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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Desejos e escravidão

Trecho de Cidades invisíveis, de Ítalo Calvino; grifo meu:

“A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas. Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata, ônix, crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano; falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que às vezes convidam – diz-se – o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da água. Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade: porque, enquanto a descrição de Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente. A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas, ônix, crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia, quando não passa de seu escravo”.

sábado, 23 de agosto de 2014

Gentalha - Seu Madruga e a violência na América Latina

Como já discuti em outros posts, a querida vila do Chaves me parece um ótimo reflexo das dinâmicas sociais na América Latina. Ultimamente tenho prestado bastante atenção às representações da violência na obra de Bolaños; por sinal, a "boa vizinhança" é ambiente extremamente violento, em que pese a estética caricata e estilizada sob a qual essa violência se apresenta. A priori, vale ainda observar que o seriado apresenta normalmente dois tipos de agressão, que podemos classificar respectivamente como intencional e acidental. Como veremos, essa distinção é bastante relevante.

Recentemente me dei conta de um detalhe revelador: Seu Madruga é o fulcro da violência em Chaves, através do qual se articulam as agressões intencionais praticadas na vila, atuando como ponto de convergência entre o mundo das crianças e o dos adultos. Recontrapuxa!

Comecemos pelo mundo dos adultos. Não são incomuns as agressões entre adultos em Chaves, mas na maior parte das vezes são acidentais - como o significativo beliscão do Prof. Girafales em Dona Clotilde (cujas conotações sexuais não pretendo discutir aqui) ou as eventuais pancadas de Dona Florinda em Seu Barriga ou Prof. Girafales. O único adulto agredido de forma intencional e consistente é Seu Madruga: pelos mais variados motivos, o pobre homem já apanhou de praticamente todos os adultos da série, como Prof. Girafales, Seu Barriga, Dona Glória e até mesmo da apaixonada "Bruxa do 71"; sua principal agressora, desnecessário lembrar, é Dona Florinda. E lembremos: ela bate nele por ser gentalha. Homem pobre, sem instrução e habitualmente desempregado (por opção), Seu Madruga é por excelência a vítima de agressões no mundo dos adultos.

Certa situação é particularmente elucidativa: em determinado episódio, Seu Barriga agride Quico acidentalmente, mas, como de costume, Dona Florinda reage batendo em Seu Madruga. O equívoco é desfeito logo depois, mas a zelosa mãe não pede desculpas, apenas murmurando entre dentes que "errar é humano". Ainda mais sugestivo é o fato de, devidamente esclarecida, ela não agredir Seu Barriga. O pobre Madruga é passível de agressão, mas não Barriga, proprietário do cortiço; ele não é gentalha. Não é difícil perceber o paralelo com a violência nas sociedades latino-americanas.


Quando passamos ao mundo das crianças, a situação se inverte: Seu Madruga é o principal agressor adulto. São raras as ocasiões em que outros adultos batam nas crianças, mas ele distribui pancadas entre Chiquinha, Quico e Chaves. Por vezes suas agressões são muito violentas, como os murros que aplica na cabeça de Chaves ou quando apaga um cigarro (!) na mão de Quico. Ora, Seu Madruga raramente reage à violência dos adultos, mas canaliza sua raiva para as crianças - lembrando as reflexões de Foucault sobre a "microfísica do poder". Também não é situação muito diferente do que vivenciamos na América Latina - geralmente a corda arrebenta para o lado dos mais frágeis socialmente, especialmente as crianças e mulheres; o quadro muitas vezes se agrava entre as camadas menos instruídas da população. E, de fato, não são raros os episódios em que Seu Barriga e principalmente o Prof. Girafales repreendem Seu Madruga, homem menos "esclarecido", pela violência que usa contra as crianças. Reside aí profunda ironia, já que os mesmos não se poupam de agredir o próprio Madruga, e muito menos se incomodam com a cruzada de Dona Florinda contra a gentalha. Pelo contrário, em algumas situações Prof. Girafales aconselha sua amada a não bater no pobre homem apenas para não "sujar suas mãos com semelhante porcaria".

No entanto, a relação de Seu Madruga com o mundo infantil é marcada por outra inversão: a única criança que agride deliberadamente um adulto é Quico; ainda por cima, essa violência é praticada de modo sistemático. "Gentalha, gentalha!" - os gritos do menino não poderiam ser mais expressivos. Desde criança, Quico aprende que a gente "da alta" pode bater na gentalha. Por sinal, a violência exercida pelo garoto é extremamente significativa, à medida que em muitas ocasiões ele sabe que Seu Madruga é inocente, mas o agride instintivamente ao ouvir as palavras mágicas de sua mãe: "Vamos, Quico...". Em muitas situações a violência de Dona Florinda contra Seu Madruga é gratuita, e o filho a segue pelo mesmo caminho. Seu Madruga, Quico e Dona Florinda constituem o tripé que sustenta a violência em Chaves, numa dinâmica estribada nas relações sociais tensas vividas na América Latina. Na verdade, vejo Quico como um menino de bom coração, mas que recebe de sua mãe uma educação extremamente preconceituosa, arrastado a um precoce aprendizado da violência - nesse sentido, vale lembrar algumas observações de Gilberto Freyre no clássico Casa-grande & senzala.


Concluo esse já longo texto lembrando uma das cenas mais belas, brutais e pungentes do seriado. Em certo episódio, Chaves faz um comentário jocoso a respeito de Dona Florinda, provocando risos descontrolados em Seu Madruga. A mulher bate nele repetidas vezes, com agressividade crescente, mas o homem continua gargalhando, com intensidade cada vez maior, indiferente à violência de que é vítima. Irritada e cansada, Dona Florinda se retira, acompanhada por Quico - não sem seu habitual "gentalha, gentalha"! Seu Madruga continua rindo, triunfante. Há um quê de metalinguístico nessa cena, onde o seriado humorístico celebra a gargalhada vitoriosa contra a violência, o espírito inabalável ante a força, o riso em seu pleno potencial libertador.

Possa a gentalha latino-americana rir cada vez mais escancaradamente na cara dos tiranos de plantão.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Erro e responsabilidade

"Ide viver escondidos, prudentes, contentes, infames!"
Victor Hugo


Acertar sempre é coisa de gente irresponsável.

Obviamente devemos tomar nossas decisões com o máximo de conhecimento e discernimento possível. No entanto, nem todo o conhecimento do mundo pode garantir o acerto, pois, no fim das contas, tudo é imprevisível. O desejo de "acertar sempre" não passa de quimérica ilusão de controle.

E assim, diante do imprevisível, o medo de errar nos imobiliza. Preferimos permanecer no conforto da insatisfação imóvel a agir correndo o risco do erro; por temor de errar, perdemos a oportunidade de acertar. Parando para pensar, é uma atitude pouco responsável, de abstenção diante de realidades que nos cobram atitudes. Só podemos "acertar sempre" se deixarmos de lado nossa responsabilidade enquanto pessoas, profissionais e, principalmente, cidadãos.

Quem quer ser realmente responsável perante a coletividade e a própria consciência corre riscos, age e, muitas vezes, erra. Mas de vez em quando acaba acertando...

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Carnaval bíblico

Na recente inauguração do "Templo de Salomão" (sic) da Igreja Universal o aspecto que mais despertou minha atenção foi o tom carnavalesco da coisa. Não consigo descrever minha sensação ao ver todas aquelas pessoas fantasiadas, aquele arremedo canhestro de Antigo Testamento, dignos de escola de samba do grupo Z ou de novela  (especialmente da Record).

Mais perto da paródia que da reconstituição histórica, tanto o edifício quanto a cerimônia me lembraram outras falsificações, produzidas em nome do entrenimento, como os parques temáticos ruins, a arquitetura de Las Vegas ou os patéticos filmes bíblicos transmitidos na Páscoa. Também tem um quê de shopping center e das fantasias usadas na publicidade barata, no melhor estilo de Madureira. É a religião em forma de espetáculo kitsch, de produção trash.

Na verdade, creio que o episódio e o edifício são representantes fiéis da Igreja Universal, com sua ética consumista e estética publicitária. O Templo (sic) de Salomão é, de fato, o monumento supremo da fé transformada em mercadoria. Mas, como diria a Dilma, "feliz é a nação cujo Deus é o senhor".

Tragam logo o Juízo Final, por favor, mas dessa vez produzido por George Lucas...

domingo, 10 de agosto de 2014

A sociedade dos invejosos

Há mais de um ano tenho observado certa tendência na cultura cotidiana, através das conversas de meus alunos, de diálogos entreouvidos nos transportes coletivos, da publicidade e mesmo do tal funk ostentação (que todos temos o desprazer de conhecer): estamos vivendo numa cultura obcecada pela inveja. Volta e meia vejo pessoas se queixando de que são invejadas por fulano ou beltrano, pelos motivos mais diversos e mais estapafúrdios. Obviamente não se trata de novidade, mas creio que estamos atingindo um nível patológico.

Em que pese o tom quase sempre queixoso, tenho a nítida impressão de que muitas pessoas desejam provocar inveja em terceiros e se sentem (quase) secretamente lisonjeadas por esses sentimentos. De fato, nossa cultura me parece nutrir e estimular um desejo vagamente consciente e inconfessável por ser invejável e, de preferência, invejado. Nessa escala de valores, a inveja alheia quase equivale a uma homenagem involuntária, certidão pública de sucesso - não ser invejado por ninguém equivale a um fracasso na sociedade de ostentação.

Não é difícil relacionar essa tendência ao estímulo da publicidade e das mídias sociais. Por um lado, a inveja sempre foi muito usada na propaganda - lembram da tesourinha do Mickey? Por outro lado, as redes sociais e suas dinâmicas de superexposição e autopromoção constituem outro impulsionador - muita gente busca essas redes mais para ser visto que para ver; cada foto postada implora por atenção, admiração e, no limite, inveja.

No fundo, tudo isso nos remete à questão sempre presente do culto e cultivo intensivo da imagem pessoal, que se torna cada vez mais o frágil sustentáculo da autoimagem e da autoestima. A inveja do outro se torna mais um dos espelhos de Narciso buscados com tanta avidez pela gente de nosso tempo. Não à toa a propaganda de certo automóvel atualmente veiculada usa o slogan: "O carro onde você quer se ver"...

E aí entra outra questão problemática: a inveja é sentimento raramente confessado e declarado abertamente; o (suposto) invejoso é quase sempre imaginado como tal pelo (suposto) invejado, sem muita objetividade. Em suma, as pessoas estão neuróticas por um sentimento cuja existência social só se manifesta publicamente em terceira pessoa.

Concluindo, nessa cultura de espetacularização da vida privada e da imagem pessoal, inveja e exibicionismo caminham lado a lado - Freud provavelmente explica...

domingo, 3 de agosto de 2014

Brasil: entre ditadura e tirania

Por razões óbvias, o termo "ditadura" ocupa lugar de destaque no vocabulário politico brasileiro. No entanto, já faz algum tempo que o termo me incomoda, como uma muleta conceitual que muitas vezes limita nossos debates e obscurece diversas questões.

De fato, há poucos anos tive a oportunidade de assistir excelente conferência do Prof. Mario Turchetti em que ele criticava justamente o empobrecimento do léxico político contemporâneo, que poderia ser enriquecido e revitalizado pelo reencontro com tradições mais antigas do pensamento ocidental. É justamente o que proponho aqui: recuperar a noção de "tirania" para pensar o contexto brasileiro atual.

A meu ver, um dos maiores inconvenientes da terminologia em torno de "ditadura" é seu forte teor legalista, que só nos deixa duas opções: ou temos um contexto em que o sistema legal e político se configura claramente como uma ditadura, ou usamos a noção como mera figura de linguagem, cada vez mais empobrecida de significados.

A noção de "tirania" me parece apontar caminhos para além desse dilema. Como observa Arlette Jouanna, trata-se de problema muito discutido desde a Antiguidade até a Idade Moderna. É interessante observar que a escolástica medieval, especialmente João de Salisbury e Tomás de Aquino, teve o cuidado de diferenciar dois gêneros de tirania: existiriam o "tirano de usurpação" e o "tirano de exercício".

A tirania por usurpação seria caracterizada pela tomada violenta e ilegítima do poder, aproximando-se assim da ideia de ditadura justamente pela ênfase nos aspectos legais. Por outro lado, a tirania por exercício se dá quando uma autoridade legalmente instituída realiza mau exercício do poder, levando-nos da problemática legalista à problematização moral.

Nesse sentido, me parece rico pensar o contexto atualmente vivido no Brasil como uma tirania por exercício, à medida que nossas autoridades eleitas dentro das leis vigentes vêm nitidamente usando seu poder em detrimento dos direitos civis e políticos dos cidadãos, especialmente através de inúmeros abusos cometidos na esfera estadual com absoluta conivência das autoridades federais.

Nosso país não tem hoje de fato uma ditadura, mas os tiranos estão no poder.