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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Utilitarismo, Romantismo ou Vanguardismo?

Extrato de A Nova Ordem Ecológica, do filósofo Luc Ferry

Por trás desse debate [sobre a governança da União Europeia], que todos deveriam poder julgar por si mesmos, uma autêntica questão filosófica ressurgiu: a do estatuto da cultura em uma sociedade de onde as tradições religiosas e, com elas, a transcendência do sagrado por assim dizer se evaporaram. Mas, para avaliar finalmente a questão, seria necessário sair das oposições binárias nas quais querem com frequência nos encerrar: alta cultura literária contra subcultura técnica, tradição contra modernidade, obscurantismo romântico contra universalismo das Luzes, etc. Para muitos de nós, com efeito, o drama da cultura se desenrola nessas alternativas impossíveis.

Primeiramente, não são duas, mas três concepções filosóficas da cultura que não param de se enfrentar, cada uma pretendendo suplantar as outras duas em uma luta de morte. Podem-se, com os utilitaristas, considerar as obras como sendo "produtos", "mercadorias" que cumprem sua destinação quando, consumidas por um público, elas lhe dão satisfação. É essa visão consumista que os intelectuais críticos denunciam, em parte com razão, como sinal de uma "americanização do mundo". Pode-se em seguida, com os românticos, ver na obra de sucesso a expressão do gênio próprio de cada povo. Cada nação possui seu "espírito", sua "vida", e a língua, as instituições jurídicas e políticas, mas também a cultura em geral são suas manifestações especialmente perfeitas por não deixarem dúvidas quanto a seu rosto imanente. Pode-se por fim, contrariamente ao romantismo, atribuir à obra a tarefa heróica de subverter as formas estéticas do passado, de sair fora, assim como queriam os revolucionários franceses, dos códigos determinantes que constituem as tradições nacionais. Consumo, arraigamento, desprendimento: eis aí as três palavras mestras, as três bandeiras sob as quais se enfrentam ainda hoje os novos cruzados pós-religião. Três perversões possíveis, também: a demagogia do "tudo cultural", que ameaça sempre o utilitarismo, uma vez que o único critério se torna o sucesso, o efeito produzido sobre o público, excluindo qualquer outra unidade de valor. A quada no nacionalismo e no folclore, que espreitam um romantismo estreito. Ele oscila, então, entre a arrogância fascistizante e a falsa humildade do artesanato local. Quanto à ideologia da inovação, ela possui também seu reverso: no vanguardismo, que tanto caricaturou o gesto da liberdade, rebaixando-o à categoria de abstração nua. O conteúdo da arte reduziu-se então a ser tão somente encenação de símbolos da ruptura e da subversão pela subversão.

Os grandes debates sobre a a cultura a que assistimos desde a morte das vanguardas na metade dos anos 1970 nascem com frequência do fato de essas três visões da vida do espírito parecerem inconciliáveis: o vanguardismo, que dominou a "alta cultura" desse século, se opõe de maneira tão decidida ao amor romântico da tradição quanto ao reino cínico do mercado. Quanto ao romantismo, seu ódio ao desarraigamento inerente à cultura moderna só se iguala ao da plutocracia insolentemente exibida pelo mundo liberal. Sem se preocupar com um conflito que opõe a seus olhos o elitismo à desuetude, os defensores da indústria cultural prosseguem tranquilamente a produção de variedades e divertimentos mercantis. Seria preciso, pois, escolher o próprio campo, e como bons intelectuais que somos, com o vigor do desespero separar finalmente o joio do trigo. Uns nos convidam a optar pela inovação, pelo apoio fervoroso à "cultura difícil", mas "corajosa"; outros nos recomendam os valores seguros do patrimônio e dos autores clássicos.

Entre os três momentos da cultura, o desprendimento, o arraigamento e o consumo, é preciso de fato escolher? Não acredito. Pois a mais simples descrição fenomenológica das obras, por nós ditas "grandes", indica claramente serem elas as articuladoras das três instâncias: ao se emanciparem de um contexto que conservam até na inovação, elas conciliam de maneira cada vez mais original o desprendimento e o arraigamento que o vanguardismo e o romantismo isolam e tematizam de modo unilateral. É nessa articulação e somente por causa dela que elas provocam, para nossa maior alegria, a paixão de um espectador - esse prazer estético sem o qual mesmo a cultura mais elevada não valeria sequer uma hora de esforço. Para essa afirmação eu não vejo contraexemplo. Vale para a música como para a pintura, para a grande mesquita de Kairuan como para a Notre-Dame de Paris. Tanto uma quanto a outra pertencem a um contexto histórico e geográfico particular, tanto uma como a outra o transcendem para alcançar um público que ultrapassa de muito longe o dos fiéis aos quais o monumento parecia inicialmente destinado. E é nesse alargamento de horizontes, impossível fora da articulação dos aspectos que se queria separar por motivos ideológicos, que reside a verdadeira grandeza. O cosmopolitismo não se opõe mais aqui ao nacionalismo - mesmo que seja preciso afirmar a supremacia do momento de desprendimento dos códigos herdados sobre o momento da tradição: sem ele não haveria criação nem inovação, e é o rastro do propriamente humano que se evaporaria. É aí, me parece, que reside o verdadeiro perigo ao qual nos exporia uma vitória do ecologismo radical na opinião pública: ao considerar a cultura, à maneira da sociobiologia, um simples prolongamento da natureza, o mundo inteiro do espírito estaria sendo posto em perigo. Entre a barbárie e o humanismo, é à ecologia democrática que compete agora decidir.

domingo, 17 de setembro de 2017

Drone Warfare

Guerra sem guerreiros: teremos chegado ao ápice da civilização?


Iconoclastia como prisão

A rejeição sistemática do passado não é verdadeira liberdade, tornando-se meramente reativa. É, na verdade, uma forma ainda mais perversa de submissão. A iconoclastia como finalidade é tanto autodestrutiva quanto opressiva, atirando sementes esterilizadas ao vazio.
É fácil pensar em termos de uma ruptura com o passado, mas seria possível conceber uma ruptura com o futuro?

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Os impostos no Brasil são muito altos?

Trecho do livro Caminhos da Esquerda - Elementos para uma reconstrução, do filósofo Ruy Fausto; grifos meus

Antes de mais nada, eu insistiria, em primeiro lugar sobre o que existe de mistificador no argumento utilizado à saciedade para justificar políticas neoliberais, o de que o nível dos impostos no Brasil é muito alto. Isso é pontualmente verdade, a porcentagem dos impostos sobre o PIB é uma das mais altas do mundo. Porém, se isso é verdade - como diria um trágico grego -, essa verdade é má. É má porque não se precisa que tipo de imposto é responsável pelo nível dessa carga. Na realidade, se o índice geral foi de 33,4% em 2014, o que é muito, ver-se-á que, ao contrário do que acontece na maioria dos outros países (pelo menos tomando como base os países da OCDE), o peso maior recai não sobre impostos diretos e progressivos, mas sobre impostos indiretos e não progressivos. Assim, segundo os dados de Sérgio Wulff Gobetti e Rodrigo Octávio Orair, na publicação do IPEA "Progressividade tributária: A agenda negligenciada", 8,1% de impostos incidem "sobre a renda e a propriedade, 9,6% sobre folha de pagamento (incluindo contribuições sociais) e 15,7% [...] sobre bens e serviços. A média dos países da OCDE equivale a mais ou menos 34%do PIB", mas "tributa em 13,1% a renda e a propriedade, 9,3%" correspondem à "folha salarial e apenas 10,5% nos bens e serviços".

O sistema tributário brasileiro é brutalmente injusto, se o compararmos com as normas vigentes na maioria dos países, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Eis os pontos em que a nossa legislação fiscal é particularmente injusta, e em que urge introduzir uma correção (indico ordens de grandeza): 1) A progressão do imposto de renda é muito desfavorável às camadas médias, beneficiando os mais ricos. A alíquota mais alta é de 27,5%. Na França, por exemplo, utilizando uma tabela simplificada, haveria mais dois níveis além do de 30%, que se aproxima da alíquota máxima no Brasil: 41% e 45%. Mas em outros países, e em outras situações, o imposto de renda pode ser ainda mais alto. 2) O imposto de transmissão intervivos, no Brasil, também é muito baixo. Da ordem de 3%. Na França, ele pode chegar a 45% ou até 55%. 3) O imposto sobre herança também é comparativamente baixíssimo: 3,9% é a alíquota média. A alíquota francesa vai de 5% até 40%. 4) A Constituição de 1998 previa um imposto sobre grandes fortunas, como existe na França. Quando era senador, FHC apresentou uma proposta nesse sentido, em 1989, mas ela ficou perdida nas gavetas do legislativo, e quando presidente ele não parece ter se mobilizado para que a proposta fosse definitivamente aprovada. Deputados do PSOL apresentaram outra proposta em 2008, que prevê alíquotas de 1% a 5%. Ela foi aprovada pela Câmara e pelo Senado, mas, pelo que sei, não foi até aqui implementada. 5) Not least, o imposto sobre lucros advindos da propriedade de ações é taxado, no Brasil, em... 0%. De fato, os lucros provenientes de ações de pessoas físicas são isentos de taxação. A acrescentar a sonegação e a evasão do imposto de renda.



Sofismas e paixões costumam caminhar unidos.

Brasileiros vão à Europa ver museus; europeus vêm ao Brasil ver bundas...

Provocação (revista e atualizada) do historiador Fred Oliveira:

Brasileiros vão à Europa ver museus; europeus vêm ao Brasil ver bundas. A constatação pode levar a pensar que nós é que somos os civilizados, os cultos, ou, ao menos, os interessados em conhecer, aprender, fruir cultura, afinal vamos à Europa ter contato com algumas matrizes do que chamamos de conhecimento e arte.

Mas pensando sobre o que esperamos lá encontrar e desfrutar (e nem falo no montante de dinheiro deixado naqueles países), e na reprodução sazonal do mesmo impulso, não é bem assim. Eles, os "gringos", como os chamamos aqui, sabem o valor de seus museus, de sua arte, de sua ciência, de sua história e vem aqui apenas se divertir. E nós?

Bem, nós aqui lemos, com algumas décadas de atraso, o que eles pensaram, implementaram, refutaram e descartaram. Em bom português: mastigamos o mastigado. Ou seja, repetimos em nossa língua o eco que já emudeceu e nos sentimos inteligentes, originais e progressistas.

Eles, os gringos, também tem problemas nos seus países. O Brexit evidenciou isso. Mas é problema deles. E por isso também é que eles vêm ao Brasil ver bundas. E nós, que nunca resolvemos os nossos problemas, vamos à Europa ver museus, acervos, parques e monumentos.

Eles, os gringos, simplórios ou cultos, possivelmente intuem o legado de seus povos para o mundo. Sabem de si e reconhecem em outras paragens, por mais exóticas que pareçam, algo de seu. Aqui, na Terra dos Papagaios, inventamos reis e rainhas e revoluções que não mudam nada, e só admiramos de fato a paisagem, que está aí desde antes do primeiro de nós.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Absolutas patéticas

Para quem nada tem, qualquer coisa parece um mundo.

Para quem tudo tem, nada vale coisa alguma.

Para quem nada quer, tudo é demais.

Para quem tudo almeja, nada é suficiente.

Para quem tudo parece suficiente, nada falta.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Episode V - The Teacher strikes back

Há pouco tempo, numa galáxia não muito distante, ouvi um economista (especialista em educação, portanto) afirmando numa entrevista de rádio que o problema da educação no Brasil hoje é que temos "uma escola do século XIX, professores do século XX e uma garotada do século XXI". Mais uma vez, nossos fracassos educacionais recaem sobre as costas do - adivinham?- professor. Bravo!

Há cerca de um ano li outra entrevista com outro economista que ocupa cargo administrativo numa fundação "sem fins lucrativos" voltada à educação (a qual fatura uma pequena fortuna oferecendo serviços a secretarias estaduais e municipais de educação), que afirmava que o papel da família consiste apenas em manter as crianças bem alimentadas e indo dormir na hora certa, ficando o resto (ou tudo, talvez) sob responsabilidade -tchans!- da escola (e, imagino, dos professores). Bravissimo!

Assim sendo, eu - professor do século XX nesse nosso país do século XVIII - me atrevo a passar uma atividade educativa do século XIX para esses especialistas em educação do século XXI. Duzentas cópias, com letra bonita:

1 -Economista não é especialista em Educação!
2 -Economista não é especialista em Educação!
3 -Economista não é especialista em Educação!
4 -Economista não é especialista em Educação!
5 -Economista não é especialista em Educação!
6 -Economista não é especialista em Educação!
7 -Economista não é especialista em Educação!
8 -Economista não é especialista em Educação!
9 -Economista não é especialista em Educação!
10 -Economista não é especialista em Educação!
11 -Economista não é especialista em Educação!
12 -Economista não é especialista em Educação!
13 -Economista não é especialista em Educação!
14 -Economista não é especialista em Educação!
15 -Economista não é especialista em Educação!
16 -Economista não é especialista em Educação!
17 -Economista não é especialista em Educação!
18 -Economista não é especialista em Educação!
19 -Economista não é especialista em Educação!
20 -Economista não é especialista em Educação!
21 -Economista não é especialista em Educação!
22 -Economista não é especialista em Educação!
23 -Economista não é especialista em Educação!
24 -...


Precisamos continuar...?!


sábado, 9 de setembro de 2017

"Lula 2018" e "Bolsonaro 2018" - Ainda

Acho que preciso explicar melhor minha provocação. Não estou falando dos políticos Lula e Bolsonaro, mas dos "programas" [sic] eleitorais "Bolsonaro 2018" e "Lula 2018" - entre aspas, notem bem. O que quero salientar é que tanto a retórica soterológica dos "bolsominions" quanto os anúncios do retorno messiânico de Lula em 2018, a meu ver, refletem nossa conjuntura política em que, à ausência de alternativas palpáveis, partes do eleitorado se entregam a essas duas quimeras, esperando que os dois "líderes" tragam, de uma maneira ou de outra, uma solução (mágica?) para os impasses políticos, econômicos e sociais do momento presente. "Bolsonaro 2018" e "Lula 2018", a meu ver, são respostas fáceis e preguiçosas a problemas muito complexos - e é nesse sentido que são duas faces da mesma moeda. Creio que um mandato 2019-2022 de Lula ou de Bolsonaro, por razões distintas, seria um verdadeiro Inferno - desse modo, me pergunto: não seria melhor vendermos nossas almas de uma vez por todas e partirmos logo para "Capeta 2018"...?

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

"Lula 2018" e "Bolsonaro 2018" seriam duas faces de uma mesma moeda?!

A Era PT segundo o filósofo Ruy Fausto

Trecho do livro Caminhos da Esquerda - elementos para uma reconstrução, do filósofo Ruy Fausto; grifos meus:

A terceira figura patológica é a que se designa pelo termo genérico de "populismo". Mas a que, precisamente ela corresponde? Como definir o populismo? E, pergunta particularmente importante, como definir a situação do partido de esquerda até aqui hegemônico no Brasil - o PT - em relação ao populismo? O PT é um partido populista?

Muito se discutiu a respeito do populismo (refiro-me ao populismo de esquerda, pois há também um de direita). Seus traços principais parecem ser uma liderança carismática autoritária, uma política que une, pelo menos na aparência, interesses de classes mais ou menos antagônicas, e certo laxismo na administração da riqueza pública. A meu ver, mesmo quando falta algum desses traços é possível falar em populismo, desde que os outros sejam suficientemente marcados. Por exemplo: no modelo Getúlio Vargas, há os dois primeiros fatores, mas não exatamente o último (Getúlio não enriqueceu no poder, embora tenha havido corrupção no seu governo). No caso de Adhemar de Barros, duas vezes governador de São Paulo, entre 1940 e 1960, se os dois últimos aspectos são visíveis, o primeiro o é só imperfeitamente: ele tinha certo carisma, mas não de tipo autoritário. Creio, entretanto, que Ademar e Getúlio, cada um a seu modo, podem ser considerados líderes populistas. No caso do PT, também falta o elemento autoritarismo. O carisma está lá, ainda que menos pronunciado do que no caso de Perón, Chávez ou Vargas. Mas houve certamente laxismo - é o mínimo que se poderia dizer - nas suas práticas administrativas.

Saber se o PT pode ser chamado de populista não é, entretanto, o mais importante. Pelo menos do ponto de vista prático, o essencial é insistir sobre o fato - indiscutível, a meu ver - de que o partido não "errou" simplesmente, como pretendem alguns. O partido não se limitou a "cometer certos erros" (erros, aliás, se reconhecem até da mãe). O que houve foi um sistema errado de poder e administração. A prática petista foi e é uma prática patológica comparável, mutatis mutandis, à política dos neototalitários e dos reformistas-adesistas. Isso não quer dizer que os governos do PT não tenham feito nada de positivo, que o balanço global da sua trajetória seja puramente negativo. Na realidade, o PT pôs em prática uma política de redistribuição de renda cujos pontos principais foram o Bolsa Família e outros projetos, a valorização do salário mínimo e certas facilidades de crédito para setores não privilegiados. Além de ter garantido, pelo menos na cidade, uma atmosfera democrática (ainda que, durante a preparação de dois grandes eventos esportivos internacionais, o governo petista tenha sido brutal com certos núcleos da população urbana), e de ter assegurado, o que governos anteriores não fizeram, a independência da Polícia Federal e do Ministério Público. O programa redistributivo, ou parte dele, teve um êxito considerável, o que é reconhecido mesmo pelos adversários. No entanto, este não veio ligado apenas a uma política "de aliança de classes", o que em si mesmo poderia ser tolerado sob certas condições, mas veio também associado ao uso abusivo da máquina do Estado em benefício do partido e de particulares ligados a ele. É esse o lado intolerável. Um partido que faz essas coisas deve ser chamado de populista?

Já discuti os termos da questão. Na minha opinião, se deveria falar num populismo sui generis pelas razões indicadas. Mas, já que se admite que houve um lado positivo na trajetória petista, impõe-se a pergunta, a qual, implícita ou explicitamente, recebe uma resposta positiva por parte de muitos dirigentes, teóricos ou simpatizantes: valeu a pena a "operação", isto é, foi correto corromper deputados, desviar dinheiro público, vender cargos públicos etc para se sustentar no poder e, assim, implementar medidas redistributivas? É isso que está por trás do raciocínio de muita gente ligada de algum modo ao PT. Fizemos o que tinha de ser feito, dizem eles, e o resultado está aí. Pelo menos o Bolsa Família ninguém pensa em liquidar inteiramente. No entanto, esse raciocínio é falso. O impasse a que o PT conduziu a esquerda brasileira não paga o preço de parte dos resultados obtidos pela sua política redistributiva. Não só o partido perdeu o poder, mas, queiramos ou não - e apesar de a esquerda independente não ter sido em nada responsável por aqueles desvios -, a esquerda em geral saiu desmoralizada, enquanto a direita, incluindo a extrema direita, levantou a cabeça.

Não basta dizer que a corrupção é endêmica na política brasileira. Isso é verdade, mas não justifica. O PT nasceu como um partido que, precisamente, visava romper com esse tipo de prática, ao mesmo tempo que se manifestava como estranho ao modelo leninista ou stalinista - apoiava o Solidarnosc polonês - e também ao modelo social-democrata (ver os documentos originais do partido). Que o sistema político brasileiro seja visceralmente corrupto não absolve o PT. Poderíamos até mesmo dizer: é normal que a direita nade na corrupção, mas toda esquerda séria é infensa a esse tipo de coisa. O que não signifique que o fato de a corrupção ser generalizada não desmascare a política da direita. Em outras palavras, é necessário criticar a fundo o modelo petista, mas ao mesmo tempo desmascarar a jogada da direita segundo a qual só o PT rouba. (Voltarei, mais adiante, tanto ao PT como ao episódio do impeachment).

Mas, insistem alguns - e isso não é simples hipótese, o argumento está na boca de muita gente - , sem as práticas corruptas não teríamos chegado ao poder. E, portanto, nada de medidas de redistribuição. Nesse plano, o país estaria no mesmo ponto que no início do século, ainda que se conservando um partido de esquerda hegemônico irreprochável. Esse caminho que não foi seguido pelo partido e que parece irrealista por estar ligado a algo como uma "ética da convicção", é o único aceitável. O que teria acontecido nessa hipótese?

Talvez o PT tivesse maior dificuldade para chegar ao poder. Talvez tivesse obtido só poderes executivos estaduais ou municipais. Mas, ainda assim - e se trata da hipótese mais pessimista -, o ganho teria sido considerável. O PT apareceria como um grande partido de esquerda independente, que, sem dúvida, a direita tentaria derrubar, mas sem dispor dos mesmos meios para levar a cabo esse projeto. O prestígio nacional e internacional do partido seria imenso. Mesmo sem todo o poder governamental, projetos como o Bolsa Família poderiam ser implementados através de medidas de iniciativa dos estados ou municípios, impulsionadas pela pressão que se exerceria dentro e fora do Congresso. Não tenho dúvida de que, apesar de tudo, essa opção seria de longe preferível àquela pela qual enveredou o petismo e cujo resultado catastrófico estamos vivendo no presente: uma direita em plena ofensiva, uma esquerda golpeada e, de certo modo, desmoralizada, um país em amplo retrocesso político.

Mais ainda: o PT não enveredou apenas pela corrupção. Infelizmente, houve coisas piores. Ele esteve envolvido de algum modo, que fosse o da responsabilidade moral ou política - há alguém que ainda duvide disso? -, em pelo menos um caso escabroso de morte violenta (acompanhado de meia dúzia de vítimas "colaterais"): o assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André, em 2002. Quaisquer que sejam as responsabilidades, esse "acidente de percurso" se torna necessário sempre que um partido tolera procedimentos mafiosos ou os pratica. Provavelmente não foi o único caso no Brasil e, como se sabe, houve outros semelhantes sob governos populistas estrangeiros. Se não nos interessa levar mais lenha para a fogueira - infelizmente, essa fogueira tem lenha suficiente para continuar ardendo por muito tempo -, seria bom deixar claro que a esquerda independente não pode ser refém do PT nem pagar por seus graves erros e extravios. Erros e extravios que a direita explora à saciedade. Digamos sem ambiguidade: interessa-nos que tudo seja apurado e revelado.

Mas, a propósito de casos escabrosos, seria bom não esquecer, embora isso não justifique nada, que eles existem também "do lado de lá". Ainda que muitos irão dizer que são coisas diferentes, não podemos perder de vista as centenas de "mortos sem sepultura" que a ditadura militar produziu. Num momento em que é de bom-tom justificar o pior, invocando os erros graves da resistência (eles existiram) e também a ideologia duvidosa de muitos dos seus principais líderes (em geral, as convicções destes de fato não eram propriamente democráticas), seria útil lembrar que nada explica substituir uma eventual ditadura por outra efetiva, nem realizar esse trabalho mediante a liquidação a frio de prisioneiros desarmados, a tortura sistemática e o assassinato de líderes de partidos de esquerda, quer esses partidos participassem ou não da luta armada. Houve, além disso, outras histórias tenebrosas envolvendo a direita, que não mencionarei aqui.

O petismo e os populismos em geral (sui generis ou não) representam a terceira patologia da esquerda. Certamente, a que mais nos atinge e interpela no momento. A propósito das outras duas outras patologias, mencionei suas bases teóricas e práticas no plano internacional. Com relação ao populismo petista, seria difícil encontrar um modelo externo aplicável ao caso. Restaria examinar o que dizem os intelectuais petistas mais importantes. Que me seja permitido dizer alguma coisa sobre intervenções recentes e menos recentes de minha colega Marilena Chauí, a figura intelectual mais conhecida da família petista. Para além dos velhos laços de amizade e lealdades acadêmicas, seria preciso, afinal, afirmar com todas as letras: o discurso político de Marilena Chauí tem representado uma verdadeira catástrofe para a esquerda.

Vejamos. Por ocasião do mensalão, ela tomou a defesa do PT - e praticamente não fez nenhuma crítica ao partido ou à sua direção. Agora, com a operação Lava-Jato e os escândalos sucessivos envolvendo não só o PT, mas também o PT, a sua atitude não foi diferente. Tivemos uma defesa intransigente do partido - não se ouviu por parte dela praticamente nenhuma crítica à legenda - e, o que é pior, a defesa se fez na base de uma enxurrada verbal arbitrária. Assim, contra todas as evidências, ela continua insistindo no caráter "fascista" da pequena burguesia. Na realidade, uma parte da pequena burguesia é, digamos, fascistizante, outra hesita, e uma terceira, constituída sobretudo por intelectuais e semi-intelectuais, está afinada com a esquerda e, frequentemente, com o melhor da esquerda. Quanto à operação Lava-Jato - fenômeno complexo, ao qual não se pode deixar de atribuir, em princípio, efeitos positivos, apesar dos erros e desmandos de alguns dos seus "operadores" -, Chauí a desmistifica: afirma, sem se dar ao trabalho de provar o que diz, que o juiz Moro teria sido treinado pelo FBI para levar adiante um projeto de entrega do pré-sal aos americanos.

Uma intervenção recente de Marilena Chauí me interessou particularmente. Por ocasião de um debate outros intelectuais, e porque se falasse da necessidade de reconhecer os erros do partido, Chauí fez questão de deslegitimar a noção de "autocrítica" (ela disse que, felizmente, ninguém teria empregado a expressão durante o debate, mas o termo fora sim expresso por um dos participantes). E explicou que "autocrítica" era coisa da política totalitária, política terrível, como se sabe, que era preciso recusar a todo custo. Pôs-se então a falar longamente da autocrítica em regime totalitário, ou dentro de um partido totalitário. Com esse tipo de discurso, Marilena Chauí não apena saiu do tema (de fato, discutia-se o PT, não o regime e os partidos totalitários), mas foi além. Com seu discurso contra a autocrítica em regime totalitário, ela lançou uma cortina de fumaça sobre o que se passa no seu partido. A autocrítica em regime totalitário se tornou a mesma coisa que qualquer outra, o mesmo que a autocrítica em geral. Ou, preferindo, o mal-estar que se pode sentir, efetivamente, diante da palavra "autocrítica" - pelo que evoca, ela se tornou de fato horrível - passou a ser uma arma para impedir qualquer explicação autocrítica por parte do PT. Acontece que, se a palavra é ruim, a "coisa" pode ser boa (embora na não versão stalinista, é óbvio). E a autocrítica bem exposta não enfraquece, mas fortalece a luta emancipatória.

O que quer dizer Marilena Chauí quando exorciza a autocrítica no presente contexto? Quer dizer, por acaso, que, mutatis mutandis, a situação dos acusados do mensalão e investigados pela Lava-Jato seria análoga à dos acusados nos processos stalinistas? Dirceu seria, assim, uma espécie de Bukharin, líder bolchevique falsamente acusado, perseguido por Stálin e condenado à morte? Antonio Palocci, por sua vez, seria uma espécie de Lev Kamenev, outro líder bolchevique descartado por Stálin? Os juízes que atuaram no mensalão ou que atuam na Lava-Jato seriam os herdeiros de Andrei Vichinski, encarregado pelo ditador "soviético" de levar a cabo o julgamento de seus inimigos? Isso significaria que as acusações que lhes são feitas, de maneira análoga ao que aconteceu nos processos de Moscou, remeteriam ao mais puro delírio, e que, inversamente, os protestos de inocência dos acusados exprimiriam as razões verdadeiras de gente inocente, injustamente acusada?

Quaisquer que sejam as críticas que podem ser feitas ao encaminhamento dos atuais processos por corrupção no Brasil - não me refiro à questão do impeachment, que é de outra ordem -, a situação real, guardadas as proporções, é mais ou menos inversa à dos processos stalinistas. Apesar das reservas que se pode fazer a tal ou tal iniciativa dos procuradores e juízes do mensalão e da Lava-Jato, em linhas gerais - pelo menos até o show lamentável do promotor Deltan Dallagnol -, a acusação não foi delirante. Contudo, insustentáveis, se não delirantes, foram os protestos de inocência dos acusados e o que vinha por trás deles: a total inocência do PT. A ficção está aí. Marilena Chauí toma alhos por bugalhos. Pior, mistura tudo e nos oferece um mundo de cabeça para baixo.

Intervenções desse tipo revelam-se peças de pura retórica. O problema com Marilena - não se trata de fazer carga de forma gratuita contra Chauí, mas ela dá o tom para os seus pares -e é que, lamentavelmente, ela é seduzida pelo aplauso dos auditórios. Ora, não há nada mais funesto, para a esquerda, do que esse tipo de sedução. Porque, para ser brutalmente claro, não há beócios somente no campo da direita. No nosso, é preciso reconhecer, eles também existem e costumam frequentar os anfiteatros. Para eles, quanto mais retórico, no mau sentido, for um discurso, e quanto mais afetado for o modo pelo qual é pronunciado, mais aplausos merecerá. Ilusão funesta da oradora.

É preciso distinguir com clareza a defesa de uma posição de esquerda e a defesa de um partido. As duas coisas não vão sempre juntas. Entre os interesses do PT e os interesses da esquerda - e isso vale para qualquer partido de esquerda - há diferenças e pode haver oposição. Defender os interesses gerais da esquerda implica às vezes condenar a política da direção de um partido. Os partidos envelhecem e até apodrecem. Isso aconteceu com os antigos partidos social-democratas, com os partidos comunistas, com muitos partidos populistas. Lembremos do dito "mensalão". A direção do PT estaria pagando parlamentares para que votassem a favor dos seus projetos. Marilena Chauí saiu a público dizendo que a culpa era do sistema, não do PT. Mais precisamente, que a culpa era da ditadura militar, que instituíra o sistema. O PT, pobre coitado, fora obrigado a obedecer às regras para poder aprovar as suas propostas. Sofisma. O PT nasceu com o projeto de recusar essas práticas, que eram bem conhecidas. Depois, ele mudou. Passou a atuar como todos os outros partidos, sob pretexto de que essa seria a única saída. Só que isso significou liquidar o seu próprio programa. A acrescentar que, se as práticas ilícitas enriqueceram o partido, elas também encheram os bolsos de alguns dirigentes. Segundo Chauí, isso tudo seria culpa de Golbery e companhia, que instituíram as regras do jogo. Ora, seria bom lembrar que houve, na época, gente de esquerda que não reagiu assim, e que entendeu que, inscritas ou não na corrupção crônica do sistema, aquelas práticas eram absolutamente condenáveis e que delas resultaria finalmente a derrocada do partido. Desculpe o leitor, mas, entre aqueles críticos, permito-me incluir a mim mesmo. Eis o que eu escrevia em 2004, por ocasião do início do escândalo do mensalão: "Ou o PT procede a uma verdadeira análise de consciência, e, mais do que isso, a uma limpeza geral das suas práticas, ou a gangrena, é preciso dizer, será inevitável. Assim, é inadmissível que para evitar uma CPI, a qual, apesar dos riscos, deveria ser aceita, ele se amarre, de pés e mãos, a Sarney, a ACM, a Calheiros (e até a Roriz). O tipo de compromisso que se anuncia a partir do episódio da corrupção do assessor de Dirceu é extremamente perigoso para o PT. O PT chega ao limite do que pode, ou antes, do que não pode um partido de esquerda. Lula não tem alternativa senão a da substituição de Dirceu. Só essa medida pode provocar um 'sobressalto' no partido". Um ano depois, em 2005, num artigo publicado na revista Lua Nova intitulado "Para além da gangrena", depois de evocar o artigo anterior e analisar o desenvolvimento da crise do PT, no contexto do affaire do "mensalão", eu escrevia o seguinte: "É difícil dizer no momento em que escrevo [final de agosto de 2005] se o PT irá sobreviver. E qual será o seu destino. Também não sabemos se o governo Lula sobreviverá. A melhor perspectiva seria a de que o PT se salvasse, com a expulsão dos corruptos e uma reorganização do centro e da esquerda menos fanatizada, na base de um novo programa econômico e político. Um programa definido, sem retórica inútil, sem concessões aos poderes dominantes, e absolutamente intransigente em relação à corrupção. Nesse caso, o ideal seria buscar um candidato que não fosse o Lula para as próximas eleições presidenciais, e aceitar a ideia de uma possível derrota. Uma cura de oposição não seria mal para a esquerda. Mas se não houver uma reorganização do partido, sucedendo necessariamente a um processo de expulsões, o PT apodrecerá; e o melhor do PT abandonará o partido. Infelizmente, no momento em que escrevo, essa é a perspectiva que me parece a mais provável. Para onde iriam então os dissidentes?". Depois de dizer que havia "bastante gente séria e honesta no PT", levanto três hipóteses: ou eles se dispersariam "em uma série de legendas sem muita expressão"; ou tomariam "o caminho da extrema esquerda" - e comento: "A extrema esquerda acertou e acerta ao denunciar o processo de corrupção do partido, mas suas perspectivas políticas são irrealizáveis ou nefastas" -; ou formariam "um novo partido de esquerda democrática", o que me parecia ser "o mal menor caso o PT apodreça irremediavelmente".

Assim, os interesses de um partido de esquerda, mesmo hegemônico, e os interesses da esquerda em geral não coincidem nem convergem necessariamente. O fenômeno vale tanto para os partidos totalitários e neototalitários como para os partidos populistas e "quase populistas". Que se substitua por um momento as declarações e justificativas do tipo das que profere Chauí pelo que diziam os dirigentes e intelectuais dos antigos partidos comunistas. Ver-se-á que argumento e retórica são do mesmo tipo. Se um daqueles velhos líderes stalinistas voltasse ao Brasil de hoje, que diria ele sobre os investigadores? Certamente o mesmo que disse Chauí: são agentes do imperialismo que querem entregar as nossas riquezas. Retomo mais adiante as considerações sobre os ganhos que têm tido a direita e a extrema-direita com pronunciamentos desse tipo. Mas uma coisa é clara: se o discurso predominante na esquerda não mudar, perdemos hoje e perderemos sempre. A fala (quase) populista, irresponsável diante da verdade, nos condena à derrota. Os aplausos dos ingênuos ou dos fanáticos não são, certamente, uma compensação suficiente.



 

Ilusões Revolucionárias

"Quanto menos a inteligência adere ao real, mais devaneia com revoluções. [...] Há revolucionários por ódio do mundo ou por aspirarem à catástrofe, mas, em geral, os revolucionários pecam por otimismo. Todos os regimes conhecidos são condenáveis se comparados a um ideal abstrato de igualdade ou de liberdade. Apenas a revolução, por ser uma aventura, ou um regime revolucionário, por consentir o uso permanente da violência, parece ser capaz de atingir a meta sublime. O mito da revolução serve de abrigo para o pensamento utópico, se torna o intercessor misterioso e imprevisível entre o real e o ideal. A própria violência atrai e fascina mais do que causa aversão. [...] Homem nenhum é insensato a ponto de preferir a guerra à paz. Essa observação de Heródoto devia se aplicar às guerras civis. [...] Podemos às vezes nos perguntar se o mito da revolução não se junta, afinal, ao culto fascista da violênca".

Raymond Aron


"A Revolução [Francesa] não adotou igreja alguma. Por quê? Porque era, ela própria, uma igreja".

Jules Michelet
A má notícia é que todos estamos errados (em alguma coisa). A péssima notícia é que todos achamos que temos razão (em tudo). A boa notícia é que podemos dialogar (ainda que seja muito difícil). A ótima notícia é que conseguimos até mudar de ideia (de vez em quando).
Nunca confie nas suas próprias intenções - especialmente se elas parecerem muito boas. Todos somos muito mais egoístas do que imaginamos.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017