos que isso seria pouco aconselhável - poderíamos acabar nos machucando, ou ao animalzinho. A recomendação que encontramos era que se recorresse a serviços especializados, como os bombeiros ou a polícia.

Liguei novamente para a central dos bombeiros. Desta vez, pouco minutos depois recebi uma ligação: era um cabo do Corpo de Bombeiros, pedindo mais detalhes sobre o caso. Assim que passei as informações, ele disse que comunicaria o fato a sua oficial, que deliberaria sobre os procedimentos.  Para nossa imensa surpresa, menos de meia-hora depois um caminhão e uma caminhonete dos bombeiros paravam à frente de nosso prédio. Enquanto me arrumava para descer, minha esposa foi à varanda falar com os bombeiros.

Chegando à rua, os vizinhos da casa em frente já estavam na calçada, e um morador de nosso prédio também se aproximou para ajudar. Os cinco bombeiros se puseram a examinar o carro com uma lanterna, em busca do gato - na verdade, ele se movimentava livremente dentro do motor, assustado conosco. Meu vizinho de prédio conhecia o dono do automóvel (outro morador de nosso prédio) e, para abreviar a história, conseguiu entrar em contato telefônico com ele, que se encontrava muito longe e impossibilitado de vir abrir o capô do carro, mas autorizava os bombeiros a arrombarem o veículo para o resgate - o que, conforme um dos bombeiros esclareceu, eles poderiam legalmente fazer, com ou sem autorização.

Nesse ínterim eu encontrara o porteiro de nosso prédio, que afirmou que mais cedo outra moradora tentara regata-lo. A senhora teria colocado um pouco de comida, fazendo com que ele saísse de seu esconderijo, mas retornando logo depois, quando ela avançou para apanha-lo. Um outro passante relatou que o animal de fato não estava preso, pois também o tinha visto saindo e retornando ao motor. Diante dessas informações, os bombeiros acharam melhor não arrombar o carro, já que o gato conseguia sair por conta própria.

Pedi mil desculpas aos bombeiros por tê-los feito vir à toa, mas eles foram muito simpáticos ao se despedirem. Um deles me tranquilizou afirmando que eu os chamara "por uma boa causa". Do episódio ficou a excelente impressão de que nossos bombeiros estão realmente a postos para ajudar, com dedicação e empatia, em ocorrências grandes ou pequenas - e isso não é pouca coisa!

Mas a história não estava concluída. O animal passou o resto da tarde miando e, por volta das 17 horas, um bocado de pessoas se mobilizou para resgatar o felino. Da janela, minha esposa e eu acompanhávamos ansiosamente. Nessa segunda tentativa, nove pessoas chegaram a se mobilizar pelo animal.

Após cerca de uma hora e inúmera peripécias que seria cansativo descrever, o animal foi resgatado. Um filhotinho bem pequenino, de pelo malhado, um pouco assustado com tanta gente a seu redor - e, ainda assim, estranhamente dócil, aconchegado no casaco emprestado por uma adolescente que ajudava na "operação". Os bravos salvadores tiraram uma selfie com o animal, enquanto minha esposa e eu aplaudíamos de nossa janela.

Um final feliz de vez em quando é bom para alegrar o coração e acalentar a esperança - especialmente após o medonho episódio de confronto urbano de dias atrás.

Há algo indescritivelmente belo em ver tantos seres humanos mobilizados pelo bem-estar de um simples animalzinho. Ao longo do dia, nada menos que dezesseis pessoas se reuniram para ajudar o gatinho, em um gesto de solidariedade que atravessa as fronteiras entre espécies.

Do episódio me ficam dois pensamentos esperançosos: o primeiro é que, apesar de todo o sucateamento e caos na administração fluminense, nossos serviços públicos (e seus servidores) ainda conseguem agir em prol da coletividade; o segundo, e mais importante, o lembrete de que podemos ser mais que bestas furiosas, quando as circunstâncias despertam o melhor que há em cada um de nós. 

Quando abrimos nosso coração ao pequenino, ao vulnerável, quando nos mobilizamos em favor do necessitado, quem quer que seja ele, algo insondavelmente poderoso se manifesta em nós - a potência oculta, muitas vezes esquecida ou menosprezada, que costumamos chamar de "Amor".

Há algo de profundamente simbólico no gatinho encurralado dentro do motor de um automóvel - a natureza como que aprisionada no coração dos mecanismos de nossa civilização moderna. Mais que nunca, fico com a certeza de que apenas no Amor podemos encontrar as forças para vencer os tremendos desafios que nosso mundo impõe, com suas engrenagens frias e, muitas vezes, cruéis.

Como dizia Victor Hugo, "amar é agir", e na ação amorosa (com um pouquinho de paciência e engenhosidade) se manifesta uma força capaz de libertar o menor dos seres dos mais opressivos grilhões.




quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Burning eyes

Dark days are coming
Rage is fuel
People is ablaze
Stormy streams
Whirl and whirl
Fulltime
Non-stop
24-7
Madness is a sour wine
This world is utterly drunk
Tripping over its feet
Blind, deaf, crawling
Its guts bleeding
A truck accelerating to crash
In rush hour
A restless juggernault
Faster, faster and faster
To the end
Begging for mercy
Hungry for oblivion
No more lullabies
No more lollipops
Just a train off-rails
Running from bane to bane
Coughing diesel smoke
A mad hurricane
Rain pours over the streets
A crimson rain
A crimson sky
A crimson twillight
A broken twig
In the broad
Burning waste

Era uma vez no Rio de Janeiro - A Brutalidade como Ordem

Escrevo essas linhas ainda aturdido pelo que presenciei nesta manhã - uma cena dantesca em uma das ruas mais movimentadas do Rio de Janeiro.

Escrevo para dar sentido ao que não tem sentido. Escrevo para exorcizar o horror. Escrevo como testemunha ocular de uma pequena tragédia. Escrevo para que fique registrado esse momento de brutalidade insana. Escrevo para aliviar minha sensação de impotência. Escrevo para confessar minha omissão.

Não pretendo aqui julgar pessoalmente nenhum dos envolvidos no bizarro incidente que presenciei. Pretendo apenas refletir sobre a situação - serenamente, se possível.

Hoje, pela manhã, acompanhei minha esposa a uma consulta médica. Saindo do consultório, rumo à farmácia mais próxima, nos deparamos com uma altercação em uma esquina da Rua Dias da Cruz, no Meier, uma das ruas comerciais mais movimentadas da Zona Norte do Rio. 

Parados no sinal, avistamos no outro lado da rua um camelô que berrava com três ou quatro agentes de segurança pública. Sem entender o que ocorria, minha esposa e eu hesitávamos em atravessar a rua.

Subitamente o camelô atirou ao chão sua própria barraca, em um gesto desesperado. As frutas rolaram pelo asfalto. "Covardes! Covardes! Eu tô aqui trabalhando! Covardes!" - gritava o camelô. Um dos agentes de segurança pública sacou um smartphone para filmar a cena, enquanto outro, a menos de meio metro de distância, falava com o vendedor, que retrucava: "Eu não vou levar nada! Vou largar tudo aí! Vocês que levem essa merda embora, seus covardes!"

Por breves instantes hesitei. Pensei em atravessar a rua e tentar conversar com o camelô e os agentes de segurança, pedir que se acalmassem para resolver a situação de modo pacífico. Ao mesmo tempo senti medo de me envolver na situação e botar minha esposa em risco.

Enquanto isso, começava a se formar uma turba enfurecida. Uma senhora indignada gritava com o rosto quase grudado na face de um dos agentes: "Covarde! Covarde!" De outro lado, vinham algumas pessoas berrando, todas solidárias ao camelô: "O cara é trabalhador, pô!" "Deixa o cara trabalhar, ele está desempregado!" Todos repetiam, como inconscientemente imitando o ambulante: "Covardes! Covardes! Covardes!" Alguns também traziam seus smartphones apontados para a cena - a essa altura já deve haver vários vídeos documentando o episódio online.

Vendo que se formava um grande tumulto, minha esposa e eu atravessamos a rua às pressas, passando entre a furiosa aglomeração que se formava, temerosos quanto ao desfecho do confronto. Apertamos o passo e entramos na farmácia, a menos de vinte metros da esquina.

Dentro da drogaria, nos sentíamos como abobalhados, indecisos, como sonâmbulos. Lá fora, a gritaria continuava. Um tanto maquinalmente, minha esposa pegou da bolsa a lista de compras e me mandou em busca de álcool-gel e álcool 70%, enquanto ela mesma ia em busca de outros itens da lista.

Me peguei perambulando a esmo pela farmácia, sem localizar o álcool, com a cabeça no tumulto, preocupado com o que poderia acontecer. Pensava sobretudo no camelô. Quando o vira exaltado atirando suas próprias mercadorias ao solo, me senti completamente identificado com ele em sua indignação e desespero. Havia naquele gesto uma angústia tremenda, a angústia de alguém ameaçado em sua própria subsistência.

Aquele homem provavelmente tem uma família, filhos. Filhos que poderiam ser meus alunos. Filhos que devem ser os alunos de alguém, em alguma escola pública de nossa cidade. Conheço a dor da perda de um filho, mas não conheço a dor de quem não sabe se o filho terá o que comer no dia seguinte. Acredito que todas aquelas pessoas que berravam indignadas se sentiam de alguma forma tocadas como eu por aquele drama urbano. Havia naquele homem algo impossível de descrever com palavras. Talvez todos nós nos sentíssemos contagiados, eletrizados, por sua agonia que se expressava em palavras, feições e gestos.

Ainda perambulava aturdido no fundo da imensa farmácia quando vi minha esposa assustada correndo pela loja em minha direção, junto com outras pessoas que também pareciam fugir. Com olhos arregalados, ela me dizia: "Vamos ficar aqui no fundo da loja! Tá saindo tiro!" Outras pessoas, muitas das quais idosas, gritavam desesperadas: "É tiro! É tiro!".

Os seguranças da loja baixaram a porta de ferro corrugado até a metade e ficaram a postos, como que esperando que a farmácia fosse invadida a qualquer instante. Funcionários e clientes se juntavam acuados nos fundos da loja. Alguém dizia: "Como vamos sair daqui?" A poucos metros um casal brigava: o marido insistia para que fossem embora dali imediatamente, enquanto a esposa queria permanecer.

Por baixo das portas era possível ver o tráfego que se acumulava na rua, acompanhado por buzinas estridentes. Passados alguns minutos, os carros e ônibus voltaram a andar; com o trânsito normalizado, uma estranha sensação de alívio tomou conta do ambiente, embora as portas de ferro continuassem baixadas pela metade e os seguranças continuassem em guarda.

As pessoas voltaram a circular normalmente pela farmácia, um tanto mecanicamente, fazendo suas compras. Eu continuava abobalhado, sem saber o que fazer. "Vai pegar o álcool!", insistiu minha esposa, e voltei a perambular pela loja desorientado, sem saber onde estava o bendito álcool. Virando em um corredor, me deparei com duas funcionárias que traziam da rua uma senhora idosa que parecia prestes a desfalecer. Uma delas gritava a um colega para que pegasse um banquinho para a senhora em apuros.

As três passaram por mim e, um tanto inconscientemente as acompanhei. Quando vi a senhora finalmente sentada no banquinho e amparada pelas duas funcionárias entendi que minha ajuda não se fazia necessária ali. Voltei a perambular em busca do álcool. A bem dizer, todas as pessoas andavam pela farmácia um tanto desorientadas, como baratas tontas, sem saber muito bem o que queriam.

Acabei reencontrando minha esposa e, juntos, localizamos o álcool. Quase mecanicamente peguei dez garrafas de 500ml e fui colocando no cestinho inferior do carrinho. Olhávamos indecisos para os frascos de álcool-gel, com certa dificuldade para decifrar os rótulos e decidir qual levar. Minha cabeça ainda estava no camelô: teria sido baleado? O que ocorrera? Olhando para a porta da loja, avistei uma pessoa cujas feições lembravam a do ambulante conversando com os seguranças e concluí apressadamente: "Ele está bem". Alcancei minha esposa, que se encontrava a caminho do balcão de remédios e falei que vira o camelô. "Ele está ferido?" - perguntou ela - "Não, acho que está bem, respondi". Mais tarde me dei conta de que provavelmente se tratava de outra pessoa, não do próprio camelô; em momentos de grande tensão nosso cérebro nos prega peças, e acabamos vendo aquilo que desejamos.

Demoramos algum tempo no balcão de remédios, enquanto uma funcionária pegava os medicamentos para nós. Olhei rapidamente na direção onde a senhora estava sentada e avistei somente o banquinho vazio. As portas da farmácia já estavam inteiramente reabertas. Entramos na fila do caixa.

A caixa que nos atendeu perguntou a um dos seguranças, que se encontrava a poucos metros de distância sobre um ferido; aparentemente, a pessoa em questão fora caminhando até um posto de saúde próximo, localizado do outro lado do quarteirão. Perguntei à caixa se o pessoa fora baleada; ela respondeu que os disparos foram de bala-de-borracha.

Tudo pago, voltamos à rua. Na calçada, minha esposa parecia não saber para onde ir. Nos encaminhamos ao ponto de táxi que costumamos usar quando vamos ao Méier. 

Andando pela Dias da Cruz, me vinham à mente cenas de filmes distópicos, especialmente Brazil de Terry Gilliam, que vi há poucos meses e Children of men de Alfonso Cuarón, que nunca assisti, excetuando algumas cenas de brutalidade visualmente impactantes. Uma frase lida essa semana pairava em minha cabeça: "Quanta violência ainda será necessária para manter o capitalismo neoliberal funcionando tal como se encontra?"

Olhando ao redor, via a maioria das pessoas circulando normalmente, como se nada tivesse ocorrido. Um alto-falante anunciava as ofertas imperdíveis de uma loja de departamentos. Ao lado da porta da loja vi um par de agentes de segurança pública que traziam pistolas taser à cintura - armas "não-letais", como as famigeradas balas-de-borracha (que, como se sabe, são apenas revestidas com borracha, mas possuem núcleo metálico e podem causar ferimentos gravíssimos e mesmo letais).

No táxi, finalmente, minha esposa e eu discutimos mais pausadamente o episódio. Nos parecia insano, surreal, grotesco, que armas tivessem sido disparadas em uma das ruas mais movimentadas do Rio de Janeiro, deixando ao menos uma pessoa ferida, devido a uma simples barraca de camelô. Pensávamos na senhora passando mal na farmácia - esse tipo de situação pode matar um paciente cardíaco ou um idoso com saúde debilitada. Enquanto escreve é provável que a senhora em questão esteja em sua casa ainda sentindo as consequências de sua crise nervosa.

Não imaginamos a identidade do ferido. Talvez fosse o próprio camelô, talvez alguma das outras pessoas envolvidas no tumulto; até, quem sabe, um dos agentes de segurança pública.

Minha esposa afirma ter escutado pelo menos quatro disparos. Pode parecer pouco, mas não é. Simplesmente estamos cada vez mais acostumados a uma dose insólita de violência em nosso cotidiano urbano, como se isso fosse "normal". 

No Japão, por exemplo, os registros de disparos de armas de fogo costumam ficar abaixo de dez por ano. A maioria da força policial japonesa não usa armas de fogo e há um controle muito rigoroso sobre o uso de armas e munição. Mesmo os policiais japoneses autorizados a usar armas precisam entregá-las na delegacia ao fim do expediente e a munição é contada rigorosamente, para que nenhum disparo passe sem registro. A posse ilegal de armas de fogo é punida com grande rigor e o mero disparo de uma arma ilegal, mesmo sem deixar feridos, também pode resultar em uma pena considerável.

Na Suíça, onde o serviço militar é obrigatório e tem caráter permanente, há ao menos um fuzil em cerca de 70% das residências - pois todo cidadão é um soldado e pode ser mobilizado em defesa da República a qualquer momento. Apesar de tantas armas, a taxa anual de homicídios costuma ficar abaixo de 30 pessoas. Em grande medida isso se deve ao fato de que o cidadão suíço não tem armas para defesa pessoal, mas para defesa da República - e o uso indevido de uma arma é punido rigorosamente.

Obviamente é complicado comparar as realidades sociais japonesa, suíça e brasileira, todas muito diferentes umas das outras. O que desejo ressaltar é o quanto nós, brasileiros, somos capazes de tolerar um elevado nível de violência como se fosse algo absolutamente "normal". A mera hipótese de se usar armas de fogo (ainda que carregadas com balas-de-borracha) em um incidente tão trivial provavelmente chocaria a maioria dos japoneses e suíços.

Como dito antes, não desejo culpabilizar pessoalmente os agentes de segurança pública envolvidos nesse incidente específico ou em outros de caráter semelhante. A questão é muito mais complexa, e é necessário ressaltar que nossos agentes de segurança pública trabalham em condições precárias sob vários aspectos; são usados como "carne de canhão" para manter a "ordem pública" em uma sociedade caótica como a brasileira.

É a própria concepção brasileira de "ordem pública" que questiono aqui. Quando armas são disparadas em uma rua de grande movimento por uma simples barraca de camelô, é sinal de que há algo muito errado acontecendo - afinal de contas, balas (de borracha ou não) representam um risco muito maior para a população que a obstrução de uma calçada por uma pequena barraca de frutas - que o diga a pessoa ferida no incidente. O episódio dantesco que minha esposa, eu e inúmeras outras pessoas viveram hoje é minúsculo sintoma de um problema muito maior e mais profundo. O Brasil possui uma das maiores taxas anuais de homicídio do mundo, então uma escaramuça urbana, por absurda que seja, parece um problema quase irrelevante.

A preservação da vida e da integridade física dos cidadãos, no Brasil, costuma ser preterida em favor da proteção da propriedade - e isso não é responsabilidade apenas dos agentes de segurança pública. Nosso Código Penal prevê penas muito desproporcionais para crimes contra a vida e crimes contra a propriedade. Como dizem jocosamente alguns juristas, "dê um soco no meu olho, mas não leve minha carteira". Uma lesão corporal é um crime imensamente mais grave que um furto, mas nossa legislação parece ignorar isso.

Há muitas razões para isso. Como muito bem observava Simone Weil, em suas origens, o Direito Romano se preocupava sobretudo com questões relacionadas a propriedade e patrimônio - e os escravos eram o tipo de propriedade mais importante na sociedade romana. Há, por assim dizer, um vício de origem nas raízes de nosso pensar jurídico. Tudo isso se agrava quando consideramos que a instituição da escravidão no império lusitano era regida, basicamente, por um ordenamento jurídico derivado do Direito Romano. Daí não se deve tirar conclusões precipitadas, mas, em um sentido muito geral, o ordenamento jurídico brasileiro se formulou sob condições históricas e sociais pouco favoráveis à valorização da vida, da integridade física e da dignidade humana.

Ao mesmo tempo, as sociedades coloniais nas Américas exigiam, para seu "funcionamento", uma dose de violência consideravelmente maior do que sucedia em suas contrapartes europeias (muito embora a Idade Moderna na Europa tampouco fosse um mar de rosas) - violência essa exercida não apenas contra escravos, mas contra diversos estratos da sociedade. Para além disso, as distâncias e a precariedade das comunicações deixavam as autoridades coloniais sob menor controle régio que suas correspondentes em território metropolitano, tornando o abuso de autoridade mais regra que exceção, como bem ressaltava o padre Antônio Vieira.

Assim sendo, a sociedade brasileira, em seu processo de formação, sempre viu a violência, por vezes a violência mais extrema, como uma condição necessária, imprescindível à manutenção de certa "ordem social". Em 1897, havia quem se queixasse de que o Exército brasileiro não tivesse degolado também mulheres e crianças na trágica expedição contra Canudos - o banho de sangue não apenas era considerado aceitável por muitos como parecia mesmo insuficiente para alguns. Durante a Revolta da Vacina, a força policial fluminense chegou a usar canhões contra a multidão. Há menos de cem anos, se atribuía ao presidente Washington Luís a noção de que "a questão social é um caso de polícia" - ou seja, que as mazelas sociais que atrapalhavam a "ordem" brasileira deveriam ser resolvidas pelo emprego da força, não através de outros tipos de políticas públicas.

Considerando tudo isso, pouco espanta que uma situação tão simples como a remoção de uma barraca de camelô descambe para o disparo de armas de fogo em meio a uma aglomeração, causando tumulto, pânico e deixando ao menos um ferido - tudo isso em nome da "ordem pública". Em um país onde o mercado de trabalho formal sempre foi precário e suscetível a instabilidade, é mais que natural que imensos setores da população urbana recorram ao trabalho como vendedores ambulantes e outros meios de subsistência pelo trabalho informal.

Enquanto minha esposa e eu aguardávamos a consulta médica, a televisão na sala de espera transmitia uma matéria que falava em tom otimista sobre a disponibilidade de empregos temporários no setor de comércio e serviços no final do ano, ressaltando como a oferta desses empregos é importante para muita gente que passou o ano desempregada - como se os elevados índices de desemprego ao longo do ano inteiro não fossem um grave problema social. É apenas uma triste ironia que, menos de uma hora depois de assistir a essa peça jornalística tenhamos tido o desgosto de assistir a um grave confronto urbano cuja causa fundamental é justamente a falta de emprego. A pensar segundo a linha editorial da emissora em questão, o camelô desesperado deveria ter aguentado um pouco mais até arrumar um emprego em novembro ou dezembro - com a grande oportunidade, como bem sublinhava a matéria, de que tal vaga se torne um emprego permanente caso o trabalhador se mostre suficientemente diligente durante o período comercial natalino. Desse modo, ficaria preservada a "ordem pública", sem necessidade tratar como "caso de polícia" uma questão social.

Enquanto escrevo essas linhas me vem à mente Pai contra mãe, tristíssimo conto de Machado de Assis ambientado nesse mesmo Rio de Janeiro. Na história, um relutante caçador de escravos fugitivos se vê na iminência de entregar o filho recém-nascido à "roda dos enjeitados", por não ter condições de sustentar a criança. Acaba capturando uma escrava fugitiva grávida, que perde seu bebê enquanto tenta escapar. Não há herói ou vilão nesse conto: apenas um pai e uma mãe forçados a lutar por seus respectivos rebentos. A trágica "moral da história" é que, onde a luta pela subsistência é atroz, sobra pouco espaço para a valorização da vida e da dignidade humana.

Como o pai do conto machadiano, os agentes de segurança pública em questão agiram segundo seu dever de manter a "ordem pública", custe o que custar, doa a quem doer. E apesar da quase onipresença da figura do vendedor ambulante na história da cidade do Rio de Janeiro, vividamente retratada por Debret, as autoridades no Rio de Janeiro persistem em tratar essas pessoas como um estorvo à "ordem pública" e, no limite, caso de polícia. Apesar dos séculos que passam, o camelô continua como figura relegada à margem da economia carioca, com tímidas e limitadas tentativas de regulamentação dessas atividades, em si mesmas dignas, honestas e legítimas. Obviamente há camelôs que obstruem vias públicas, comercializam mercadorias roubadas e pirateadas, entre outros problemas. Mas a solução para esse tipo de problema não deveria ser o uso da força, muito menos o abuso dela; deveria ser a regulamentação pelas autoridades, devidamente fiscalizada.

Mas a "ordem pública" no Rio de Janeiro tem pesos e medidas incompreensíveis (ou talvez demasiadamente compreensíveis). Há menos de dois meses uma grande empreiteira ocasionou um incêndio de grandes proporções na Floresta da Tijuca, em área de proteção ambiental. Triste espetáculo, em que inúmeros animais silvestres foram fotografados e filmados em fuga desesperada pelas ruas da cidade. A punição para essa tragédia ambiental foi uma pífia multa no valor de R$15.000,00 - apenas trocados para a empreiteira, que construirá um condomínio de luxo no local. Note-se que a venda de uma única unidade habitacional já compensa sobejamente o valor dessa multa.

Que "ordem" é essa que pune tão ligeiramente um grave crime ambiental e, ao mesmo tempo, promove indiretamente um confronto urbano completamente evitável em função de uma infração quase irrelevante para o funcionamento da cidade? Que "ordem" é essa que se recusa a regulamentar o ofício de camelô, mas se mostra criminosamente leniente para com os interesses da especulação imobiliária? Que "ordem" é essa que mata árvores, animais silvestres e deixa cidadãos feridos de maneira quase totalmente arbitrária? A quem interessa essa "ordem"?

Termino esse desabafo do mesmo modo que comecei: perplexo, indignado e consternado, entregue à sensação de impotência diante de um país e uma cidade onde o absurdo é corriqueiro, o grotesco é aceitável e a brutalidade é a "ordem". Ainda assim, teimo em fazer minhas as palavras de Martin Luther King:

Tenho a audácia de acreditar que todas as pessoas podem ter três refeições por dia para seus corpos, educação e cultura para suas mentes, dignidade, igualdade e liberdade para seus espíritos. Acredito que aquilo que os homens egocêntricos demoliram, homens altruístas podem reconstruir.


Protesto de camelôs

 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Humanos nascemos

 Humanos nascemos. 

Humanos crescemos. 

Humanos tentamos. 

 Humanos erramos. 

Humanos aprendemos. 

Humanos ofendemos. 

Humanos perdoamos. 

Humanos concordamos. 

Humanos discordamos. 

Humanos odiamos. 

Humanos matamos. 

Humanos guerreamos. 

Humanos destruímos. 

Humanos criamos. 

Humanos descobrimos. 

Humanos inventamos. 

Humanos exploramos. 

Humanos trabalhamos. 

Humanos cultivamos. 

Humanos sofremos. 

Humanos choramos. 

Humanos cuidamos. 

Humanos sorrimos. 

Humanos desistimos. 

Humanos fugimos. 

 Humanos resistimos. 

Humanos esperamos. 

Humanos persistimos. 

Humanos agimos. 

Humanos reagimos. 

Humanos mandamos. 

Humanos obedecemos. 

Humanos desobedecemos. 

Humanos sabemos. 

 Humanos ignoramos. 

Humanos mentimos. 

Humanos duvidamos. 

Humanos cremos. 

Humanos dormimos. 

Humanos sonhamos. 

Humanos despertamos. 

Humanos amamos. 

Humanos morremos. 

Humanos renascemos...? 

Humanos perguntamos. 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Paulo Guedes e o "dilema liberal"

Inflação e hiper-inflação são fenômenos econômicos muito complexos, mas o Liberalismo ortodoxo se apega a explicações muito simplórias.

Segundo o catecismo do Liberalismo Econômico ortodoxo e, mais fortemente, do Neoliberalismo, a culpa da inflação costuma ser atribuída ao governo, especialmente pela emissão de moeda. A "mão invisível" do mercado, por outro lado, seria uma força inerentemente benigna, capaz de alcançar espontaneamente o "preço ótimo" dos produtos e serviços. Nessa visão simplista e reducionista, quase platônica, o Estado seria responsável por todas as mazelas econômicas, por impedir o Mercado de agir livremente.

Na vida real, no entanto, as coisas são muito mais complexas. Embora o Estado seja um agente econômico de imensa importância, há inúmeros outros agentes envolvidos sob o rótulo reificado de "Mercado" - bancos, indústria, comerciantes, agroprodutores, consumidores, entre outros. Parodiando Margaret Thatcher, "there is not such a thing as 'the market'".

No caso específico das dinâmicas inflacionárias, a emissão de moeda certamente pode ser um fator inflacionário, mas está longe de ser o único. A concessão desenfreada de crédito por instituições financeiras, flutuação cambial, bolhas especulativas e outros fatores, isoladamente ou em conjunto, podem contribuir para crises inflacionárias. 

No Brasil, atualmente, estamos vivendo um processo inflacionário agudo, que tem atingido principalmente (mas não apenas) o mercado de alimentos, vulnerabilizando as condições de subsistência dos setores de baixa renda da população brasileira.

Em boa medida isso se deve à desvalorização acentuada do Real no plano cambial, o que tem levado o agronegócio a preferir exportar produtos a abastecer o mercado interno, devido às perspectivas de lucro mais atraentes. Em outros países, especialmente na Europa, há mecanismos legais para impedir esse tipo de situação, visando a segurança alimentar da população. Aqui, tais mecanismos não existem. O abastecimento interno do Brasil depende majoritariamente dos interesses do "Mercado" - interesses fundamentalmente baseados no lucro, deixando considerações humanitárias à margem.

Em circunstâncias normais, boa parte dos economistas liberais brasileiros a essa altura explicaria os problemas recorrendo aos velhos chavões, possivelmente clamando por políticas de austeridade (a grande panaceia liberal nas últimas décadas).

A grande ironia é que agora temos  um ultraliberal ortodoxo como "superministro" da economia, seguindo rigorosamente as recomendações do liberalismo "de cartilha" -não há no momento emissão desenfreada de moeda, uma política de austeridade não- declarada vem sendo praticada e o "Mercado" tem sido beneficiado com todo tipo de desregulamentação ou, lembrando outro ministro, a boiada está passando furiosamente.

A presente situação brasileira é o retrato vivo da falência dos dogmas liberais e neoliberais. Ainda nos anos 90, o historiador liberal e brasilianista Thomas Skidmore afirmava que as elites econômicas brasileiras manuseiam um discurso liberal intelectualmente grosseiro, falacioso, simplório, caricato, ingênuo e, em última instância, deletério para a sociedade brasileira e para a própria economia. 

Uma elite econômica, ainda segundo Skidmore, que clama por medidas ultraliberais e depois reclama quando sofre as consequências das mesmas. A meu turno, acrescento que o povão (aí incluída boa parte da classe média supostamente instruída) aplaude esses discursos que mal compreende e depois sofre no bolso e na carne.

Em 2018 esse povão, incluindo os ignorantes diplomados, elegeu para presidente um sujeito que quase se orgulhava de não entender nada de economia e transferia toda responsabilidade ao guru Paulo Guedes, então apelidado de "Posto Ipiranga".

Guedes, cujas limitações intelectuais ficam patentes a cada vez que abre a boca, herdou de Dilma e Temer uma conjuntura econômica nacional e internacional absurdamente complexa e delicada que acreditava poder sanar aplicando rigorosamente uma cartilha ultraliberal rasteira, idealizada e completamente alienada da realidade.

Agora rei está nu - e só os inteligentes querem ver.



quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Olhar compassivo

Todos os dilemas sociais ganham dimensões e perspectivas inesperadas quando tentamos enxerga-los com olhos de compaixão. O exercício de imaginar-se no lugar do outro é essencial. 

É necessário ter alguma sim-patia para com todos: o bandido, o policial, o governo, a oposição, o trabalhador, o patrão, a mulher, o homem, o branco, o negro, o homossexual, o homofóbico, o conservador, o iconoclasta, o milionário, o mendigo, o crente, o descrente, o indiferente, o exaltado - cada qual com suas dores, aflições, perplexidades, pavores, angústias, desesperos, carências. 

O sofrimento não escolhe vítimas ou algozes, inocentes ou culpados, oprimidos ou opressores. Todos suam, todos sangram, todos choram. 

Há que se lastimar o linchamento do mendigo e o suicídio do milionário. Há que se chorar cada dor e acolher cada ferido. Há que se prantear especialmente as lágrimas ocultas, invisíveis, incompreensíveis, principalmente aquelas dissimuladas sob frívolos sorrisos. 

Viver fere, nada há mais humano que sofrer e nada nos desumaniza mais que a indiferença perante a dor. Existem misérias e miseráveis de formas variadas, nos lugares mais inesperados. A desventura possui muitas máscaras. Quanta dor cabe num belo dia ensolarado! 

Toda miséria pede misericórdia. 

Precisamos buscar o Eu no Tu, dizia um pensador - e todo Tu é um Eu que sofre. Nenhuma dor humana nos é estranha, mesmo que nos pareça absurda. Todos os sofrimentos são solidários, especialmente entre sofredores que se odeiam. 

Sem buscar compreender o sofrimento alheio, fica muito difícil encontrar soluções para os problemas que enfrentamos juntos.

Pietá, de Michelangelo (detalhe).



A Boa Notícia

Mais de meio milhão de brasileiros mortos. Alguns milhares de menores de idade órfãos. Um massacre que faz Canudos se apequenar. 

Quando penso em outros países, como a Coreia do Sul, que não chegou a três mil óbitos,  me bate um misto de revolta e tristeza por tanto sofrimento desnecessário. 

Mas a boa notícia é que, desde o início da pandemia, o Brasil  fez 40 novos bilionários...

terça-feira, 12 de outubro de 2021

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Zauberflöte

 Toda síntese envolve alguma medida de conciliação. Dialética é alquimia. Apenas ouvidos atentos conduzem a conflagrada orquestra à convergência sublimada. A flauta mágica aceita apenas o sopro do coração.



sexta-feira, 1 de outubro de 2021

"A bandeira é e sempre será do Brasil"

Belo relato do amigo Marcos Passini

- Papai, posso por essa bandeirinha no carro?

É uma bandeirinha do Brasil.

- Não, filho, é melhor não.

- Já sei, é porque todo mundo vai pensar que você é Bolsonaro, né?

Seis anos e já me pondo em saia justa. A resposta é "sim", mas não me entrego tão fácil:

- Não, filho, é porque faz muito barulho quando o carro anda (podia ter pensado numa melhor).

...

Dia seguinte:

- Papai, hoje posso por a bandeirinha?

De novo. A desculpa não colou. 

Quer saber?

- Pode, filho. É a bandeira do nosso país. Ponha onde quiser.

É a bandeira do país onde nasci e que, com todas as mazelas, aprendi a amar. Amar a sua cultura, seus costumes, sua arte, sua comida, essa imensa e bela terra que o compõe. E também seu povo, embora eu esteja um tanto magoado com ele desde 2018.

Então, se alguém me vir por aí com bandeira do Brasil, não se apresse a entender. E lembre que a bandeira é e sempre será do Brasil.



quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Ordem e caos

Algumas notas caoticamente ordenadas: 

-o caos faz parte da existência: não deve ser temido, mas aceito

-aquilo que parece caos muitas vezes é apenas uma ordem que não conseguimos compreender. Um cadáver em decomposição pode parecer desordem, mas a decomposição em si já é um tipo de ordem, inscrita na natureza desde tempos imemoriais.

-de si mesma, a ordem é neutra, apenas uma determinada disposição de coisas mutuamente relacionadas de determinada maneira. A ordem pode, muitas vezes, ser perversa e perversora. Escravidão, inquisição, nazismo, stalinismo não apenas eram ordenados, mas muito ordenados. A mera ordem não exclui a barbárie, e pode mesmo dar à barbárie um poder que o caos jamais lhe daria. Uma horda caótica costuma ser menos perigosa que um Estado genocida. O crime ORGANIZADO é, basicamente, um tipo de ordem.

-é fácil, demasiadamente fácil, perverter a ordem onde ela existe. Quanto mais rígida for essa ordem e mais dependentes dela forem seus integrantes, mais fácil se torna perverte-la. Quanto mais fortemente centralizada for a ordem, mais facilmente pervertida ela pode ser por aquele que venha a ocupar seu centro. Todo tirano almeja ser o centro de alguma ordem.

-é extraordinariamente fácil criar algum tipo de ordem social: basta certa truculência direcionada pela volúpia; tal gênero de ordem se baseia amplamente na heteronomia, secundada pela latente ameaça de coerção brutal; por outro lado, construir uma ordem fundamentada na autonomia de seus participantes exige laborioso cultivo de virtudes difíceis de compreender, adquirir e manter.

-toda ordem tirânica depende simbioticamente do caos, real ou fantasiado, para se manter; precisa ter ou inventar inimigos externos e internos que personifiquem o caos, tornando assim defensável e tolerável a própria ordem tirânica

-a ordem pode ser uma ilusão perigosa. Quanto mais complexas e, portanto, ordenadas, as coisas parecem, maior é sua fragilidade potencial. A estabilidade de um sistema qualquer costuma ser inversamente proporcional a sua aparência de solidez.



terça-feira, 28 de setembro de 2021

Eu, meu vizinho e o resto do Brasil

Meu vizinho de frente tem uma visão de mundo quase diametralmente oposta à minha. Nossos apartamentos, separados por menos de dois metros de corredor e com planta especular são quase como dois países diferentes.

Nosso convívio é distante e superficial, mas respeitoso e amável. Jamais tivemos qualquer tipo de altercação. Avalio, inclusive, que ele realizou uma excelente gestão como síndico, alguns anos atrás.  Em certa ocasião, nos unimos e mobilizamos para ajudar um terceiro vizinho que sofrera um acidente doméstico. Em um dos momentos mais dolorosos de minha vida, ele mobilizou membros de sua paróquia para orar por minha esposa e eu.

Somos pessoas muito diferentes, mas não inimigos. A bem dizer, no que tange ao nosso condomínio,  nossos pontos de vista tendem a convergir.

Afinal de contas, somos diferentes, mas não fundalmentalmente diferentes. No fundo, queremos ambos paz, sossego e prosperidade para nossas respectivas famílias. Um teto sobre a cabeça, emprego, comida na mesa, segurança em nossas ruas - em suma, condições dignas de viver. Nossas divergências, a bem dizer, se situam mais acerca dos meios que dos fins.

O mundo ideal para mim certamente seria um inferno para ele - e vice-versa. Mas o mundo não precisa - e nunca será - o ideal para nenhum de nós. Nenhum. Nem para mim, nem para meu vizinho, nem para todo o povo brasilero, muito menos para toda espécie humana. 

Todavia, dentro de nossas divergências, quero crer que nós dois, como todo o povo brasileiro, como toda a humanidade, precisamos abrir mão de nossos mundinhos idealizados e pisar firme no chão do mundo real.

Precisamos nos unir para construir o melhor Brasil POSSÍVEL. Um país minimamente aceitável para todos nós. Um Brasil possível, não um Brasil ideal. Um Brasil onde nossas famílias possam ter paz, sossego e prosperidade, como tanto almejamos. 

A política democrática, "arte do possível", deveria viabilizar isso. Mas, para tanto, é essencial que eu veja meu vizinho como concidadão, não como inimigo. Precisamos reconhecer e aceitar nossas divergências para buscar pacificamente e serenamente nossos pontos de convergência. 

E é exatamente o oposto disso que nós, brasileiros, temos feito ao longo dos últimos anos. Afinal de contas, é muito mais fácil, simples e emocionalmente confortável rotularmos uns aos outros e rompermos todas linhas possíveis de diálogo. Costuma ser mais fácil erguer muralhas no terreno aparentemente sólido de nossas certezas individuais que construir pontes sobre a água, sempre movente, imprevisível, traiçoeira. A solidez, ainda que aparente, nos traz conforto; a fluidez, impetuosa, incontrolável, nos deixa apreensivos, incertos de nós mesmos. 

É necessária boa dose de coragem moral para abrirmos nossas mentes e dialogar. Mas é imperativo abandonar nossas armas e couraças para isso. E cabe a mim a iniciativa de abandonar minhas defesas, se eu quero sinceramente que meu vizinho também abandone as suas. Cabe a cada um de nós romper o círculo vicioso de ofensas e retaliações que tem envenenado o ambiente político de nosso país.

Nenhum de nós é perfeito. Cada um de nós, em alguma medida é responsável pelo cultivo de animosidades e antagonismos que nos trouxe a essa situação insuportável. Cada a um de nós, a seu modo muito peculiar, é parte do problema. Precisamos refletir sobre nós mesmos e mudar algumas de nossas atitudes para que nos tornemos parte da solução. "O Inferno são os outros", mas todos nós somos o outro de alguém. 

Se há nobreza em acreditarmos em nossos ideais, há ainda maior nobreza (e realismo) em compreender que precisamos abrir mão de parte deles para construir uma sociedade um pouco melhor. Um pouco melhor para mim, mas também para meu vizinho. Às vezes, é melhor ser gentil que "vencer" um debate à custa da gentileza. Se a única maneira que encontro para afirmar meu ponto de vista é hostilizando o outro, minha causa já está perdida, pois a hostilidade fecha ouvidos, corações e mentes.

Palavras virulentas e discursos apaixonados são ótimos para políticos que buscam votos a qualquer custo, mas são péssimos para nossas relações cotidianas. E é justamente nas esferas de convívio cotidiano que podemos e precisamos cultivar o diálogo saudável, sem o qual a democracia definha e se desfigura, tomando ares de uma guerra mental que a cada dia nos desgasta emocionalmente e intoxica nossa existência. 

Queremos todos viver em paz com nossos vizinhos - e todo mundo é vizinho de alguém. 



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O declínio de Cosme e Damião?

Tendo a pensar que a distribuição de doces de Cosme e Damião pode se extinguir, pelo próprio desinteresse dos católicos. 

Em minha família, todos que ofereciam doce já morreram ou, pela idade, não distribuem mais. Os católicos mais jovens não se interessam pela prática - o próprio hábito da promessa, em sentido geral, parece estar desaparecendo do catolicismo popular. Em certo sentido, a dinâmica psicológica subjacente à promessa tem migrado do catolicismo para o neopentecostalismo, embora sob expressões religiosas distintas, desta vez de inspiração veterotestamentária ("jejum de Daniel", vigílias, "subir o monte", entre outras). 

De todo modo, puxando pela memória, no meu círculo familiar havia seis pessoas ou casais que distribuíam doces. Desses, quatro morreram e duas não o fazem mais - de seis para zero. Uma mudança quantitativa drástica que,  penso eu, reflete um quadro social mais amplo. 

Avanço a hipótese de que, hoje, a prática ainda se mantém viva sobretudo entre praticantes de religiões afrobrasileiras - afinal de contas, a festa sempre teve forte conotação "afrocatólica".

Vale ainda lembrar que a própria festa sofreu muitas transformações ao longo do século XX, ao menos nos subúrbios cariocas. As mesas de doces nas residências particulares momentaneamente abertas para estranhos gradativamente perdeu espaço para os saquinhos de doces embalados para viagem e os próprios doces caseiros foram sendo substituídos por guloseimas industrializadas, normalmente adquiridas em comércio atacadista. Os banquetes comunitários também foram se tornando menos comuns, de certo modo "migrando" para as feijoadas de São Jorge. 

Curiosamente, a devoção por Ogum-São Jorge tem crescido nas últimas décadas, enquanto a festa de Cosme e Damião parece minguar.

Mudanças culturais entre gerações, o ritmo cada vez mais acelerado da vida urbana, permutas simbólicas no campo da própria religiosidade, tudo parece contribuir para o deslocamento da Festa de Cosme e Damião enquanto prática social - ainda que não necessariamente à sua extinção. 

Em certo sentido me lembra as reflexões de Peter Burke sobre o "triunfo da quaresma" na Idade Moderna; a religiosidade e a cultura popular sempre se transformam, às vezes drasticamente, em períodos de intensas mudanças sociais. 

Damião, Cosme e Doces

Observações do historiador Fred Oliveira

Hoje, aqui pelo Rio, devido à recusa e grosseria de algumas pessoas (geralmente evangélicas), as pessoas (geralmente católicas) que distribuem doces de Cosme e Damião chegam cada vez mais acanhadas para perguntar se alguém teria interesse em receber um saquinho de guloseimas... 

Até os anos 90 a data ainda produzia um alvoroço, se distribuindo doces e sorrisos entre todos. Era uma felicidade, e mesmo quem não queria (por crença ou gosto diferente) não demonstrava desagrado, levando numa boa, mesmo sem aceitar o doce oferecido, a farra daquela festiva e popular tradição. 

Porém de lá pra cá algo mudou na nossa sociabilidade... 

Atualmente (e já vi ocorrer) algumas pessoas fazem questão de reclamar do oferecimento do pacotinho de doces e outros mesmo falam contra aquela fé... Infelizmente católicos também tratam evangélicos de modo desrespeitoso em relação a outras questões. 

Por causa dessa luta de vetos, ainda se diluirão muitas práticas do costume!



sábado, 25 de setembro de 2021

Sobre a "ocupação" da BOVESPA pelo MTST

Essa semana o MTST "ocupou" a BOVESPA em protesto contra o desemprego, a carestia, a miséria e as profundas desigualdades sociais no Brasil. Segundo as lideranças do movimento, seria uma maneira de fazer ouvir a voz do povo no maior reduto de especuladores financeiros e rentistas no Brasil. Houve quem saudasse o acontecimento como a irrupção do "Brasil Real" na fortaleza da alta finança - óbvio exagero triunfalista.

Não sou contra o protesto, em si, mas não sei se o timing foi bom. Justamente em um momento em que várias entidades ligadas ao mercado estão se manifestando pela democracia e contra Bolsonaro, acho que não foi o instante mais oportuno. Prioridades precisam ser pensadas de acordo com as circunstâncias. Cultivar antagonismos nunca é bom e, em um contexto de acentuada tensão social, pouco contribui para a superação da crise que vivemos. 

Qualquer ação pública precisa ser pensada em termos do impacto intentado. Atos que pregam aos convertidos e geram ruído para com os que estão "de fora" só agravam o isolamento político da esquerda em um momento em que se faz essencial construir pontes.

Há que se levar em conta que vivemos em um país de mentalidade muito conservadora (mais no sentido social que político) e há muita gente apavorada com o "bicho-papão" do comunismo. Não faltou quem, nas redes sociais, identificasse o MTST como "braço terrorista" (sic) do PSOL. 

Vivemos em uma sociedade em que políticos de extrema-direita podem vociferar as piores grosserias e barbaridades sem causar grande comoção, mas em que um protesto pacífico por parte da esquerda logo ganha ares de "ato terrorista". Essa falta de critério - ou melhor, esse critério distorcido - é certamente lamentável, mas é um dado cultural de nossa sociedade com o qual se faz necessário lidar com ponderação e sobriedade.

Esse tipo de protesto satisfaz certo público de esquerda, mas não contribui para um diálogo mais amplo com outros setores da sociedade brasileira - setores muitas vezes desdenhados como "pobre de direita", "classe mérdia" e por aí vai. 

É o eterno problema de boa parte da esquerda brasileira, que se preocupa mais com a perpetuação de uma estética supostamente revolucionária que com a viabilização de programas políticos.

Guilherme Boulos, liderança mais destacada do MTST, me parece um sujeito bem-intencionado, bem articulado, mas muito dado a exageros retóricos que me soam contraproducentes. Alguém que chegou ao segundo turno nas eleições para prefeito da maior cidade do Hemisfério Sul precisa ser mais cuidadoso em suas estratégias de comunicação com o público. Para bem ou para mal, Boulos conquistou uma posição de grande visibilidade na política nacional, e é de se esperar que adquira mais sagacidade política do que tem demonstrado até agora. 

A esquerda brasileira, definitivamente, precisa abandonar a mentalidade de DCE para encontrar meios mais amplos de diálogo com a sociedade brasileira, em toda sua complexidade. O Brasil não se reduz a hashtags e slogans.

Cada vez que alguém usa o termo "burguesia" morre uma fada...



sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Monstruosos moralismos

Eis agora um paladino da moral e dos bons costumes que estupra a neta - depois de outra que matou o próprio marido e um terceiro que espancou uma criança até a morte. "Tutti buona gente".

A pretexto de salvar a "família tradicional brasileira", combater "a roubalheira do PT" e deter "a ameaça comunista", colocamos no poder sociopatas hipócritas da pior índole possível - afinal de contas, "happiness is a warm gun".

Me sinto cada vez mais desgostoso e enojado dessa sociedade cínica, ignorante, grotesca, fanfarrona, delirante, idólatra, fanática e farisaica, "temente a Deus", mas abraçada com o que há de mais diabólico e sinistro - "dragões vomitados do Inferno", para citar os versos de Anchieta.

A caixa de Pandora está aberta e seus horrores não param de sair. O fundo do poço é a última esperança - se fundo houver. 

O cinismo por aqui é tamanho que Medusa admira orgulhosa seu próprio reflexo, moralmente incapaz do pudor da petrificação.



quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Para que servem as estatísticas?

O texto abaixo resulta de uma discussão virtual acerca das supostas tendências ideológicas e preferências políticas dos professores de Humanidades, mas trata mais amplamente da importância das estatísticas (bem como de seus limites) para a compreensão de fenômenos sociais em macroescala. Como estou longe de ser um especialista no assunto, espero que os leitotes tenham isso em mente - e, caso possivel, me sinalizem equívocos implorando por correção. Vale ressaltar ainda que, por se tratar de adaptação de conversa informal, há algumas digressões um tanto pitorescas; o mesmo vale para o uso excessivo da primeira pessoa.


A realidade é opaca para qualquer um de nós. Todos trabalhamos com percepções impressionistas de onde olhamos a realidade. Nenhum ser humano é capaz de ter uma perspectiva total da realidade, como salientava Leibniz (co-criador do Cálculo "newtoniano").


Qualquer espaço amostral é suscetível a falhas, por maior que seja. Isso vale tanto para pesquisas de opinião quanto experimentos de laboratório. É por isso que pesquisadores de ciências naturais geralmente realizam milhares e milhares de vezes o mesmo experimento e, mesmo assim, surgem os famosos "pontos fora da curva", que geralmente correspondem a ocasiões em que algo "deu errado" - uma distração do experimentador, uma falha boba na aparelhagem etc. Um experimento realizado apenas 100 ou 200 vezes tem margem de erro astronômica.


Outro detalhe importante é a POSSIBILIDADE de repetir experimentos, como salientava o hoje pouco lembrado Jean Piaget. Há muitos ramos das ciências naturais que não têm como repetir experimentos. É o caso da meteorologia, da astronomia, astrofísica, etologia etc etc etc. São ciências de observação. Um exemplo: quem estuda predadores em ambiente natural tem raras oportunidades de presenciar um "evento de predação". O que se faz, geralmente, é localizar carcaças de presas, pegadas frescas que indiquem uma perseguição recente (que muitas vezes não resulta em abate), ou fezes do predador - onde se encontram pelos, penas ou indícios microscópicos que permitam identificar quem-comeu-o-que-e-quanto. Obviamente precisa-se de milhares de amostras fecais para ter um panorama acurado da coisa. Da mesma forma, há efemérides astronômicas comuns, frequentes e até previsíveis e outras raríssimas, como supernovas (lembrando que só "vemos" supernovas milhares de anos depois que elas ocorreram).


O mesmo se aplica a fenômenos sociais. Há aqueles corriqueiros e REGISTRADOS, como nascimentos, óbitos, casamentos, divórcios, campeonatos esportivos, eleições e outros relativamente raros, como revoluções, golpes de estado etc.


Mesmo fenômenos comuns são difíceis de analisar. Por exemplo, hoje, na Europa e nas Américas, em média, a duração dos casamentos tem se mantido num patamar inferior a 10 anos. Daí podemos inferir que os casamentos estão cada vez mais curtos - mas apenas na média. Digamos, por exemplo, que um país tenha uma média corrente de 5 anos. Isso não significa que a maioria dos casamentos dura 5 anos; significa que a maioria dura bem menos. Para um casamento de dez anos, há cinco de dois anos; para um de 20 anos, há outros 20 de apenas um; para um de 40, há 80 de seis meses. Ou seja, a média nos induz a uma conclusão tremendamente equivocada. A maioria dos casamentos dura bem menos que 5 anos; uma minoria fica bem acima dos 5. Na prática, a média corresponde a uns poucos casos reais que ficam acima da maioria e muito abaixo de uma minoria.


Isso nos leva à questão da modelagem estatística. O método mais comumente empregado é a um tanto grosseira estatística gaussiana, baseada literalmente em arremessos aleatórios de moedas (foi o modelo adotado por seu criador, Gauss, no século XVII). Aperfeiçoamentos foram surgindo nos séculos seguintes, majoritariamente baseados em jogos de azar - rolamento de dados, embaralhamento de cartas, lances de roleta etc. Diga-se de passagem, essa matemática bastante simples era geralmente produzida por aristocratas ociosos interessados em ganhar apostas em cassinos e mesas de carteado, e não por aristocratas e clérigos ociosos interessados em desvendar os mistérios do universo, como Newton ou Bayes. 


Mas justamente por ser simplória, é uma metodologia sedutora. Não exige muito esforço mental. Dependendo do caso, são contas que qualquer um faz de cabeça - afinal de contas, ninguém pode se dar ao luxo de resolver equações complexas durante uma partida de carteado.  A aplicação indiscriminada da estatística gaussiana é o que Nassim Taleb chama de "falácia lúdica", pois jogos são universos fechados, com começo, meio, fim e resultado claramente definidos. A realidade NÃO é um tabuleiro de xadrez ou um baralho com 52 cartas. A abordagem gaussiana realmente funciona para jogos (há alguns anos criei um modelo gaussiano que uso em partidas de War e funciona razoavelmente), mas jamais serviria para planejar estratégia em uma guerra de verdade. Para isso, é melhor ler Clausewitz (a obra de Sun Tzu, diga-se de passagem, é antiquada e um tanto banal, boa para executivos metidos a general de pijama). Note-se que, a rigor, jogos como xadrez ou War, por fascinantes que sejam, sequer são realmente jogos de estratégia - a rigor, são jogos de tática, segundo a classificação, ainda válida, de Clausewitz. E mesmo Clausewitz, que viveu e escreveu na virada do século XIX, já é antiquado - suas reflexões tomavam por modelo as Guerras Napoleônicas. E, como se sabe, a diferença entre tática e estratégia é que a primeira se se refere a situações em que os oponentes têm à vista as respectivas forças (ou seja, onde a totalidade ou maioria dos dados relevante é conhecida - como em um tabuleiro de xadrez), enquanto a última diz respeito a situações em que os oponentes desconhecem o conjunto das forças e recursos envolvidos, ocultos na tal "névoa da guerra", como diz Clausewitz. Mesmo em jogos de carteado, onde os adversários podem ocultar seus recursos, o número e tipo de cartas que cada um pode ter na mão é limitado e previamente conhecido pelos jogadores, constituindo assim um "desconhecido-conhecido".


Retornando à estatística gaussiana, ela se popularizou imensamente no século XIX e ainda é usada por muitos pesquisadores nas ciências biológicas, assim como em economia, administração, "negócios" etc. Vale notar que, a rigor, a metodologia gaussiana não é totalmente inválida, contanto que seja aplicada apenas a objetos de estudo e conjuntos de dados tratáveis por ela, ou seja, dados que não envolvam variação radical - como altura ou peso de indivíduos, por exemplo; nenhum pesquisador espera encontrar um indivíduo de 15 metros em uma população humana. O grande problema é que ela vem sendo usada de maneira generalizada e indiscriminada, com efeitos muitas vezes desastroso, especialmente na área econômica, onde são possíveis variações extremas - como restaurantes de bairro e grandes franquias mundiais com milhares de unidades, embora em ambos casos se opere no setor de alimentação.


Voltando à questão da duração dos casamentos, outra modelagem estatística seria no campo da "aleatoriedade mandelbrotiana", que comporta inúmeras metodologias, baseadas na "lei de potências" - ou seja, distribuição exponencial. Mandelbrot, como se sabe, é o "pai" da matemática de fractais, ligada ao campo da dita "matemática do caos".


O ideal seria usar um gráfico de colunas, mas vou usar uma imagem mais "palpável". Se em nosso hipotético país cada casamento fosse uma edificação em uma cidade, teríamos milhões de casas térreas, um pouco menos de prédios de dois andares, bem menos com três ou quatro e ainda menos com cinco andares (a tal "média" gaussiana) e então um número cada vez menor de prédios com 6 ou mais andares, talvez um milhão com dez, meio milhão com 20, e, numa queda brusca, umas poucas centenas de prédios com mais de 20 andares. Ou, para usar outra imagem, seria como uma escada com muitos degraus extremanente longos e baixos e poucos degraus curtinhos, mas extremamente altos (10, 20, 30 ou 40 vezes mais altos que os demais).


Aqui já resolvemos parte do problema. Toda média é uma abstração que não retrata fielmente a realidade. Médias são úteis para cálculos simples e grosseiros, mas falham miseravelmente quando se trata de captar a complexidade do real. Isso significa que é ABSURDO falar em "brasileiro médio", "americano médio", "evangélico médio" ou coisas assim. O "fulano médio" é uma abstração matemática. 


Não existe algo como o "professor de História médio", "o professor de humanas médio" ou o "acadêmico médio". Esse tipo de absurdo só existe na cabeça de "cientistas" políticos - como se política fosse "ciência". Ou de economistas, analistas de mercado, sociólogos e outros compradores da "falácia lúdica". Ressalto, todavia, que em todos esses campos há profissionais competentes e talentosos, muitas vezes marginalizados pelos pares, especialmente em áreas que adotam certa "ortodoxia", como é o caso da Economia.


Agora temos outro problema: escalas.


Escalas são algo completamente contraintuitivo, pois somos quase todos criaturinhas com menos de dois metros de altura num planeta cujo ponto mais alto é o Everest. Só conseguimos enxergar o Everest inteiro a muitos quilômetros de distância - aí perdemos os detalhes. Para ver os detalhes precisamos escalar o Everest (e aí não o vemos inteiro) ou usamos um bom telescópio refrator (e também perdemos de vista o Everest inteiro). Falo com conhecimento de causa, pois tenho alguma prática como astrônomo amador. 


Já tive um telescópio refrator razoável e com ele dava para ver até rochas lunares e mesmos distinguir a sombra projetada por elas. Mas há aqui dois problemas. Um deles é que a rocha é tão pequena e a lua tão grande que fica MUITO difícil saber exatamente em que ponto da lua está a rocha avistada. O outro problema é que o sujeito e o objeto estão simultaneamente em movimento. Eu, minha cadeira e meu telescópio estamos acompanhando a rotação terrestre, enquanto a rocha segue a translação lunar, ambas trajetórias a milhares de quilômetros por segundo!


Na prática de observação, o que vejo através de minha lente ocular é uma faixa de paisagem lunar desfilando por alguns minutos até que a lua suma de vista do telescópio, como se fosse uma tomada panorâmica de cinema. Mas na verdade é muito mais complicado que isso. Como sei que minha observação da lua durará pouquíssimo tempo, tenho que saber EXATAMENTE onde fica o pólo sul da esfera celestial (levei meses para descobrir: fica  cerca de 30 graus acima do telhado da casa de meu vizinho), traçar com antecedência uma estimativa da trajetória lunar, calibrar meu telescópio em um ponto específico da trajetória estimada e aguardar cerca de 15 minutos olhando para o vácuo. Se acertei na estimativa, a lua aparecerá por uns dois minutos na minha lente e  - puf! - desaparecerá dois minutos depois. Se errei, tenho que recomeçar tudo do zero. 


Parece tedioso, mas é emocionante como um safári. Fica mais fácil quando se tem um telescópio com tripé de montagem equatorial (melhor ainda com rotação automática), mas é caro. Para o astrônomo pobretão (como eu), o mais barato é um tripé zenital, que dificulta a tarefa. Não que a montagem zenital seja "pior" - ambas são boas, dependendo do que se queira observar. O ideal é ter mais de dois tripés, com montagens e mecanismos diferentes.


Voltando às escalas de observação, nossas  noções costumam ser muito toscas, pois somos algo como micróbios cósmicos, como diria Dr. Manhattan. Geralmente pensamos a diferença entre a Terra e Júpiter como algo como uma bola de futebol ao lado de uma bola de tênis - grave equívoco. A proporção mais adequada é algo como a Terra do tamanho de uma bola de gude e Júpiter como aquelas bolas gigantes do Quico. Comparado ao Sol, Júpiter é como um grão de areia ao lado da bola do Quico e a Terra seria virtualmente invisível.


Um hipotético astrônomo alienígena em Alfa Centauri, usando os mais avançados equipamentos astronômicos que temos hoje teria dificuldade para detectar, a Terra mesmo com um poderosíssimo radiotelescópio. Note-se bem, trata-se aqui de DETECTAR (não "ver") por métodos indiretos como anomalia gravitacional ou desvio de ondas, usando toneladas de cálculos astronômicos. E ainda restaria a dúvida: "isso é MESMO um planeta ou será outra coisa?"


"Observar" estatisticamente fenômenos sociais - como as inclinações políticas dos professores de História - é tão complicado quanto "caçar" a Lua com um telescópio refletor de montagem zenital. É mais como observar uma supernova ocorrida há milhares de anos com um radiotelescópio.


Primeiramente, pela escala. 18 professores de História, ou 100, ou dez mil são uma amostragem estatisticamente irrelevante. Não dá para fazer isso com uma pesquisa de opinião ou, digamos, contando quantos professores de História seguem Marcelo Freixo no Twitter, nem quantas pessoas seguem a página "Professores de História Marxistas e Militantes" no Facebook, muito menos lendo os comentários que essas pessoas postam ou números de curtidas. Todos esses dados são  qualitativamente interessantes, mas muito limitados e dificilmente pode-se extrapolar que representem fielmente as tendências políticas da maioria dos professores. Ainda estamos presos na perspectiva limitada apontada por Leibniz. Mesmo admitindo que a maioria dos professores se alinhem genericamente com posições políticas consideradas de "esquerda", é muito difícil inferir detalhes de sua adesão a esse campo político, com toda sua variação de qualidade e intensidade. Não se trata de uma população homogênea em que todos partilhem uniformemente das mesmas opiniões gerais e, muito menos, que venham a adotar atitudes idênticas diante de situações e questões específicas. Ainda que se chegasse a uma "média", como discutido antes, essa média, necessariamente abstrata, corresponderia a apenas uma parcela relativamente pequena do conjunto de pessoas reais envolvidas. A bem dizer, se pegássemos aleatoriamente algumas postagens em redes sociais, seria fácil constatar que há grande variedade e discordância entre os membros do grupo em questão.


Em segundo lugar, porque estatísticas consolidadas de fenômenos sociais macro são muito demoradas de coletar e calcular, então o resultado é sempre retrospectivo. Por exemplo, a mídia fala o tempo todo em PIB anual ou PIB trimestral, mas estes dados são apenas provisórios. O cálculo consolidado do PIB  geralmente leva cerca de 5 a 7 anos, então, quando sai, os governantes já não estão mais no poder. Mesmo o resultado consolidado não é "real", só é menos grosseiro. E o detalhe mais importante: entre a estimativa provisória divulgada na mídia e o resultado consolidado a discrepância sempre é enorme (algo na casa dos 30%) e SEMPRE para baixo. Ou seja, o PIB veiculado na mídia sempre é desviado para cima. Se parece maravilhoso é, na melhor das hipóteses, bom; se parece ruim, é péssimo - e se parece péssimo, na realidade, é o fundo do poço.


Para ter uma ideia realmente precisa acerca das inclinações políticas dos professores de História, teríamos que fazer um levantamento exaustivo - um recenseamento oficial ou algo assim. 


Como? O Ministério da Educação poderia abrir um site com um formulário declaratório. Não adiantaria para grande coisa, porque dificilmente alguém se declararia "extremista", já que todo extremista se considera sensato e moderado. O ideal seria um questionário discursivo - inviável, pois seria caríssimo e extraordinariamente demorado fazer algo assim. Restaria fazer um questionário de múltipla escolha. Mas, discursivo ou objetivo, qualquer questionário seria subjetivo - o resultado refletiria apenas os critérios previamente adotados pelos elaboradores do questionário. E, ainda assim, quando todo o trabalho de coleta e análise dos dados fosse concluído, é provável que os professores em questão já teriam mudado suas opiniões, ainda que sutilmente. Muito trabalho e dinheiro gastos para nada.


CONCLUSÃO

De um ponto de vista "empírico cético", é IMPOSSÍVEL ter certezas sobre as tendências políticas do conjunto dos professores de História, professores de humanas, dos acadêmicos de humanas ou o que o valha. O máximo que podemos ter é suspeitas, impressões e opiniões - "achismos", enfim. Mesmo uma ampla pesquisa estatística ofereceria apenas um vago retrato da realidade. Ficar discutindo isso não leva a lugar nenhum. É como um cachorro correndo atrás do rabo.


O melhor que podemos fazer é conviver com a incerteza - o que é incômodo. Como prova o sério, premiadíssimo e justamente reconhecido trabalho de Daniel Kahneman em psicologia experimental, o ser humano, mesmo com a mais refinada erudição e ampla formação acadêmica (o público estudado por Kahneman), tem imensa dificuldade em conviver com a incerteza prolongada. Temos, todos nós, gatilhos emocionais que nos induzem a escolher imediatamente as "certezas" que confirmem nossa visão de mundo, mesmo em questões triviais do cotidiano. Somos escravos de nossos hábitos. 


E a convicção costuma ser inversamente proporcional à reflexão. Nos deixamos guiar principalmente por nossas simpatias e antipatias inconscientes. O contrário disso exige um esforço prolongado de suspensão da certeza, cujo custo emocional costuma ser exasperante para a maioria de nós. No fundo, é basicamente o que Montaigne, La Boétie e Pascal já diziam séculos atrás. Traduzindo grosseiramente Pascal, "o ser humano é um graveto pensante".


Como "graveto pensante", me resigno à incerteza sobre este, como tantos outros assuntos. Minha única certeza absoluta e inegociável quanto a este mundo é que, a longo prazo, todos estaremos mortos. No que tange ao resto, tento sempre permanecer aberto a novos olhares e perspectivas, me dando ao luxo de não ter opiniões formadas sobre inúmeros assuntos.


No que concerne às estatísticas, elas constituem uma ferramenta extremamente válida para a abordagem de fenômenos sociais em escala macro - contanto que tenhamos plena consciência das limitações dessa ferramenta. Não se trata de acreditar ou deixar de acreditar em estatísticas, mas sim de compreender a natureza das diferentes metodologias e abordagens estatísticas e de sua aplicação adequada ao conjunto de dados por estudar.


Ao contrário do que pensava o Chaves do 8, nem tudo é "culpa das estatísticas"... Ou, como dizia certo matemático, os números não mentem, mas os seres humanos usam números para mentir.


Vale lembrar a piada: havia dois homens e um frango assado. Um deles comeu o frango inteiro e, depois, usando estatísticas, convenceu o outro de que ambos haviam comido meio frango...