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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Meias-verdades são mais perigosas que mentiras inteiras - principalmente quando aquele que as espalha acredita nelas sinceramente. Enganar a si mesmo é mais trabalhoso que enganar a terceiros.

"A ascensão Skywalker" - Impressões

Fui ontem ver o Episódio IX. Minha expectativa era 0, mas acabei dando nota 8.25.

Com muitas ressalvas, dá para dizer que o filme é bom. Cheguei ao cinema sem qualquer expectativa, as primeiras cenas me deixaram indignado, mas depois o filme me conquistou. Contudo, é apenas um remendo, nada além disso: o maldito Episódio VIII arruinou a trilogia, enquanto conjunto.

Quanto ao Episódio IX... Vejamos: o argumento é tosco, o roteiro é cheio de buracos e deixa um monte de pontas soltas - apesar de tudo isso, milagrosamente, o filme funciona. É um besouro cinematográfico: não devia voar, mas voa. 

Depois de todas as lambanças cometidas por Ryan Johnson no filme anterior, J.J. Abrahams salvou heroicamente o que dava para salvar dessa trilogia. Ainda assim, na minha opinião, episódios VIII e IX conquistaram os respectivos títulos de pior e segundo pior filmes de Star Wars. Ninguém precisa mais reclamar do Episódio I - deixem Jar Jar Binks em paz!


domingo, 29 de dezembro de 2019

Burrice e Conservadorismo

"Eu nunca quis dizer que os conservadores são geralmente burros. Eu quis dizer que pessoas burras são geralmente conservadoras".
John Stuart Mill

sábado, 28 de dezembro de 2019

Do letramento carioca - Ainda

Dedicado aos amigos Marcos e Filipe, interlocutores dessa reflexão

Acho que o fechamento de livrarias físicas - em parte - tem a ver com a concorrência das compras virtuais, dos e-books etc. Mas é fato que o carioca "médio" (se é que isso existe) não é chegado à coisa. De vez em quando pergunto a meus alunos de Ensino Fundamental e Médio sobre hábitos de leitura e muitos (a maioria, no Fundamental) NUNCA entraram numa livraria. Alguns se espantam ao saber que numa livraria é possível folhear livros sem pagar. Muitos relatam ler menos de um livro por ano, nunca ter lido um livro com mais de 100 páginas ou nunca ter lido um livro inteiro. Tenho uma anedota ainda mais significativa: minha escola municipal fica perto do Norte Shopping, onde (ainda) há uma Saraiva MEGAstore; muitos alunos meus, embora frequentassem o shopping, nunca tinham notado a existência da imensa livraria. Apesar do tamanho da loja, ela permanecia quase literalmente invisível para eles. 

Vivemos numa cultura fundamentalmente iletrada - e isso não tem a ver apenas com desigualdade social. Meus alunos de Ensino Médio passam por processo seletivo; a maioria deles é de classe média baixa e cursou o fundamental em escola particular - ainda assim leem pouco, apresentam dificuldade ao interpretar textos e não dominam plenamente a expressão escrita. Mesmo pessoas com formação universitária pouco leem. Conheço médicos, engenheiros e até professores sem hábitos de leitura consolidados. Já tive alunos de graduação que mostravam profunda aversão à sugestão de gastar dinheiro com livros. Enfim, a leitura e o livro ocupam papel marginal na cultura brasileira e carioca e, obviamente, os lugares que vendem livros padecem do mesmo mal.

A crescente prevalência de filmes dublados nas salas de cinema, penso eu, é fenômeno correlato. Quem já tem dificuldade de ler textos "fixos" terá dificuldade ainda maior em acompanhar o ritmo das legendas de um filme. O fechamento de livrarias e a escassez de sessões de filmes legendados são sintomas da mesma doença.

Ao falar numa cultura fundamentalmente iletrada, penso, com efeito, nos fundamentos históricos brasileiros, nos alicerces culturais de nosso povo. Vale lembrar alguns clichês historiográficos que permanecem relevantes para pensar a temática; a comparação com a experiência da América espanhola é bastante reveladora, como já sugeria o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Enquanto a coroa hispânica fundava suas primeiras universidades em solo americano no século XVI, a primeira universidade brasileira ainda não completou sequer cem anos! Durante todo o período colonial só houve uma tipografia na América portuguesa, de duração efêmera e fundação tardia, na segunda metade do século XVIII, enquanto nossos hermanos já imprimiam livros desde o primeiro século de colonização. Isso obviamente não significa que os hispano-americanos fossem majoritariamente letrados, nem que a escrita e a leitura fossem completamente irrelevantes no âmbito colonial luso-brasílico, no entanto, fica evidente que há diferenças relevantes em relação à produção e circulação de impressos. Por sinal, penso que não haja exagero em dizer que a monarquia e a hierarquia eclesiástica lusitanas foram, de longe, as instituições europeias mais reticentes em relação à produção e circulação de material impresso, sempre visto como potencial ameaça à Fé e ao Império.

Não quero com isso postular ou inferir qualquer tipo de inferioridade inerente ao nosso processo de formação histórica, muito menos arvorar um discurso de fatalismo histórico. Pretendo apenas constatar que a precariedade da cultura letrada no Brasil é parte de um processo de longa duração, lembrando ainda que as políticas educacionais durante o Império e a República foram e continuam sendo inconsistentes - apenas no Estado Novo a Educação começou a ser pensada (um pouco) mais seriamente enquanto política pública, e desde então vem seguindo caminhos tortuosos, com seus altos e baixos. Uma figura mais que emblemática dessa árdua e inglória luta é o pouco lembrado Anísio Teixeira, cujas pequenas vitórias e grandes derrotas lembram a imagem de um profeta que fala aos ventos. Feitas as contas, sou otimista e acho que a educação no Brasil teve imensos avanços quantitativos nos últimos cem anos; nosso grande desafio para o século XXI é melhorar - e muito - a qualidade da estrutura hoje existente.

No entanto, o problema cultural do letramento no Brasil e no Rio não se resume à esfera institucional e às políticas públicas. É importante pensar no papel conquistado pelas mídias de massa no Brasil ao longo do século XX - outro fascinante paradoxo brasileiro.

Consternado com a idiotização das massas pela televisão nos Estados Unidos dos anos 1950, Ray Bradbury imaginou um futuro distópico onde livros seriam queimados como política pública; vivesse ele no Brasil, à mesma época, o pesadelo seria a constrangedoramente pequena quantidade de livros disponíveis para a fogueira...
Como sinalizava o saudoso brasilianista Thomas Skidmore, o Brasil foi muito precoce no que tange à expansão do rádio e da televisão, mas ao contrário de outros países pioneiros nesses setores, nossa população era majoritariamente iletrada na época, o que deu a essas mídias um poder cultural muito peculiar em nosso país. O brasileiro foi fortemente exposto às mídias de massa sem que houvesse um letramento prévio para servir de contrapeso. 

E é claro que tudo isso é um convite à "vidiotia". O exercício da leitura e da escrita é ferramenta importante, talvez essencial, para certo desenvolvimento da introspecção, do pensamento crítico, da capacidade de elaborar e avaliar argumentos entre outras tantas competências vitais para a cidadania plena e efetiva e, num nível mais profundo, para a formação de uma consciência autônoma.

É duplamente sintomático dessa renovada "vidiotia" brasileira o espaço que os livros de youtubers estão ocupando no mercado editorial. Foram os mais vendidos nas últimas bienais e certas livrarias já concedem espaço privilegiado e destacado a essas obras. O maior problema é que livros de youtubers mal podem ser chamados de livros. Geralmente são coleções fragmentárias de textos de qualidade duvidosa, repletos de fotos e figuras com diagramação espalhafatosa. Dificilmente servirão como porta de entrada para leituras mais densas, sofisticadas e edificantes. O livro de youtuber é "vidiotia" impressa e encadernada, para consumo rápido e descarte imediato.

Tudo isso soa bastante elitista (e talvez seja mesmo). Não quero, todavia, atribuir juízos de valor às pessoas iletradas ou postular a superioridade de uma cultura erudita e letrada em relação à cultura popular e oral. Muito pelo contrário, elas podem e devem se complementar. O problema é a substituição da oralidade popular viva e pulsante pela indústria cultural massificada e massificante, simplória, simplista, embalada para viagem e descartável, com a única finalidade de gerar modismos frívolos e lucrativos, programada para a obsolescência. Como já dizia Ariano Suassuna, o que mata o cordel não é Shakespeare, é a novela da Globo - ou, atualizando, o lixo cultural diariamente produzido na e para a Internet...

Biblioteca Nacional: tesouro mudo para cariocas iletrados.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Rio: Capital Mundial

Todas as livrarias do Rio de Janeiro estão fechando - e nunca foram muitas...

Assistir um filme legendado nos cinemas cariocas se torna mais difícil a cada dia - sem mencionar o inconveniente falatório do público durante a exibição.

Acho que chegou o momento de assumir nossa vocação com o devido orgulho e solicitar à UNESCO o reconhecimento do Rio de Janeiro como "Capital Mundial do Analfabetismo Funcional".

Essa Cidade é realmente Maravilhosa - no sentido medieval do termo...

Seria melhor ir ver o filme do Pelé.


Eu diria que a Lei de Murphy é a Constituição oculta do Brasil.

Vovó Mafalda e o Marxismo Cultural

Esse país começou a se degenerar quando deixaram toda uma geração de crianças exposta a um homem travestido de "Vovó Mafalda". Uma afronta à família tradicional brasileira, aos cidadãos de bem e ao venerável papel das matriarcas.

Pior ainda, Vovó Mafalda instigava sutilmente as crianças a ver os mais velhos como palhaços, criando toda uma geração de baderneiros subversivos, avessos à moral e aos bons costumes. 

Suspeito que Vovó Mafalda seja parte de um plano urdido por Paulo Freire, pela Escola de Frankfurt e pela intelectualidade gramsciana. Aposto que o roteirista da Vovó Mafalda era Marcuse. Uma análise mais detalhada certamente mostrará que a concepção de Vovó Mafalda e Papai Papudo, ridicularizando as figuras da Avó e do Pai, se baseia nas ideias de Engels em "A origem da família, da propriedade privada e do Estado". 

A lição que fica é que devemos preservar nossas crianças da influência nefasta do marxismo cultural que envenena a sociedade brasileira.


terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Tropeços na penumbra

O mundo tal como pensado é radicalmente diferente do mundo tal como vivido. 

Pensamos no que vivemos e vivemos como pensamos, sobrando entre essas dinâmicas largo espaço para o desconhecido e o inconsciente, configurando as misteriosas encruzilhadas da intuição. Ação e representação se encontram e desencontram cotidianamente; não devemos subestimar esses encontros, nem superestimar esses desencontros. A experiência do humano no mundo, mais que de luz ofuscante ou escuridão impenetrável, é composta por vastas zonas de penumbra. 

Nascemos, crescemos, vivemos e morremos caminhando na penumbra: não espanta que por vezes tropecemos.

O moinho, paisagem de Rembrandt, um dos grandes mestres da penumbra.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Monstruosidades

Por mais monstruosa que uma pessoa pareça é imprescindível seguir afirmando e reconhecendo sua humanidade - fazer o contrário disso, de modo passional ou pragmático, seria também uma forma de monstruosidade. Para seguir humanos, precisamos reconhecer a humanidade dos "monstros"; em grande medida isso também envolve o reconhecimento da monstruosidade que há em nós mesmos, o que pode ser bastante doloroso.


terça-feira, 17 de dezembro de 2019

"Bolsonaro está fazendo o que prometeu" - Entrevista com o filósofo Ruy Fausto


Ruy Fausto é filósofo, professor emérito da USP. Entre outras obras, lançou recentemente os excelentes livros Caminhos da Esquerda (sobre o qual já prestou gentil entrevista a este blog) e o igualmente brilhante O ciclo do totalitarismo – uma excelente reflexão crítica sobre as ideologias e regimes totalitários de esquerda e direita no século XX. Desta feita, concede entrevista sobre os rumos do governo Bolsonaro em seu primeiro semestre [a entrevista foi originalmente realizada em setembro, mas teve a publicação adiada devido a imprevistos; de todo modo, as considerações permanecem pertinentes alguns meses depois].

Como você avalia o primeiro semestre do mandato Bolsonaro?
Como ele diz – é uma das poucas vezes em que disse a verdade, uma triste verdade – ele não praticou estelionato eleitoral. Está fazendo o que prometeu. Ou, tentando fazer. Liquidar a esquerda, acabar com todas as mediações (congresso, tribunais, no limite acabar com a democracia), destruir a universidade, disseminar o obscurantismo, asfixiar a imprensa. Tudo isso, numa atmosfera de mediocridade e de boçalidade extremas. Vivemos um dos períodos mais sinistros da nossa história.

Na sua opinião, os setores de esquerda (partidários ou não) vêm atuando de modo consistente nesse contexto? O que precisaria ou poderia melhorar?A resistência se revela melhor do que se esperava, mas, apesar de tudo, com insuficiências graves, que em geral refletem o peso do passado. Digamos que, dentro do desastre, houve e há alguns fatores positivos. Primeiro o fato, já antigo, mas que pesou e pesa, de que, se Bolsonaro ganhou com folga, não esmagou o seu adversário. Creio que aquele forcing final da candidatura Haddad, impulsionado aliás, em grande parte, por gente independente, nos salvou. Um Bolsonaro eleito por setenta por cento dos votos válidos teria se transformado num rolo compressor. Depois vieram os escândalos (caso Queiroz, milícias), e as divisões entre eles. As revelações de The Intercept devem ser destacadas, porque não há como subestimá-las. Pode ser que, de novo, tenhamos sido salvos, agora pela atuação de uma agência dirigida por um liberal ("liberal") americano. Também nos ajudaram as divisões entre eles, agravadas por aqueles problemas. Há, aliás, o fenômeno curioso dos trânsfugas, adeptos de Bolsonaro ontem ou anteontem, que tomam posição contra ele. Impossível esquecer o papel que eles tiveram na vitória da extrema-direita, mas, isso posto, têm participado da crítica de modo muito aguerrido, e às vezes até brilhante. Descontemos os cheques que essas figuras emitem em nosso favor, ou antes, contra Bolsonaro, sem dar cheque em branco a eles, porque não sabemos como e onde vão terminar. Acrescentemos ainda a mediocridade gritante do personagem. Ai de nós, se tivéssemos aqui um Orbán ou um Erdogan. Bolsonaro é politicamente tão ruim ou pior do que eles, mas não tem a habilidade que os outros revelam. Suas intervenções são uma sucessão de desastres, digo, também para o seu próprio campo. Mas não nos enganemos. Isso é um aspecto. O outro é precisamente a fidelidade dele ao seu próprio programa. De forma que a gente nunca sabe se a gaffe foi apenas ou exatamente isso, ou pelo contrário, uma medida pensada e intencional. Acho que as duas coisas. Por exemplo, ele continua elogiando torturadores para cristalizar os trinta por cento de eleitores de que dispõe (perdeu uns vinte cinco), mas com isso e outras coisas mais (discursos escatológicos, intervenções brutais na administração, nepotismo, irresponsabilidade absoluta nas nomeações, às vezes confiada a um guru quem nem conhece a pessoa – e que pessoa – escolhida, destruição da Amazônia etc); ele vai se queimando, inclusive com forças importantes do establishment. Estes andam considerando se um defensor tão reacionário quanto, mas menos barulhento e mais prudente, não seria, no fundo, preferível.
E a esquerda? Em parte reagiu bem, aproveitando as barbaridades do segundo ministro da educação (personagem arquimedíocre além de obscurantista e reacionário), e organizou manifestações que tiveram algum ou (no caso da primeira) bastante sucesso. Também a literatura jornalística antibolsonaro é a destacar. Aguda, sarcástica, mobilizando alguns dos melhores jornalistas, mais cientistas políticos e professores universitários, em geral. A atuação no congresso, até onde pude acompanhar, teve altos e baixos (como diziam outrora os comentadores esportivos). Uma massa de congressistas meio perdida diante do desastre, e não sabendo bem por onde começar, e certo número de deputados e deputadas (acompanhei mais de perto as sessões da Câmara) intervindo de modo muito eficaz e convincente. Não se pode deixar de destacar a atuação do lider da oposição, Alessandro Molon, embora ele não tenha sido o único a acertar. Mas com tudo isso, a esquerda não se mostra suficientemente forte. Sua debilidade tem raízes históricas. O partido de esquerda que foi hegemônico (não sei se ainda o é) apoia a sua política (eu diria quase: resume) na campanha pela liberação de Lula. Ninguém duvida, principalmente depois das revelações de The Intercept, que o julgamento de Lula, referendado ou não por um fieira de juízos, foi irregular e fraudulento. Lutar para que seja solto, tudo bem, isso se impõe. Mas há ai dois problemas: um é o de que o PT tenta insinuar, aproveitando as revelações, que as práticas dos governos petistas e do PT em geral, foram perfeitamente inocentes. Nada mais falso. As revelações de The Intercept não apagam erros e abusos, e em geral o fato de que havia, sim, promiscuidade entre parte do poder econômico e o poder petista. Nem apagam outros escândalos e casos graves, a começar pelo "mensalão". Apesar das aparências, isso tudo pesa hoje em dia. O PT não sabe, mas está desgastado. E também por isso, embora não só por isso, precisamos de uma política que não se limite a pedir a liberdade de Lula, e, de forma geral, que diga a verdade… Sem falar na desastrosa ambiguidade que o PT continua alimentando (é o mínimo que se pode dizer) a propósito do que significa o governo Maduro, na Venezuela. Não basta dizer que “cometeu alguns erros“. Isso só não se afirma (os crentes!) de Deus… Enfim, esses fatores impedem levar adiante uma luta contra o bolsonarismo que seja realmente eficiente e amplamente mobilizadora. Precisamos contar com toda a esquerda (e uma esquerda que esteja mais preocupada com o seu interesse geral, que é o do país) do que com os interesses de burocracias partidárias, para alavancar o conjunto das forças democráticas.

Muitos analistas afirmam que estamos vivendo sob uma espécie de "parlamentarismo brando" ou "parlamentarismo branco". O que você pensa disso?
Certos cientistas políticos, cada vez mais raros, aliás, insistem em ver o processo como se tratasse de mais um episódio de uma pretensa luta entre executivo e legislativo. Sem negar o interesse em estudar como atuam tais forças na situação atual, dar esse privilégio a certas noções tradicionais no bojo da tentativa de compreender o que se passa hoje no Brasil e no mundo, é de um total provincialismo - um formalismo provinciano. Prefiro não entrar nessa discussão, que inserida num contexto substantivo, poderia ser interessante, mas tal qual ela vem sendo formulada tem pressupostos mistificadores.

Em sua opinião, quais seriam as alternativas para a esquerda nas eleições presidenciais de 2022?
Precisaríamos de um candidato único, é claro. Mas essa possibilidade torna-se cada vez mais fraca. Ciro parece ter rompido definitivamente com o PT (ele tinha lá suas razões para se distanciar do PT, mas o seu comportamento, desde o segundo turno das eleições de 2018, foi irresponsável). Quanto ao que fará o PT, não sabemos. Também não sabemos como se comportarão as outras forças e os outros partidos de extrema-esquerda, de esquerda ou de centro esquerda, como o PSOL e o PSB. O ideal seria uma articulação que mobilizasse pelo menos parte importante das formações e movimentos de oposição. A direita irá àquelas eleições (se houver eleições) certamente dividida: com Bolsonaro (ou representante), mais Dória, e ainda, provavelmente, um candidato de centro-direita tipo Huck. A esquerda também irá dividida. Apenas entre PT e PDT? Não sabemos. E qual seria o candidato do PT, já que, quanto ao PDT, parece certo que escolherão de novo Ciro. Haddad continua sendo um bom nome, apesar de muito desgastado pelo oportunismo do partido (Gleisi relutou até o fim a propor a candidatura de Haddad, o humilhou o quanto pôde, e dentro do partido havia – e parece que ainda há – a turma do "Lula ou nada"). Seria possível ainda tentar a chapa Ciro/Haddad, que não conseguiu se estruturar em 2018? Longe de mim, supor que Ciro é um nome ideal. Mas na situação muito grave em que estamos, todas as possibilidades devem ser examinadas. Há aliás outros nomes no PT, como o do atual governador da Bahia. Fora do ex-partido hegemônico, há o governador do Maranhão, Flávio Dino, prejudicado por se apresentar como candidato de um partido que se intitula comunista. Isso não pega bem em lugar nenhum no final da segunda década do século XXI, nem fora nem dentro da esquerda. O que não quer dizer que socialismo ou mais precisamente, esquerda democrática não pegue, por mais que o nome socialismo tenha sido maltratado pela esquerda totalitária. Veja-se o curso surpreendente da campanha eleitoral americana.

Que lições você acha que o povo brasileiro será capaz de tirar até 2022 da situação política corrente?
Espero – sou talvez meio otimista, aqui – que a experiência sinistra do governo Bolsonaro queime definitivamente a extrema-direita, e consideravelmente a direita que direta ou indiretamente o elegeu. Talvez – de novo, sendo bastante otimista ­­– tudo isso termine num banho frio para as direitas, em geral. A partir da gritaria em torno da famosa "roubalheira do PT", essa gente elegeu um personagem corrupto, violento, bronco, cujas posições representam o que existe de mais regressivo na atual política mundial. Os bolsonaristas não são exatamente fascistas, porque lhes faltam alguns traços do fascismo. Mas eles são certamente aparentados com o fascismo. Diria que são primos dos fascistas. Defendem o que é possível defender do fascismo no final da segunda década do século XXI. Mas esse fascismo possível do nosso século é suficiente para destruir as nossas instituições. Sem falar no problema que hoje talvez seja o mais importante de todos. A extrema-direita joga hoje, no plano mundial, a carta da destruição da vida no planeta. O ceticismo diante do aquecimento global, aquecimento hoje comprovado por praticamente a totalidade dos cientistas de todos os continentes, representa uma política literalmente suicida, de quem grita, como os fascistas espanhóis em outro tempo: "viva la muerte". Pois eles não se limitam a professar opiniões céticas diante do que ocorre no Antropoceno: eles agem em consequência. A destruição da floresta amazônica é o presente mais terrível, porque irreversível se não conseguirmos parar o carro a tempo, que nos lega o bolsonarismo.


sábado, 14 de dezembro de 2019

Heróis, inimigos e ideologias

Parafraseando Cazuza (do qual nem gosto): meus heróis morreram de velhice e meus inimigos estão no poder... Quanto às ideologias, não preciso de nenhuma delas para viver.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Merry Trumpmas!


Códigos: genético ou postal?

-Preparado para um mundo onde um teste de DNA de US$ 50 pode prever suas chances de obter um doutorado ou que criancinha* vai entrar em uma pré-escola seletiva?
-Já se pode fazer isso com um CEP.

*O termo "toddler" é difícil de traduzir em português; significa algo como criança na fase em que começa a andar. 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Não sejamos ingênuos

O homem, infelizmente, é lobo do homem; não podemos nos iludir com aqueles que promovem seus interesses particulares como se fossem interesses coletivos.

Muita gente que se diz preocupada com o "desenvolvimento da nação" está muito mais interessada no desenvolvimento de patrimônio pessoal e familiar às custas do contribuinte ou de seus empregados.

Quando o patrão pede para "vestir a camisa" da empresa geralmente ele deseja que você produza mais sem pagar proporcionalmente por isso. Nessa hora, lembre-se que profissional não é jogador e empresa não é clube de futebol. Por sinal, hoje em dia, nem os futebolistas profissionais costumam "vestir a camisa" dos seus respectivos clubes, apesar dos salários milionários.

Cumpra suas obrigações com honestidade, dignidade, lealdade, dedicação e profissionalismo, mas nunca esqueça que o "amor" acaba na hora dos cortes de pessoal - e demissão pode ser mais litigiosa que divórcio, dependendo do caso.

Já trabalhei numa pequena empresa cujo dono dizia que éramos "uma família" - mas nunca me convidaram pra ceia de Natal. Saí dessa empresa, inclusive, pelas práticas desonestas que ela praticava contra os clientes: preferi ficar desempregado a seguir trabalhando para gente inescrupulosa.

Quando comuniquei meu desligamento da empresa, a pretexto de concentrar meus esforços no mestrado, simpático como sempre, meu patrão afirmou com comovente sinceridade que fazia absoluta questão de me pagar R$ 400,00 que me devia por alguns serviços prestados.

Aguardo até hoje...

Pensando bem, a clássica expressão é quase uma ofensa aos lobos de verdade.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Férias em Mustafar

-Para onde você vai nas férias?
-Vou para o Lado Sombrio da Força.
Escondam bem as crianças. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Humildes Catedrais

Fazendo da raiz alicerce, emergem, pouco a pouco, grão a grão, singelas, frágeis, humílimas catedrais. Há algo de assombrosamente majestoso nesses pequenos colossos, erguidos por tão ínfimas construtoras. Há algo de sublime nesses edifícios que se erguem plácida e silenciosamente, sem qualquer sombra de vaidade, orgulho, cupidez ou ambição. Cândida grandiosidade, instintiva proeza de desapaixonado impulso vital. Fosse eu uma cigarra, cantaria o glorioso triunfo arquitetônico das formigas.








Vert-Galant

O Brasil anda muito necessitado de alguém como o saudoso Henrique de Navarra...

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Gandhi era um misógino pervertido?

Volta e meia surgem acusações polêmicas, sensacionalistas e pouco fundamentadas em torno da interessantíssima figura de Mohandas Karamchand "Mahatma" Gandhi (1869-1848). Algumas delas são sobre racismo (tema que não será tratado aqui) e outras o qualificam como misógino, pervertido, abusador de mulheres em seus polêmicos "testes de castidade", praticante de violência doméstica, entre outras menções pouco edificantes. Os exemplares dessas correntes polêmicas são inúmeros, como essa superficial e tendenciosa resenha do autobiográfico Minha vida e minhas experiências com a verdade; ou esta sensacionalista matéria sobre o legado de misoginia deixado por Gandhi, que atormentaria ainda hoje as mulheres indianas; ou ainda esse texto que pinta Gandhi como um verdadeiro bicho-papão e circula na Internet há alguns anos, respondido por uma crítica interessante, mas que não dá conta de todo o assunto.

Curiosamente, a maior parte dos (supostos) "podres" de Gandhi foi exposta por ele mesmo em seus escritos públicos. De resto, muitas atitudes dele podem soar hipócritas para nós, ocidentais, mas possuem um contexto na mística Brahmacharya, que ele seguia. Existem muitos aspectos complexos, contraditórios e paradoxais na vida de Gandhi, e ele mesmo nunca fez questão de escondê-los, mas esses aspectos volta e meia são usados em polêmicas sensacionalistas e maniqueístas cujos objetivos são mais de difamar sua imagem e seus pensamentos que de compreender o homem Gandhi em toda sua fascinante complexidade. Estudo profundamente a trajetória de Gandhi há quase 20 anos e já li um bocado sobre o assunto; o presente texto é uma tentativa de alinhavar uma análise crítica, mas generosa, sobre o personagem.
Geralmente pensamos em Gandhi apenas a partir de sua queda de braço com o Império Britânico, mas ele também foi um profundo crítico da Índia de seu tempo - o que já dá muito que pensar. Foi a figura mais visível a combater o sistema de castas (isso não é pouca coisa), teve uma preocupação vital e visceral em garantir a integração dos párias à sociedade, foi um severo crítico da miséria em que a maior parte da população da Índia vivia, explorada pelas próprias elites indianas. 

Gandhi incomodou muita gente - britânicos e indianos, hindus e muçulmanos e por aí vai. Ele nunca foi uma unanimidade, mas provavelmente ele era a rainha no lado indiano do xadrez (para desagrado de muitos de seu próprio "lado"). 

Acho triste o modo como muita gente, por agendas ideológicas variadas ou por puro deleite iconoclasta, tenta diminuir e depreciar a figura de Gandhi. Mas isso faz parte do jogo de extremos com que sua figura foi historicamente construída: parece que só conseguimos pensar em Gandhi enquanto um santo imaculado ou o mais sórdido dos pecadores - ele mesmo, como escreveu muitas vezes, sabia que não era nem uma coisa, nem outra. O apelido de "Mahatma", "Grande Alma", o incomodava profundamente, por conhecer seus próprios defeitos.

Já em 1949 o célebre escritor Geroge Orwell publicou um hoje clássico texto sobre Gandhi, onde o tratava de maneira crítica, mas extremamente respeitosa e equilibrada. Ainda hoje, escrever sobre o pitoresco personagem indiano de maneira ponderada é uma tarefa difícil para historiadores e biógrafos.

Começando pelas acusações de violência doméstica, nunca vi nenhum biógrafo sério mencionando isso. Gandhi e Kasturba casaram muito cedo, num matrimônio arranjado. Ele tinha 13 anos e ela era ainda mais nova. Eles brigavam literalmente por causa de brinquedos (dizem). De qualquer forma, o próprio Gandhi, em seus escritos autobiográficos, sempre profundamente autocríticos, reconhece que era um marido imaturo e mesquinho nos primeiros anos de matrimônio. Em todo caso, a afirmação de que ele batia na esposa carece de fundamentos historiográficos, até onde vão meus conhecimentos.

Quanto à misoginia, vale lembrar que Gandhi sempre destacou a centralidade de sua mãe em sua formação moral e espiritual. Ela era uma mulher muito religiosa e devota, e deixou marcas indeléveis em sua personalidade nesse sentido. Ele tinha verdadeira veneração pela mãe, em sentido muito profundo. As palavras que escreveu sobre sua mãe dificilmente caracterizariam uma personalidade misógina. Em sentido mais amplo e genérico, em escritos públicos e privados, Gandhi falava sobre as mulheres de modo muito positivo, em sentidos inclusive espirituais. Ele considerava mesmo ter características de personalidade femininas muito desenvolvidas e afirmava que gostaria de reencarnar como mulher.

Por outro lado, a cultura hinduísta tinha (e ainda tem) posturas muito ambíguas acerca da mulher e de sua pureza, como salienta a antropóloga Mary Douglas. Cabe (ou cabia) à mulher, em grande medida, a preservação da pureza ritual de toda a família, em termos sexuais, alimentares, entre outros. Em grande medida isso estava ligado ao sistema de castas, cabendo à mulher preservar a família da contaminação de impurezas derivadas do contato com castas inferiores; esse importante papel, por outro lado, acarretava pesadas cobranças por parte da família e da sociedade, em diversos aspectos. É interessante notar aqui que Gandhi foi certamente o principal defensor, ao menos o mais visível e notório, da abolição legal do sistema de castas e isso provavelmente impactou direta e indiretamente na condição social e na vivência cotidiana das mulheres na Índia (mas aqui já estou conjecturando, nunca li nada explorando essa questão específica).

Ora, Ghandi foi educado numa cultura repleta de ambiguidades sobre a mulher e seus papeis sociais e, obviamente, algumas dessas ambiguidades se refletiriam em suas próprias posturas e atitudes pessoais. Para se ter uma ideia da complexidade do contexto em que ele nasceu e cresceu, oito anos antes de seu nascimento ainda se praticava a cremação de viúvas (vivas!) junto com seus falecidos maridos em algumas regiões da Índia. A lei permitindo um segundo casamento para viúvas datava de apenas 13 anos antes. 

Feitas todas as contas, o modo como ele se expressava acerca das mulheres era bastante "progressista" - se podemos dizer assim. Em tudo isso devemos ter sempre em mente que seus anos de formação universitária na Inglaterra e seu contato com a cultura ocidental tiveram grande importância para ele, um homem que viveu entre diversas encruzilhadas culturais e cujo pensamento e vida resultavam de uma complexa síntese entre todos esses díspares elementos. Durante seu período de estudante em terras britânicas Gandhi pôde conviver com o emergente movimento feminista.

Quanto aos polêmicos "testes de castidade" a  que o personagem se submeteu em alguns momentos de sua vida, é necessário destacar que o binômio sexualidade-castidade sempre foi complexo para Gandhi, devido a uma experiência traumática de sua juventude. 

Assim que casou (aos 13 anos, lembremos), o jovem Mohandas desenvolveu intensa compulsão sexual, um comportamento realmente obsessivo - conforme ele mesmo relata. Pouco tempo depois, seu pai caiu doente, em estado gravíssimo. Em certa noite ficou encarregado de tomar conta do pai acamado, mas no meio da madrugada sua compulsão sexual o assaltou de tal forma que, sentindo-se incapaz de resistir aos impulsos, foi para junto da jovem esposa para satisfazer seu desejo. Durante sua breve ausência, seu pai passou pela crise final e faleceu inteiramente sozinho, sem qualquer socorro. 

O jovem Gandhi, em seus 14 ou 15 anos de idade, naturalmente, se sentiu extremamente culpado, passando a partir daí a viver sua sexualidade de modo bastante conflituoso, lutando para obter controle sobre o impulso que o afastara do pai no leito de morte. Como hindu fervoroso que era, graças à influência materna, o caminho natural era que ele buscasse as respostas para sua incontinência sexual entre as possibilidades que a tradição hindu lhe oferecia - e, como se sabe, ao longo dos milênios, o hinduísmo desenvolveu diversas correntes ascéticas que, ainda hoje, exercem grande influência social.

Durante os anos seguintes, até a maturidade, Gandhi passou a desenvolver um rigoroso ascetismo alimentar - passou a simplificar cada vez mais sua alimentação (era vegetariano desde a infância), passando a evitar temperos e condimentos, reduzindo severamente sua ingestão diária de alimentos e praticando jejuns prolongados. Em certo momento, passando por uma crise depressiva, assumiu voto de silêncio, se abstendo de falar durante um dia inteiro por semana - hábito que manteve até o fim da vida. Finalmente, Gandhi fez votos de pobreza e se desfez de todos os seus bens materiais - segundo ele, as posses mundanas que mais dificultaram essa decisão foram seus preciosos livros, pois ele era dono de uma considerável biblioteca à qual se sentia muito apegado.

Um dos aspectos essenciais do ascetismo de Gandhi era ligado à noção de responsabilidade: o indivíduo precisava assumir as consequências de seus prazeres, fossem eles alimentares ou sexuais. Por exemplo, ele considerava uma atitude errada que uma pessoa se alimentasse excessivamente e depois tentasse escapar das consequências ingerindo medicamentos (nada de Engov!). 

Da mesma forma, sustentava que, estando a sexualidade diretamente ligada à procriação, o uso de métodos contraceptivos também seria uma forma de fugir das consequências da sexualidade. Vale notar que ele adotava essa conduta para si mesmo, mas não a impunha a ninguém como norma geral (embora não saibamos se sua esposa pensava da mesma forma). 

Devido a essa atitude, ele e Kasturba chegaram a ter muitos filhos (cerca de sete, se não me engano). A certa altura, ficou muito difícil equilibrar o sustento e o cuidado de uma família cada vez maior com uma vida pública que se tornava cada vez mais intensa. Para conciliar essas dificuldades, só lhe restavam duas opções: usar métodos contraceptivos (o que ia contra seus princípios) ou partir para a abstinência sexual integral (o que exigia controlar seus intensos impulsos genésicos). Sempre fiel a seus princípios, Gandhi ficou com a segunda opção, embora fosse certamente a mais difícil e a mais dolorosa para ele e para sua esposa. Muito se discute sobre essa decisão, afirmando-se que Gandhi a tomou unilateralmente, contra a vontade de Kasturba. Lendo e relendo seus escritos, não sei se é verdade; é fato que ele não enfatiza muito a participação da esposa nessa deliberação e não sei se existem registros mais precisos sobre a reação dela a essa decisão.

Mas a questão não se resume a esses aspectos pragmáticos, e fica ainda mais complexa. Em paralelo a toda essa trajetória, Gandhi, que desde criança sempre fora muito religioso e devoto, passou a desenvolver grande interesse pela experiência mística em sentido mais profundo. Durante muitos anos empreendeu intensas buscas existenciais, com leituras aprofundadas sobre Cristianismo, Islamismo, Teosofia, entre outros assuntos e vertentes religiosas. Os dois textos que desde esse momento se tornaram a base para sua vida pública e fundamento para suas concepções de Satyagraha e Ahimsa foram o Sermão do Monte e o Baghavad Gita

Durante esse período ele também se aproximou de diversos praticantes de correntes místicas do hinduísmo, com eles mantendo ativa correspondência. Resumindo muito, foi justamente a troca epistolar com um desses "gurus" (o qual, salienta Gandhi, era casado e não praticava abstinência sexual) que lhe despertou a ideia de que o amor matrimonial mais profundo exigiria abstinência sexual, à medida que a expectativa de retribuição e gratificação sexual emprestariam aos demais gestos de afeto, carinho e cuidado um viés interesseiro; apenas onde não houvesse expectativa de retribuição sexual o amor poderia ser plenamente espiritual e desinteressado - isso diz muito sobre como Gandhi vivenciava sua sexualidade, mas não vamos nos aprofundar nesse caminho.

Resumindo, seu trauma de juventude, sua situação familiar e suas experiências místicas acabaram conduzindo Gandhi, após muita hesitação, a fazer votos de "Brahmacharya". Normalmente traduzido como "castidade", Brahmacharya é uma noção muito antiga e passível de múltiplas interpretações e variadas práticas dentro do hinduísmo, do budismo e do jainismo. Não sou profundo entendedor do complexo assunto, e não me arrisco além dos meus limitados conhecimentos. 

Para todos os efeitos, em determinada altura da vida Gandhi se tornou um brahmachari. Os famosos e polêmicos "testes de castidade" aos quais Gandhi se submeteu em vários momentos de sua vida não eram uma maluquice ou uma esperteza tirada da sua cabeça; eles faziam parte de antigas práticas ligadas ao Brahmacharya, que já começavam a se tornar raras à época de Gandhi. 

Esses testes se davam com conhecimento público; Gandhi, como qualquer outro brahmachari, nunca os fez às escondidas, sorrateiramente. Como se sabe, o teste para o praticante da castidade consistia em passar uma noite inteira nu, deitado na companhia de uma ou mais mulheres nuas; durante essa prova, o praticante não deveria ter sequer uma ereção ou pensamentos "impuros". Vale ressaltar que as mulheres que participavam desse tipo de teste o faziam com pleno consentimento; algumas das que passaram por esse gênero de experiência com Gandhi eram casadas com amigos dele, inclusive. Enfim, me parece difícil caracterizar tal situação como "abuso sexual" ou algo semelhante.

Para nós, ocidentais, esse tipo de exercício místico pode soar como impostura ou hipocrisia, mas o fato é que existem inúmeras práticas similares, sempre com conotação sagrada, dentro do universo místico hinduísta; como bem discute Victor Turner, um dos maiores antropólogos do século XX, tais práticas "bizarras" fazem todo o sentido em seu universo cultural e religioso específico. 

Qualificar Gandhi como um pervertido aproveitador simplesmente por participar desse tipo de "teste", que não foi inventado por ele e fazia parte de um contexto cultural muito mais amplo é uma atitude etnocêntrica de nossa parte. Fato é que muitos de seus amigos e companheiros o criticaram por essas decisões e tentaram dissuadi-lo, temerosos das possíveis repercussões negativas que tais práticas poderiam atrair, arranhando a imagem de Gandhi e, por conseguinte, desacreditando o movimento político do qual fazia parte. 

Fosse como fosse, Gandhi seguiu em frente com essas práticas "exóticas", que acreditava serem necessárias a sua prática como brahmachari, sem se importar com suas eventuais consequências políticas. Tal postura, da parte de um homem que abandonou todas as suas posses materiais, que jamais hesitou em se deixar surrar violentamente sem reagir durante protestos, que passou vários anos de sua vida encarcerado e que enfrentou longos jejuns que o levaram à beira da morte pela causa da emancipação indiana, permite supor que esses "testes de castidade" eram para ele algo muito sério, um ato místico-religioso realizado com profunda sinceridade. Ao longo de sua vida ele ofereceu testemunhos muito concretos de sua seriedade diante da vida; Gandhi era o tipo de pessoa que botava seus bens, seu corpo e sua alma em jogo destemidamente.

Quanto aos resultados de tais "testes", segundo as mulheres que deles participavam, Gandhi teria conseguido se manter sexualmente impassível em todas as ocasiões. Podemos confiar no testemunho delas ou sentir-se-iam intimidadas a revelar a verdade pela projeção social do "Mahatma"? Impossível saber com absoluta certeza o que se passou efetivamente nessas noites misteriosas (que, por sinal, não foram muitas). De qualquer forma, o ônus da prova cabe a quem desconfia desses relatos - e não o contrário. Ainda que, hipoteticamente, em alguma dessas ocasiões Gandhi tenha eventualmente cedido a pensamentos "impuros", tido uma ereção ou mesmo chegado a manter intercurso sexual, ficaria provada apenas sua incapacidade de se manter impassível diante de tentações às quais a maioria dos homens sucumbiria - não significando necessariamente que ele teria agido de modo desonesto e astucioso desde o começo. 

Usar isso para desqualificar toda a trajetória de Gandhi me parece intelectualmente desonesto. Eu, particularmente, acredito que ele teria possibilidades muito mais simples de manter relações sexuais ou cometer adultério às escondidas, através de subterfúgios variados, que inventando uma elaboradíssima e arriscada desculpa místico-religiosa EM PÚBLICO. Me parece pouco verossímil imaginar um homem que se desfaz de todos os seus bens, se entrega à pobreza, entrega seu corpo aos golpes do inimigo, se deixa encarcerar para depois inventar pífias desculpas para se entregar, por umas poucas horas, aos prazeres da carne, sabendo as repercussões daninhas que isso poderia trazer à sua reputação e, ainda mais importante, à obra de toda uma vida de pungentes sacrifícios - uma obra que ele sabia ser muito maior que ele mesmo. 

Em suma, Gandhi é uma das personalidades mais complexas, paradoxais, desconcertantes e fascinantes do século XX. Quaisquer que fossem suas falhas e limitações enquanto ser humano, ele deixou um rico e importante legado de pensamento e ação para a humanidade, fundamentada numa criativa síntese de linhagens intelectuais e religiosas do mundo inteiro. O belíssimo Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos é um dos frutos nascidos de sua semeadura, como sempre destacou Martin Luther King. 

Gandhi é uma figura histórica que deveríamos avaliar com toda a generosidade, e não buscando encontrar (ou mesmo inventar) fissuras com as quais derrubar tudo que ele nos deixou.

Gandhi em um de seus inúmeros jejuns político-religiosos, com que tantas vezes desafiou as autoridades britânicas ou apaziguou os ânimos dos indianos excessivamente revoltados.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Ecos da Revolução Francesa

Lembranças do filósofo dinamarquês Henrik Steffens sobre a chegada em Copenhague das primeiras notícias da tomada da Bastilha, em Paris, em 1789.

Eu tinha dezesseis anos. Meu pai retorna ao lar fora de si; ele chama seus filhos: "Meus filhos, vocês têm sorte! - grita ele - Que dias felizes e brilhantes se levantam para vocês! Agora, se cada um de vocês não criar uma posição independente, reclamem apenas de si mesmos. Todas as barreiras do nascimento e da pobreza cairão; doravante, o último entre vocês poderá lutar contra o mais poderoso com armas iguais e no mesmo terreno!" Ele parou, vencido pela emoção, e se pôs a chorar por alguns instantes. Depois ele nos contou como a Bastilha fora tomada e as vítimas do despotismo libertadas. Não era apenas na França que uma revolução começava, era em toda a Europa. Ela deitava suas raízes em milhões de almas.

Folheto da época com gravura da tomada da Bastilha, acompanhada de narrativa e versos.

sábado, 16 de novembro de 2019

"There and back again"

"Deste modo, há povoadores que, por mais arraigados que estejam à terra, pretendem levar tudo para Portugal, porque tudo o que querem é para lá, e isto não vale apenas para os que de lá vieram como também para os que aqui nasceram, pois tanto uns quanto os outros aproveitavam a terra, não como senhores, senão como usufrutuários, e só para desfrutá-la, e por isso deixam-na destruída".
Frei Vicente Salvador

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Quem pode ser índio?

"O Estado [brasileiro] diz para o índio: se você é incapaz e vive na floresta, então eu protejo você; se você recebe educação e mora na cidade, então você se torna brasileiro, e não tem mais direito à sua cultura ou ao seu território".
Azelene Kangiang, socióloga indígena

Há muito mais índios entre o Oiapoque e o Chuí do que suspeitam nossos vãos preconceitos...

Jesus Andino

"É inconcebível que no século XXI, Deus ainda tenha que ser definido de acordo com padrões europeus... Nós pensamos que a vida de Jesus é a Grande Luz vinda de Inti Yaya (Luz Paternal e Maternal que sustenta todos nós), cujo objetivo é deter qualquer coisa que não nos deixe viver em justiça e fraternidade entre seres humanos e em harmonia com a Mãe Natureza... O papa devia notar que nossas religiões NUNCA MORRERAM, nós aprendemos como fundir nossas crenças e símbolos com aqueles de nossos invasores e opressores".
Humberto Cholango - Em documento endereçado a Bento XVI pela Confederação dos Povos de Nacionalidade Kichwa do Equador (Maio de 2007)

Clarinero nas celebrações de Corpus Christi (Cajamarca, 2019)

Comemorações de Corpus Christi (Cusco, 2019)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Torcida

Há gente que há de torcer para o caçador, assistindo "Bambi"...

E para o trooper, assistindo Star Wars...

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Abolição como Apocalipse

"A instituição da escravidão é o maior interesse material do mundo. Seu trabalho fornece os produtos que, de longe, constituem as maiores e mais importantes porções do comércio da Terra. Esses produtos são peculiares aos climas próximos das regiões tropicais, e por uma imperiosa lei da natureza, apenas a raça negra pode suportar a exposição ao sol tropical. Esses produtos se tornaram necessidades do mundo, e ferir a escravidão é ferir o comércio e a civilização".
Declaração de Secessão do Estado do Mississipi, 1861


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Pensadores e ideólogos

A diferença entre o pensador e o ideólogo é que o pensador busca humildemente a verdade, enquanto o ideólogo busca apenas convencer terceiros sobre a inquestionável verdade que ele supõe possuir. O pensador procura assenhorear-se de si mesmo, enquanto o ideólogo deseja apenas dominar a consciência alheia. Um cultiva reflexões laboriosamente, enquanto o outro fabrica sofismas compulsivamente. O primeiro almeja a liberdade intelectual, enquanto o outro visa apenas os servis aplausos de sua própria claque. O pensador fala ao mundo e às eras, mas o ideólogo prega apenas para sua tribo. É por isso que o genuíno pensador transpõe limites, enquanto o ideólogo ergue barreiras.

Seu Madruga, um dos maiores pensadores do século XX

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

"Coringa" - Breves impressões

Como ando muito ocupado me falta tempo para um comentário de fôlego acerca do novo e brilhante "Coringa"; deixo aqui breves notas, aguardando tempo para escrever algo mais aprofundado.

AVISO: CONTÉM SPOILERS

- Gostei e não gostei do filme. Achei impecável enquanto arte cinematográfica e Joaquín Phoenix atua com virtuosismo, mas não consigo ver o Coringa ali. É um personagem parecido com o Coringa, que se chama Coringa, mas não é o Coringa (um tanto como os sucos do Chaves). O personagem não tem agência, sua postura é notavelmente passiva, ele só reage ao que acontece - me parece que isso descaracteriza demais o Coringa, mesmo se tratando de um filme "de origem".

-Tendo a discordar das análises muito "politizadas" do filme. A obra tem dimensões de crítica social e política, mas me parece muito mais complexa que isso. O próprio Coringa afirma mais de uma vez que não liga para política - esse dado não é irrelevante, pois os atos do Coringa não se querem políticos; os demais personagens é que se apropriam politicamente desses atos, em apoio ou oposição. Creio que o mesmo vale para as apropriações do público sobre a mensagem da obra cinematográfica. Acho que o filme atira para todos os lados, e não consigo ver sua mensagem como propriamente "esquerdista" ou "direitista". Thomas Wayne e os ricos decerto são apresentados de maneira antipática, mas olhando com atenção, os "movimentos sociais" da ficção - inspirados por um múltiplo assassinato e compostos por uma multidão acéfala sob o absurdo slogan "kill the rich" - não me parecem tampouco enaltecidos pela direção do filme. De resto, a película adota uma estética visual formalmente realista, mas a narrativa joga com muitas camadas de delírio (o duplo delírio do Coringa e de sua mãe), o que confere a todo o resto certo caráter emblemático ou alegórico, mais conotativo que denotativo, por assim dizer. As críticas sociais e políticas do filme são apresentadas com grande sutileza e é com igual sutileza que precisam ser interpretadas.

-Eu diria que o tema central da obra é, sobretudo, loucura versus "normalidade". O Coringa é um doente numa sociedade doente, cuja aparente "normalidade" é, em verdade, doentia. O descaso das autoridades e das elites para com os cidadãos de Gotham é patológico.  Os "movimentos sociais", tal como retratados, também são doentes e parte da patologia coletiva - são loucura inspirada por um louco.

-No começo do filme, "Arthur Fleck" não é vítima dos ricos, mas de uma gangue de garotos latinos, levando um sujeito "normal" a oferecer uma arma a um paciente psiquiátrico para ele "se defender"; depois que as coisas dão errado, esse mesmo sujeito "normal" simplesmente lava as mãos, como se não tivesse qualquer responsabilidade.A obra retrata uma sociedade profundamente adoecida,  conflagrada. Coringa reflete essa doença e a sociedade reflete a doença do Coringa, num jogo de espelhamentos.

-Achei fantástico o uso do lixo como alegoria, aludindo às grandes greves de lixeiros dos EUA nos anos 70 e 80. A sociedade não consegue lidar com seu próprio lixo - material e moral - e os ratos proliferam. Ratos como o Coringa, Thomas Wayne ou os manifestantes-palhaços. Por fim, a discreta alusão humorística do apresentador Murray Franklin à necessidade de "super-gatos" para combater a infestação de ratos me parece um interessante comentário metalinguístico sobre o próprio gênero ficcional de super-heróis.

-O passado da família Wayne é objeto de constantes, sensacionalistas e desnecessárias revisões nos quadrinhos. No caso específico do filme, não gostei da ideia de retratar o assassinato de Thomas e Martha Wayne como um crime político - o que retira ou perverte boa parte do significado da futura cruzada de Bruce Wayne contra o crime. Enfim, o assassinato dos Wayne como ato político esvazia completamente a figura do Batman. Não gosto da versão de Tim Burton, em que os Wayne são assassinados por um jovem "Jack Napier", futuro Coringa, mas ao menos faz mais sentido; Napier seria apenas um assaltante de rua.

-Um detalhe me pareceu espetacular, de uma deliciosa ironia: a versão de Zorro que os Wayne assistem antes do assassinato é justamente "Zorro - The Gay Blade"... remetendo (conscientemente ou não) às paranoias do Dr. Frederick Wertham sobre os quadrinhos e à persistente brincadeira popular sobre a sexualidade de Batman e Robin.

-Achei o filme muito pesado e tenho experiências e relatos de que fez muito mal a alguns pacientes psiquiátricos. Me parece um tanto leviano produzir uma obra com tintas tão carregadas para um público de milhões de espectadores. Obviamente não quero aqui advogar qualquer tipo de censura ou sequer autocensura, mas concordo com João Caetano quando dizia que o artista deve ter certo comedimento ao manipular as emoções do público. A arte pode tanger fibras muito sutis da alma humana e isso exige algum tipo de responsabilidade.


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Minha "utopia"

Como socialista não-marxista que sou (desde os 13 anos de idade) e radical defensor da democracia, a sociedade em que eu gostaria de viver seria algo como um republicanismo plural, onde ideias socialistas, liberais e conservadoras pudessem dialogar de modo  mutuamente respeitoso, pacífico e construtivo, com uma economia de mercado não-capitalista. 

Infelizmente muitos socialistas confundem socialismo com estatismo ilimitado e economia planificada. Por outro lado, um dos grandes problemas da economia de mercado capitalista é sua forte, talvez inexorável, tendência à formação de oligopólios. Numa economia saudável e diversificada seriam necessárias empresas de portes e modelos variados: empreendimentos familiares, pequenas e grandes cooperativas, algumas empresas de médio e grande porte, públicas ou privadas - todas elas regulamentadas por leis cuidadosamente balanceadas, salvaguardadas por mecanismos de fiscalização tão transparentes quanto possível.

Em suma, gostaria de ver um Mercado forte e dinâmico, devidamente vigiado (mas não controlado) por um Estado ainda mais forte, plural e democrático, ciosamente controlado por uma Sociedade Civil politicamente mobilizada e participativa, vigorosamente ativa, com ampla consciência cívica e profundo compromisso com o bem-estar da coletividade.

Mas como nosso Brasil anda longe disso...!

(Reflexão dialeticamente partejada conversando com o filósofo conservador Thales de Oliveira).


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Toda Esperança

A esmagadora maioria dos brasileiros que visita o Velho Mundo inventa uma Europa que não existe, tão ansiosos estão para "ver" um Anti-Brasil. Se iludem como aqueles europeus de outrora, desejosos de encontrar o Éden no Novo Mundo. O Paraíso fica sempre do outro lado. "Lasciate ogni speranza".

Gravura de Gustave Doré para a Divina Comédia de Dante

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Amor Cristão

"Uma vez que tínhamos a bandeira da cruz e lutávamos por nossa fé e pelo serviço de nossa sagrada majestade, Deus concedeu-nos tal vitória e matamos muitas pessoas".
Cortés

"Quem poderá negar que utilizar pólvora contra os pagãos é como queimar incenso para Nosso Senhor?"
Oviedo


Hermenêutica bíblica à moda colonial: "índio bom é índio morto".

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Revelações

Aluno: Professor, o nome do Didi não é Didi Mocó?

Professor: Sim: Didi Mocó Sonrisepe Colesterol Novalgino Mufumbo.

Aluno (para o colega): Viu, não falei que o verdadeiro nome dele era Didi Mocó?

Professor: Na verdade... O nome do ator é Renato Aragão... Didi é apenas o nome do personagem que ele fazia...

Alunos (extremamente surpresos): SÉRIO?!?!?!


quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Realidade diminuída

Toda técnica oferece oportunidades e riscos. Um dos grandes perigos das tecnologias de realidade aumentada é sobrecarregar seus usuários com tamanho volume de informações em regime imediato que as próprias coisas sobre as quais se informa percam significado, tornando-se meros dados entre outros, e outros e outros...

Em lugar de "aumentar" a realidade, esta seria cada vez mais diminuída, reduzida a mero apêndice dos simulacros tecnológicos que a "informariam", ininterrupta e sutilmente ocultando coisas atrás de nomes, territórios atrás de mapas, pratos atrás de receitas, prédios atrás de plantas, dias atrás de calendários, espécimes atrás de espécies, enfim, significados atrás de signos. Pela intensiva sobreposição de uma artificiosa transparência, tornaria tudo mais e mais opaco. Seu uso indiscriminado sufocaria a singularidade por excesso de identificação. Seu uso constante soterraria o momento sob uma opressiva sincronia. Seu uso ingênuo trocaria a fruição por uma ilusória cognição.

Sem o devido cuidado, o usuário correria o risco de ficar na posição do cavalo cujos antolhos direcionam a visão...




Educação formal


terça-feira, 8 de outubro de 2019

Ó, musas cruéis! Por que me visitais em plena madrugada? Acaso não teríeis recreações mais agradáveis no Parnaso? É por tédio que vindes perturbar meu sono?

sábado, 5 de outubro de 2019

Nymphe sur le toit

Une nymphe danse sur le toit
La pluie danse avec la nymphe
Le mage contemple
Il est aveugle
Il est sourd
Il est muet
Il est seul
La nymphe provoque la pluie?
Est-ce la pluie qui attire la nymphe?
Y-a-t-il pluie sans nymphe?
Y-a-t-il nymphe sans pluie?
Qui sait?
Le mage contemple
Il voit sans regarder
Il entend sans écouter
Il dit sans parler
Il chante le silence
Nymphe, pluie,
Elles dansent, elles dansent...
Nuit d'orage et mystère...


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Qualquer escritor com problemas para condensar um texto deveria rezar para São Gerúndio.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Imperdoável

Nosso atual presidente tem uma longa lista de defeitos, mas o mais intolerável, sem dúvida, é a cafonice de sua oratória. As falas proferidas por esse cavalheiro são difíceis de ler e ainda mais duras de ouvir. Tirania por tirania, que ao menos tivesse alguma elegância: nada pior que um tirano brega. Entendo que ele seja favorável à tortura, mas podia ao menos poupar a língua de Camões...


Arte e Método

Os grandes artistas alcançam pela intuição aquilo que os intelectuais só conquistam ao preço de laborioso e metódico estudo. Em seu êxtase, o poeta sonha plenamente com aquilo que o estudioso apenas vislumbra. Guiado pelas musas, num relance o artista contempla o mundo inteiro refletido nas profundezas de sua alma.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Nada em excesso

Há que se evitar todos os extremismos. Como recomendava Epícuro, convém ser moderado até com a moderação.
A indiferença dos inimigos deve ser o pior dos tormentos para aquele que odeia.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Colecionando vexames - Bolsonaro na ONU

Bolsonaro fez sua estreia internacional em Davos. Ofereceu à audiência um discurso pífio, tanto pela brevidade quanto pela superficialidade; esquecendo que falava a investidores, e não a eleitores, mirou a plateia errada.

Hoje, na ONU, cometeu o mesmo tipo de equívoco. O discurso de hoje deveria tomar por alvo a comunidade internacional, mas Bolsonaro, mais uma vez, preferiu falar a seu eleitorado cativo.

Olhando retrospectivamente, a brevidade de seu pronunciamento em Davos parece uma virtude. Hoje o presidente apresentou uma peça de oratória longa, piegas, enfadonha e ridícula, talhada ao duvidoso gosto de sua claque, mas que provavelmente encontrou pouca ressonância perante a comunidade internacional.

Boa parte da fala se ocupou da velha paranoia a respeito dos médicos cubanos, do Foro de São Paulo e da ameaça socialista. Num delirante arroubo, o presidente afirmou salvar o Brasil do socialismo - talvez soasse convincente na época da Guerra Fria; hoje parece apenas anacrônica miragem macartista, pouco capaz de despertar simpatia diante dos diplomatas e governantes presentes.

As peremptórias bravatas sobre a soberania nacional brasileira e o "colonialismo" estrangeiro, tingidas com a paranoia conspiratória sobre o "globalismo" certamente soaram para a maior parte da audiência internacional como gritos quixotescos contra moinhos de vento. Certa passagem foi particularmente pitoresca em sua pieguice: "Esta não é a Organização do Interesse Global!É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer!"

As tépidas declarações de compromisso com os direitos humanos e com a proteção ambiental tampouco devem ter convencido muita gente, dado o menosprezo com que Bolsonaro sempre tratou essas temáticas.

O tom ostensivamente religioso de certas passagens certamente é caro a parcelas do eleitorado brasileiro, mas deve ter causado estranhamento e antipatia a muitos ouvintes estrangeiros.

As falas acerca das populações indígenas, para além de absurdas em inúmeros detalhes, ganham contornos grotescos no tom de ataque pessoal ao cacique Raoni, que Bolsonaro deveria tratar respeitosamente ao menos em função da idade. Roupa suja se lava em casa, e não é nada elegante ou cortês que um presidente vá a uma tribuna internacional para falar dessa maneira de qualquer cidadão de seu próprio país, ainda mais de uma figura pública reconhecida e respeitada por indígenas de inúmeras etnias.

Igualmente lastimáveis foram as pueris farpas endereçadas a Macron e à Europa e estéreis os servis afagos a Trump e Israel, testemunhando uma lamentável estreiteza de vistas. A arte da diplomacia, quando bem praticada, consiste em desfazer tensões e granjear simpatias; a intervenção de hoje tende ao oposto disso.

Esses foram apenas alguns dos disparates mais dignos de nota dessa nova fala presidencial que em nada ajudou os interesses internacionais do povo brasileiro. O discurso de Bolsonaro provavelmente não abriu nenhuma porta e é mesmo possível que tenha fechado outras.

Em suma, hoje foi um triste dia para a arte de Demóstenes e Cícero, tanto quanto para a pátria de Ruy Barbosa.


quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Do you...?

O primeiro grande problema da classe média brasileira é que ela não sabe inglês.

O segundo grande problema da classe média brasileira é que ela só sabe inglês.

O terceiro grande problema da classe média brasileira é que ela mal sabe inglês.

O quarto grande problema da classe média brasileira é que ela acha que sabe inglês.


Sugestão de placa para o desembarque do Galeão


Transformação

Não existe transformação que não seja uma emergência, uma atualização de potências. Nesse sentido, toda transformação é também eliminação de possibilidades, ou ao menos alteração de probabilidades. As transformações mais intensas seriam aquelas que alterassem mais profunda e extensamente a ordem das probabilidades. Talvez haja aí um caminho promissor para se pensar as sempre escorregadias relações entre evento e estrutura.