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quarta-feira, 30 de março de 2022

Risco, investimento, patrimônio e empreendedorismo - Breve reflexão sobre um dogma liberal

 "O pequeno número de gigantes e o poder de que eles dispõem levaram à reconsideração de uma teoria econômica baseada no número infinito de unidades em competição, uma teoria da 'firma' que, nos seus piores momentos, não vê diferença entre a General Motors e a sorveteria da esquina".

Alec Nove


"Digamos: Bill Gates, um grande industrial, o proprietário de um hotel médio, o dono de um bazar modesto ou da pequena cervejaria com três empregados e em que o patrão também trabalha, o barbeiro com uma só cadeira e o vendedor de paçoca na porta da PUC".

Ruy Fausto


Um dos dogmas defendidos pelo Liberalismo Econômico ortodoxo é de que a assimetria de recompensa entre patrões e empregados na geração de valor se justifica devido ao patrão correr risco ao fazer o investimento, devendo portanto receber uma compensação proporcional ao risco incorrido. Até certo ponto, como dizia o pensador socialista Jean Jaurès, isso é verdadeiro e justo, mas a partir de certo limite esse argumento se torna falacioso. Em sua perspectiva não-marxista, escrevia Jaurès em 1891:


As sociedades mais iníquas guardam alguns elementos de justiça misturados à mais completa iniquidade; eles lhe servem de pretexto, de salvaguarda e de garantia; e aí está precisamente a dificuldade do problema social. Demarcar o justo do injusto, marcar o ponto onde a legitimidade da poupança se converte em capitalismo abusivo, eis a tarefa não bárbara e grosseira, mas delicada e sutil do socialismo, e esta obra reclama toda a precisão da ciência, como ela reclama toda energia da consciência.

Nesse sentido, é importante distinguir entre os diferentes graus de risco que os investimentos envolvem, devido à heterogeneidade entre os investidores. Como bem lembram as citações de Nove e Fausto aqui usadas como epígrafe, há grande diferença entre uma multinacional e um negócio de bairro, entre um bilionário e o vendedor ambulante. Todos eles podem ser - e costumam ser - classificados sob a categoria genérica do "empreendedor", o que beira a desonestidade intelectual.

A relação entre risco e investimento não é algo genérico e homogêneo; ela comporta infinitas gradações, a depender tanto do investimento quanto do investidor. Quanto maior o patrimônio de um empreendedor, menores tendem a ser os riscos, financeiros ou pessoais, que ele corre - pouco importando aqui se esse patrimônio seja herdado ou adquirido. Para um vendedor ambulante ou um comerciante de bairro, um investimento relativamente pequeno pode representar um risco imenso, inclusive para sua subsistência, enquanto um investimento de milhões pode representar um risco pequeno, quase desprezível, para um bilionário ou uma multinacional.

Para o pequeno empreendedor, um investimento modesto que redunde em prejuízo pode ter consequências dramáticas a longo prazo, das quais talvez nunca se recupere; para o grande empreendedor, um prejuízo milionário pode, muitas vezes, ser apenas um aborrecimento sem grandes consequências, a depender do volume de seu patrimônio investido. É absurdamente falacioso calcular esses riscos em termos de simples equivalência; ainda mais falacioso, quando não perverso, partir dessa falsa equivalência para justificar uma eventual assimetria de recompensas. Mesmo entre empresas do mesmo porte pode haver grande diferença na relação risco-investimento - uma grande empresa de tecnologia geralmente corre mais riscos que uma grande empresa voltada ao comércio varejista, por exemplo (e muitas vezes são os empreendimentos de menor risco que pagam os piores salários a seus empregados - por exemplo, um profissional de TI tende a ganhar um salário consideravelmente maior que um caixa de supermercado).

Uma grande empresa ou um bilionário só correm risco realmente grave em seus empreendimentos quando adotam posturas temerárias - como políticas de expansão mal calculadas, muitas vezes escoradas em elevados índices de endividamento (frequentemente orientadas por métodos econômicos "científicos", como a famigerada "moderna teoria do portfólio"). Não à toa, um dos principais métodos para avaliar a solidez de uma empresa é comparar o montante total de suas dívidas com o valor de seu patrimônio bruto.

Em tempos recentes, a noção de empreendedorismo vem ganhando um destaque considerável, quase vendida como uma panaceia capaz de sanar graves problemas econômicos, inclusive o desemprego. O empreendedorismo, em si, não tem nada de errado ou condenável; no entanto, é perverso desconsiderar a imensa desigualdade entre diversos tipos de empreendedores. Para alguém com um patrimônio considerável, empreender envolve um grau de risco modesto, com margens de retorno robustas; para alguém com um patrimônio pequeno (ou sem patrimônio algum), o risco tende a ser muito maior, e as margens de retorno muito pequenas. O potencial de crescimento de ambos também é muito diferente a curto, médio ou longo prazo.

Imaginemos alguns casos. Uma grande empresa do setor varejista, com centenas de lojas, emprega algo como 0,5% de seu patrimônio para abrir uma nova filial em uma localidade. Caso essa filial não prospere e se mostre deficitária, a empresa teve uma perda ínfima, que não fará grande diferença para seus sócios e respectivas famílias. Por outro lado, caso a filial se mostre lucrativa e estável, poderá render à empresa um retorno considerável ao longo de anos, cujo valor acumulado contribuirá para a abertura de novas lojas e para a expansão da rede varejista. No entanto, a rede em questão paga salários pífios para seus empregados super-explorados e estafados, enquanto cada sócio da empresa obtém uma renda mensal milhares de vezes superior ao salário de seus empregados. Quanto mais se expande a empresa, maior o lucro auferido por seus sócios ao longo dos anos, mas isso não redunda em melhora salarial para seus trabalhadores - ou "colaboradores", conforme eufemismo em voga. Segundo o dogma de que a distribuição dos lucros deve corresponder ao risco incorrido pelo negócio, esta situação seria perfeitamente aceitável, embora nos soe falaciosa e desperte alguma inquietação moral.

Ainda outro exemplo: uma grande empresa de tecnologia resolve desenvolver um novo produto. Para tanto, durante dois anos, ela faz um considerável investimento em pesquisa, pagamento de profissionais de alto nível, desenvolvimento de protótipos e, finalmente, produção do novo aparelho em escala industrial. Digamos que, para isso, a empresa tenha feito um investimento correspondente a 1% de seu patrimônio (uma quantia multimilionária). Caso o novo produto encontre boa demanda, a empresa pode obter lucros imensos (ao menos até que a concorrência desenvolva e lance produtos similares), compensando sobejamente o valor  investido. Caso o novo produto não alcance o sucesso esperado, a empresa terá um prejuízo considerável, em valores absolutos, mas nada suficiente para comprometer irremediavelmente a solidez da empresa. O risco é comparativamente maior ao do caso anterior, já que o desenvolvimento e lançamento de um novo produto é sempre uma incógnita, ao passo que a abertura de uma loja não requer grande dose de pesquisa ou inovação. Por outro lado, o potencial de retorno do novo produto, caso bem sucedido, é muito superior ao da abertura de uma nova filial por uma rede varejista. Aqui temos o caso que se encontra mais próximo do dogma liberal que postula a relação entre risco e recompensa. Ainda assim, os profissionais envolvidos no projeto, embora muito melhor remunerados que os empregados da rede de lojas, recebem um retorno muito díspar daquele alcançado pela empresa, apesar de sua participação crucial ao êxito do projeto.

Prosseguindo, imaginemos o dono de uma pequena padaria com cinco trabalhadores. Ele próprio trabalha diariamente no negócio e obtém uma renda pessoal pouco superior ao salário pago aos empregados, algo como uma renda mensal equivalente ao salário de quatro empregados. Sua margem de lucro é muito menor que a das empresas citadas anteriormente e, da mesma forma, seu potencial de investimento permanece pequeno. Suponhamos que esse empresário resolva transformar parte da padaria em lanchonete - o que envolveria elevados gastos com a reforma do espaço físico e a aquisição de mobiliário e equipamento, além da contratação de mais mão-de-obra. O patrimônio líquido do empresário não é suficiente para bancar essa renovação, e ele contrai um empréstimo junto a um banco, fazendo uma dívida equivalente a 35% de seu patrimônio bruto, parcelada em 48 vezes. Caso a reforma do negócio se mostre lucrativa, ele precisa ainda saudar sua dívida com o banco, em quatro anos, para finalmente poder ter uma efetiva ampliação de seu patrimônio líquido; agora, no entanto, ele tem oito empregados e precisa de um lucro mensal muito maior para honrar sua folha de pagamento. Ao fim e ao cabo, passada meia década, ele consegue obter uma renda mensal equivalente ao salário de 7 empregados. Teve alguma melhora em seu padrão de vida, mas permanece muito aquém do padrão de vida dos sócios das grandes empresas dos exemplos anteriores. Por outro lado, se a renovação do negócio se mostrar deficitária ele ainda precisa honrar seu empréstimo junto ao banco, o que redunda em uma redução de sua rende mensal para algo equivalente a dois salários; precisa demitir os três empregados adicionais e acaba vendendo a casa onde mora, para viver em um apartamento menor, de modo a manter o negócio funcionando. Não vai à falência, mas sua recuperação financeira leva quase uma década. Para esse pequeno empreendedor, o investimento traz risco elevadíssimo, com um potencial de retorno bastante moderado - simplesmente pelas limitações de seu patrimônio. A diferença de padrão de vida entre ele e seus empregados é considerável, mas não absurdamente grande - e deve-se levar em conta que ele mesmo trabalha no negócio, não vive simplesmente de rendas. Além disso, com lucro ou prejuízo, o maior beneficiário de seus investimentos tende a ser banco, não o empreendedor, nem seus empregados.

Por último, pensemos em um vendedor ambulante. Seu investimento consiste sobretudo em comprar algumas caixas de doces por atacado, a um valor relativamente baixo. Caso os produtos encalhem, em valores absolutos, ele tem um prejuízo muito menor que os mencionados nos casos anteriores. No entanto, cada jornada de trabalho mal-sucedida significa elevadíssimo risco à subsistência de sua família - aqui, o risco pessoal é infinitamente superior ao risco financeiro. Por outro lado, é um negócio com baixíssimo potencial de expansão - há uma quantidade limitada de doces que ele pode carregar diariamente, ainda que ele poupe algum dinheiro para investir. Na melhor das hipóteses, ele pode juntar dinheiro suficiente para conseguir montar uma barraquinha, ampliando seus lucros. Ainda assim, esse empreendedor vive diante de grandes incertezas, em boa medida garantindo a cada dia a refeição do dia seguinte. Embora possível, é muito improvável que ele algum dia tenha condições de abrir uma padaria. Também aqui temos uma situação de alto risco, com baixo potencial de retorno.

Comparando esses exemplos, não é difícil perceber que o fator preponderante na relação entre investimento e risco é o patrimônio do investidor. Quanto maior o patrimônio, menores os riscos envolvidos e maior o potencial de retorno - o que redunda em aumento do patrimônio, com subsequentes investimentos, levando a um ciclo de crescimento potencialmente ilimitado. As grandes empresas possuem um potencial de lucro que opera em progressão geométrica, ao passo que os pequenos empreendedores precisam se resignar a ver seus lucros crescendo em progressão aritmética, sempre correndo elevados riscos financeiros e pessoais.

Neste caso, como em outros tantos, os dogmas do Liberalismo Econômico "de cartilha", tendem a ignorar o efeito de assimetrias iniciais sobre resultados individuais. No entanto, a questão do patrimônio evoca outro problema ainda mais sério para as premissas liberais. A dogmática liberal preza antes de tudo o valor do indivíduo e de seus méritos, mesmo em situações em que tais méritos sejam dúbios ou questionáveis. No entanto, a acumulação de patrimônio não é apenas um problema de ordem individual, mas em muitos casos, é uma questão intergeneracional e familiar. O patrimônio que um indivíduo é capaz de acumular e investir em vida costuma ser bastante limitado, mas pode crescer significativamente de uma geração a outra.

Esse crescimento intergeneracional pode ser bastante sutil. Um homem adquire uma casa própria; deixando de pagar aluguel, ele pode ajudar seus filhos de diversas financeiras, proporcionando-lhes oportunidades que ele mesmo não teve. A cada geração da família, o potencial de expansão cresce um pouco mais, gradativamente deixando a esfera da progressão aritmética para a progressão geométrica. Nem sempre funciona, como demonstram inúmeros exemplos de herdeiros de grandes fortunas cuja prodigalidade põe a perder o patrimônio herdado; ainda assim é raro que, nesses casos, um herdeiro caia de uma condição de grande riqueza para a miséria. Na maioria das vezes, abandonando aneis e preservando dedos, estes conseguem permanecer ao menos na classe média alta. Em todo caso, aquilo que herdamos de nossos familiares geralmente amplia nosso leque de oportunidades, ainda que nem todos saibam aproveitar essas oportunidades da mesma maneira - como demonstram os casos de irmãos que, ainda que partindo das mesmas condições, obtém resultados diferentes. Em última análise, dinâmicas individuais e coletivas de acumulação estão em jogo, o que sempre deixa as coisas em uma zona cinzenta, tornando difícil e complexo "demarcar o justo do injusto, marcar o ponto onde a legitimidade da poupança se converte em capitalismo abusivo", como propunha Jaurès.

Essa breve reflexão não visa encontrar respostas definitivas - é apenas uma provocação tanto em relação à ortodoxia Liberal quanto à dogmática marxista, ambas propensas a generalizações que dificilmente dão conta da complexidade do que é possível observar empiricamente. O cultivo de uma sociedade mais justa e próspera para todos não é questão fácil, impondo muitos desafios, tanto do ponto de vista analítico e descritivo quanto do ponto de vista prescritivo. O que parece certo, no entanto, é que tais problemas dificilmente se resolverão a partir de dogmatismos econômicos, políticos e sociais fechados em si mesmos, inflexíveis em suas certezas e impermeáveis ao diálogo.



Calvin vendendo limonada - Um clássico do empreendedorismo juvenil...


quarta-feira, 23 de março de 2022

Esperança como opção

Apesar de tudo, sigo sendo um pessimista esperançoso - pessimista por necessidade, esperançoso por escolha própria. E, no fim das contas, tudo que importa são as escolhas...

quarta-feira, 16 de março de 2022

Entre ratos e leões

O ser humano é escravo de seus hábitos, caprichos, rotinas e rituais, mesmo quando se tornam inadequados e até perniciosos nas circunstâncias vividas. Pior ainda, é capaz de racionalizar das formas mais estapafúrdias suas condutas mais temerárias. Basta uma pequena ilusão de segurança para que nos exponhamos a riscos incalculáveis, em busca de benefícios irrisórios. Em sua autoilusão, o ser humano é capaz de se jogar na goela de um leão para fugir de um rato.

quarta-feira, 9 de março de 2022

O pecado de pensar

 "Com a justiça dos anjos e dos santos, nós excomungamos, excluímos, maldizemos e anatematizamos Baruch de Espinosa. [...] Que ele seja maldito de dia e maldito de noite. Que ele seja maldito no sono e maldito na vigília. Que ele seja maldito fora e maldito por dentro. Que o Senhor não perdoe. Que a cólera e a fúria do Senhor caiam de agora em diante sobre este homem e derramem sobre ele todas as maldições escritas no livro da Lei. Que o Senhor destrua seu nome sob o sol".


Trecho do ato solene de banimento por heresia do filósofo Baruch Spinoza, pelos anciãos da sinagoga de Amsterdã em 27 de julhos de 1656 (citado por Frédéric Lenoir em Sobre a felicidade - Uma viagem filosófica).