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quarta-feira, 26 de maio de 2021

Sobre arte, erudição e a suposta "singularidade" brasileira

Nós, brasileiros, temos certa mania de nos acharmos muito singulares em nossa diversidade cultural e em nossa "musicalidade", porém não devemos subestimar a diversidade alheia.

O minúsculo Japão é um país com uma diversidade cultural, linguística e musical notável, que nós temos dificuldades em distinguir. O mesmo pode ser dito da China, cuja diversidade étnica é absurda. E creio que, de longe, a Índia vence o "campeonato" da diversidade.

Quanto ao Brasil, acho que nós brasileiros é que precisamos abrandar nosso complexo de "singularidade"; achamos que somos "únicos" em tudo, de bom ou de ruim. O discurso do "só no Brasil" é uma armadilha. Mesmo na América Latina mesmo temos exemplos fantásticos de experiências de "mestiçagem cultural", com trajetórias peculiares, diferentes da brasileira, como é o caso do México. Historicamente, a "mestiçagem cultural" segue muitos caminhos diferentes - o caminho brasileiro é apenas um entre tantos.

Outro cuidado que a gente necessário se refere ao uso do Estado Nacional como marco de identidade e diversidade cultural. A cultura do Rio Grande do Sul tem profunda afinidade com o Uruguai e a Argentina - a própria figura do "gaucho" argentino como símbolo da mais autêntica "argentinidade" aponta para essas ambiguidades. Ao mesmo tempo, existem etnias muito peculiares espalhadas entre diversos países diferentes, onde são minoritárias. Há pouco tempo entrei em contato com os tatar, uma etnia muito curiosa - com uma musicalidade muito peculiar, inclusive - que vive espalhada entre diversos países da Ásia Central e da Europa Oriental

Outra questão problemática é confundir música popular, no sentido "folclórico" da coisa com música "pro povão" produzida pelo mercado fonográfico. Música "do povo" e música "pro povo", respectivamente, por assim dizer.

Não é incomum tomar muita coisa ultraprocessada pelo mercado fonográfico, com muito dinheiro envolvido, como se fosse cultura popular "autêntica". E a intelectualidade brasileira, por sua vez, também adora conceder suas bênçãos político-culturais a esses fenômenos - aquela deslumbrada "carimbada acadêmica" que, no fundo, nem conta pra grande coisa. Boto "autêntico" entre aspas porque a própria noção de autenticidade já é, em si, muitíssimo problemática.

Sou suspeito para fazer qualquer comentário, visto que minha predileção caminha sempre em direção ao erudito. Por sinal, não acho que se produza arte relevante sem um alto grau de erudição específica na área em questão. Erudição informal e caótica, como deve sempre ser a verdadeira erudição.

Por exemplo, um sambista genial vai ser sempre um erudito do samba, alguém que cultivou contato com o que se produziu de melhor no samba ao longo do tempo, que conhece bem as grandes referências na área - as grandes composições, os grandes compositores, os melhores intérpretes. Não é o sujeito que meramente pega um cavaquinho e frequenta meia dúzia de rodas de samba.

O mesmo vale para o escritor, o quadrinista, o escultor, o cordelista, o pintor, o grafiteiro, o dramaturgo, o cineasta, o humorista, o game designer... É preciso um vasto contato com um repertório amplo e variado para realizar as incontroláveis e imprevisíveis conexões, fusões e fissões necessárias para produzir arte realmente interessante.

E, é claro, nem toda ostra produz pérolas, assim como nem toda mina produz diamantes. Figuras como um Pixinguinha, um Villa-Lobos, um Paul MacCarthney, um Michael Jackson, um Shakespeare, um Cervantes, um Victor Hugo, um Luís Gonzaga, um George Lucas, um Osamu Tezuka, um Hergé, um Claude Débussy, um Richard Wagner, um Mozart, um Carl Barks, um Shigeru Miyamoto ou um Hayao Myiazaki são preciosidades. Brotam e florescem poucos a cada geração.



quarta-feira, 19 de maio de 2021

 Nem utopia, nem distopia. Vivemos uma autêntica burrotopia idiocrática.

Do direito à estultice

Em uma sociedade democrática todo mundo tem o direito constitucionalmente garantido de ser um estulto - até porque, como dizia o sapientíssimo Calvin, a ignorância é gratuita e não exige esforços.

Infelizmente, não dá para "desestultizar" ninguém à força, a não ser que tenhamos a disposição de fundar um Estado desestultizador totalitário. O que, de qualquer forma, não daria certo, pois Estados totalitários costumam ser grandes produtores de estultos - e não o contrário.

A grande lição das recentes eleições no Brasil, nos EUA e alhures talvez seja exatamente que confrontar a estultice de modo agressivo talvez contribua - e muito - para botar os estultos no poder.

E, obviamente, dá pra ser estulto de muitas maneiras. Todo mundo é o estulto de alguém. Provavelmente eu mesmo estou sendo um estulto ao redigir essas linhas. Talvez, como seres humanos, estejamos fadados à estultice.



quarta-feira, 12 de maio de 2021

quarta-feira, 5 de maio de 2021

A "Ordem" brasileira - Paternalismo, autoritarismo e messianismo político

Texto originalmente rascunhado em janeiro de 2019

"Ordem e Progresso" - diz nossa bandeira. 

Ordem e desordem são categorias muito presentes no imaginário brasileiro, embora pouco se reflita sobre seus respectivos significados. A "ordem" de uns pode ser a "desordem" de outros. Sob esse aspecto, um de nossos maiores problemas é que a categoria "ordem" costuma ser sempre apresentada sob conotações positivas ou negativas, raramente sendo pensada de forma neutra. "Ordem" tanto pode nos trazer segurança coletiva quanto privação de liberdade individual. Por outro lado, o que desejamos, muitas vezes, é apenas aparência de ordem, para que melhor possamos nos deleitar na desordem. 

Para nossa reflexão, convém definir "ordem" como mero conjunto de relações entre as partes de um sistema complexo e compósito. Nesse sentido, de variados conjuntos de relações podem emergir variados gêneros de "ordens", onde suas respectivas partes gozem de maior ou menor grau de autonomia. 

Nesse sentido, há tanta ordem na parada militar quanto no desfile de escola de samba, ambos aparentados esteticamente à procissão religiosa e ao cortejo nobiliárquico - ocasiões em que coletividades se dão a ver pelo ordenado desfile de seus componentes, alas atrás de alas, segundo prioridades, precedentes ou hierarquias. Todo desfile, por mais sério que pareça, comporta muitas dimensões figurativas ou alegóricas. O desfile em via pública não apenas manifesta visualmente a existência da coletividade, mas expressa os valores e anseios que deseja exibir e dos quais, via de regra, se orgulha. O tanque pode ser tão alegórico quanto o carro da escola de samba.

"Procissão do Fogaréu", tradicional em Goiás.

Autonomia não é sinônimo de desordem. Um sistema ordenado com muitas partes autônomas e cooperativas pode funcionar até melhor que um sistema rigidamente hierarquizado. Por sinal, hierarquias demasiadamente rígidas podem conduzir à desordem a médio ou longo prazo, mesmo que pareçam eficientes para finalidades imediatas.

Sub-ordinação é apenas um tipo de co-ordenação, e nem sempre é o mais adequado. O excesso de sub-ordinação fragiliza um sistema, formando gargalos e pontos de tensão cuja ruptura pode comprometer severamente a integridade do sistema - como diz um antigo provérbio com muitas versões, "por falta de um prego, perdeu-se a ferradura; por falta da ferradura, perdeu-se o cavalo; por falta do cavalo, perdeu-se o cavaleiro; por falta do cavaleiro, perdeu-se a batalha; por perder a batalha, perdeu-se o reino inteiro".

Uma corrente é uma estrutura extremamente sub-ordinada e, como diz a sabedoria popular, é tão forte quanto seu elo mais fraco - e quanto mais longa a corrente, maior o número de elos potencialmente fracos, candidatos à ruptura. Uma malha bem co-ordenada, todavia, pode resistir bravamente à ruptura de vários de seus elos, redistribuindo as tensões sem comprometer a própria malha; os elos que circundam o elo rompido tendem a se adaptar de modo autônomo e interdependente, emulando a própria forma do elo perdido. Co-ordenação e fractalidade se combinam de modo mutuamente reflexivo em semelhante dinâmica: o conjunto se rearticula de modo a preservar a função da parte perdida.


Um exemplo interessante desse dinamismo seria talvez a fascinante arquitetura de Gaudí com seu uso de arcos catenários. Não à toa, talvez, o genial catalão projetava suas obras de ponta-cabeça, de modo que cume e base se confundem em suas funções. Tal modelo redistribui as tensões de modo extraordinariamente harmonioso, tanto para cima quanto para baixo.

Maquete "de ponta-cabeça" original de Gaudí, preservada em La Pedrera


Refletida em um espelho, a  maquete revela a forma do edifício "de cabeça para cima"

Numa estrutura bem co-ordenada, a autonomia se torna uma virtude capaz de garantir a ordem mesmo em situações de grande tensão; por outro lado, uma estrutura demasiadamente sub-ordinada acumula tensões de tal maneira que a autonomia pode se tornar um defeito, exigindo estrita conformidade das partes para evitar a tão temida "desordem" - o mínimo desvio dos padrões pode comprometer todo o sistema.

Não é à toa que sociedades muito hierarquizadas tendem a ser autoritárias, baseadas em rígida disciplina, muitas vezes mantida à custa da brutalidade contra suas partes mais autônomas. Em casos semelhantes a autonomia, não raro, é equiparada a grave vício moral. Sinais de autonomia pessoal são vistos com desconfiança e desencorajados de modo suave ou violento conforme sua gravidade percebida - gravidade essa que pode ser muito mais simbólica que efetiva, aferida mais por sua visibilidade que por sua real capacidade de afetar a coletividade; para uma rígida hierarquia, o menor gesto de autonomia pode parecer um ato de traição.

Não raramente, no entanto, a punição rigorosa e sistemática de determinados traços autônomos pode lhes conferir visibilidade ainda maior: espalha o fogo, em vez de apagá-lo; transforma a quarentena em vetor de contágio. Dependendo do caso, tal difusão pode trabalhar em favor dos disciplinadores, contanto que a subversão mantenha sua forma, mas se esvazie de seu conteúdo. O mártir transformado em santo pode mesmo se tornar um alicerce da hierarquia.

Não à toa os cristãos martirizados pelo Império ROMANO seriam igualmente cultuados pela Igreja Católica, Apostólica e... ROMANA - igreja mais imperial que apostólica, talvez: travestido como apóstolo, o imperador se converte em papa, a cúria romana reencarna a corte imperial. Nesse sentido, é curioso, mas não exatamente surpreendente que alguns dos maiores santos e místicos católicos tenham sido eventualmente vistos por seus contemporâneos com desconfiança, como São Francisco de Assis, ou mesmo frequentado os cárceres inquisitoriais, como São João da Cruz. Como já sinalizava Bergson, as relações entre religião dinâmica e estática são muitas vezes paradoxais.

Provavelmente não é à toa que as mesmas religiões (tanto transcendentes quanto seculares) que mutilam os corpos de seus hereges também cultuam os corpos mutilados de seus próprios mártires. Por sinal, como bem demonstram os conflitos entre católicos e protestantes na Idade Moderna, a diferença entre "herege" e "mártir" sempre depende de pontos de vista: o herege de uns é mártir para outros, e vice-versa. Joana d'Arc, convém lembrar, foi canonizada como santa pela mesmíssima Igreja que outrora a condenara como herege à fogueira - resta saber se é rigorosa e exatamente a mesma igreja que condena e canoniza: provavelmente não, a seguir a máxima de Heráclito, de que um homem não mergulha duas vezes no mesmo rio.

As igrejas, como todas as coletividades e rios, fluem no tempo: todo rio e toda coletividade modificam o próprio leito onde fluem, pela natureza mesmo do fluir, pelo atrito entre a dinâmica água e o estático solo - para retomar as categorias bergsonianas. Com o inexorável escoar dos dias, anos e séculos, toda coletividade em fluxo tende a erodir seus próprios dogmas ao longo do tempo. As coletividades mudam, inclusive com a fútil intenção de continuar as mesmas; e muitas vezes, nesse processo, acidental ou providencialmente, podem mudar para melhor. As coletividades, ao converter seus mártires em santos, se deixam imperceptivelmente subverter por eles: é um processo de mão dupla, incontornavelmente dialético.

A razão hierárquica apresenta grave tendência a perverter a ordem em seus esforços para evitar a desordem: autoritárias autoridades se persuadem, de boa ou má fé, que seus interesses são exatamente equivalentes aos da coletividade. A pretexto de encarnarem a voz da coletividade, da divindade ou da coletividade divinizada, fazem com que ela se cale.

A autoridade autoritária, em seu ilusório esforço por personificar a coletividade se degenera em grosseiro e grotesco personalismo. Iludidas ovelhas seguem seu pastor até o matadouro; não percebem que o pastor é apenas mais uma ovelha, com coração de lobo: "um rei é como um tubarão que anda sobre a terra", diz o provérbio havaiano.

Toda hierarquia, por melhores que sejam suas intenções ou pretextos, é potencialmente predatória; hipertrofiada e descontrolada, devora a carne ou a alma de seus próprios membros, inclusive daqueles em posição de autoridade: como bem dizia o abolicionista Joaquim Nabuco, o homem na condição de senhor ou escravo nunca é livre. De fato, tanto o senhor quanto o escravo estão presos na própria hierarquia que gera as respectivas posições de senhorio e escravidão, hierarquia essa que os ultrapassa e priva de sua autonomia. Não há casa-grande sem senzala, e vice-versa.

Não espanta, assim, que o espectro da escravidão ainda assombre a servil alma senhorial do povo brasileiro, tão dado a tendências autoritárias e paternalistas. Nada disso é acidental, dada nossa formação cultural, onde as figuras do pai e do senhor sempre se confundiram ou tentaram, com maior ou menor sucesso, se confundir, como mostra eloquente trecho do padre Antonil, redigido no século XVIII:

Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo com que se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. [...] O que pertence ao sustento, vestido e moderação do trabalho, claro está, que se lhes não deve negar, porque a quem o serve deve o senhor, de justiça, dar suficiente alimento, mezinhas na doença e modo com que decentemente se cubra e vista [...] e deve também moderar o serviço de sorte que não seja superior às forças dos que trabalham, se quer que possam aturar. [...] Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana, para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor, para que não se descuidem; e isto serve para que não padeçam fome nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha, nem dia para a plantarem, e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia e de noite com pouco descanso no engenho, como se admitirá no tribunal de deus sem castigos? Se negar a esmola a quem com grave necessidade a pede é negá-la a Cristo Senhor nosso, como Ele o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo? [...] O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo. (André João Antonil, padre italiano, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas).

Agora, como outrora, os populismos brasileiros confundem fartamente paternidade com senhorio, servidão com filiação. Enredada no imaginário do pai-senhor, a cultura política brasileira é uma máquina configurada para converter indignação em bonapartismo em suas complementares engrenagens de paternalismo e autoritarismo. O brasileiro, de "esquerda" ou "direita" busca perpetuamente em seu governante um pai-senhor, em Lula, Bolsonaro ou no próximo que vier.

Mas o pai-senhor também precisa ser Messias, por força de nossa formação lusitana, católica e irremediavelmente sebastianista. A pátria brasileira precisa de salvação, como a alma católica - e não há salvação sem eleição, como tanto enfatizam os protestantismos. Assim, a cada quatro anos, a não-tão-laica liturgia política brasileira precisa passar por um processo de eleição-salvação - ou salvacionismo eleitoral, conforme se prefira. Ao grado das circuntâncias escolhe-se o próximo salvador da pátria - depois de Lula, a bola da vez, muito significativamente, é Jair MESSIAS (!) Bolsonaro.

No entanto, não há Messias sem crucificação. Como o povo de Jerusalém entre o Domingo de Ramos e a Sexta-Feira da Paixão, o povo brasileiro sacrifica periodicamente seus salvadores-eleitos. Todo novo D. Pedro vai de seu glorioso 7 de setembro à sua melancólica noite das garrafadas. O suicídio de Vargas, a renúncia de Quadros, o impeachment de Collor e aquele de Dilma, a prisão de Lula, se sucedem como rimas finalizando estrofes de um longo e enfadonho poema escatológico, anunciando o D. Sebastião que virá na estrofe seguinte, em eterno retorno.

O discurso eucarístico de Lula na missa (!) celebrada em São Bernardo do Campo antes de se entregar à Polícia Federal não poderia ser mais sugestivo. Uma verdadeira autobiografia messiânica em versos barrocos, desde a encarnação humilde, passando pelos milagres presidenciais, a traição da classe-média brasileira, o martírio judicial, a paixão-apoteose encenada no próprio palanque e a promessa de ressurreição político-pneumática no corpo eucarístico-patriótico brasileiro: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia misturada com as ideias de vocês. Minhas ideias já estão no ar e ninguém poderá encerrar. Agora vocês são milhões de Lulas”.

Bolsonaro e seus seguidores, por outro lado, em muitas conjunturas críticas, têm se valido do imaginário do martírio e da efusão de sangue, evocando o atentado sofrido pelo atual presidente durante a campanha eleitoral. A imagem-meme da camisa ensanguentada se tornou como uma verdadeira relíquia para a idolotria bolsonarista.


Nada ou muito pouco de nossa vida política parece se passar fora desse imaginário político-familiar-colonial-religioso do pai-senhor-messias. Apesar do vocabulário, das instituições e das ideologias modernas, há um verdadeiro leitmotiv emotivo pré-moderno, pré-republicano e pré-democrático que insiste e persiste através de nossas correntes ideológico-partidárias de "esquerda" ou de "direita". Os credos mudam, mas a liturgia se perpetua.

Nossos dois fenômenos político-messiânicos mais recentes, Lula e Bolsonaro, flertam com a teologia em sentido literal, um com a Teologia da Libertação e o outro com a Teologia da Prosperidade, ambas com viés político-econômico de "esquerda" ou de "direita", mas, ainda assim, teologias cristãs, apontando ambas para o mesmo referencial salvífico-messiânico. Ambas também com forte teor vetero-testamentário, centradas respectivamente no imaginário do Êxodo e da Aliança.

No limite, esse imaginário do pai-senhor-messias se projeta completa ou parcialmente em muitos momentos e figuras de nossa história republicana e pré-republicana, como a "redentora" Princesa Isabel, o "profeta" Antonio Conselheiro, o Vargas "Pai dos Pobres", a "redentora" revolução (sic) de 1964, na figura cripto-mariana da "Dilmãe" ou no recente slogan presidencial "Deus acima de tudo, Brasil acima de todos".

No Brasil, o Estado lusitano precede a sociedade colonial, e esse Estado também era Igreja - romana, imperial, colonial, inquisitorial, cruzada. O observador desavisado pode confundir o povo brasileiro com a brava gente lusitana às margens de Alcácer-Quibir, combatendo o infiel, pela Fé e pelo Império, à espera do Fim dos Tempos, anunciado por Bandarras de todo credo político, à esquerda ou à direita.

Zweig não estava errado ao dizer que o Brasil é o país do futuro, mas se equivocava talvez em relação a nosso regime de temporalidade. O futuro só é plausível onde existem passado e presente - alguma consciência histórica, enfim.

Não é o caso do Brasil, país onde candidatos presidenciais, a cerca de meio século um do outro, mordendo-se mutuamente as caudas, prometem saltos milagrosos de "50 anos em 5" ou restaurar o país como era "50 anos atrás" - nosso futuro é aquele do horizonte escatológico, que é também restauração do Éden nos jardins murados da Jerusalém celeste, Genesis e Apocalipse de mãos dadas, fechados sobre si mesmos, entre a eterna "Visão do Paraíso" e as tormentas do "Inferno Atlântico".

Nosso barroco teatro político é uma longa procissão - e, como se sabe, numa procissão há pouco espaço para autonomia, basta seguir o andor...