Newsletter

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Oficina de Clio - Newsletter

Inscreva-se na newsletter para receber em seu e-mail as novidades da Oficina de Clio!

Nous utilisons Sendinblue en tant que plateforme marketing. En soumettant ce formulaire, vous reconnaissez que les informations que vous allez fournir seront transmises à Sendinblue en sa qualité de processeur de données; et ce conformément à ses conditions générales d'utilisation.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Insegurança como virtude

Extrato de Iludidos pelo acaso, de Nassim Nicholas Taleb

Acredito que o ativo mais importante que preciso proteger e cultivar é minha arraigada insegurança intelectual. Meu lema é: "minha principal atividade é provocar aqueles que se levam a sério demais e levam o valor do seu conhecimento a sério demais". Cultivar essa insegurança no lugar de uma confiança intelectual talvez seja um objetivo estranho - e difícil de executar. Para tanto, precisamos limpar nossa mente da tradição recente de certezas intelectuais. Uma leitora que se transformou em minha correspondente me fez redescobrir Montaigne, o ensaísta francês e profissional introspectivo do século XVI. Fui absorvido pelas implicações da diferença entre Montaigne e Descartes - e por como nos desviamos procurando pelas certezas deste último. Fechamos a mente ao optar por seguir o modelo de pensamento formal de Descartes em vez da variedade vaga e informal (mas crítica) do raciocínio de Montaigne. Meio milênio depois, o gravemente introspectivo e inseguro Montaigne ainda figura como firme exemplo para o pensador moderno. Ademais, ele apresentava uma coragem excepcional: sem dúvida é preciso ter coragem para permanecer cético; é necessária uma coragem desmedida para ser introspectivo, para enfrentar a si mesmo, para aceitar as próprias limitações - os cientistas encontram cada vez mais evidências de que somos especificamente projetados pela mãe natureza para nos enganarmos.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Tantos Mundos

Extrato de Ideia para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak

Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu? Houve um tempo em que o planeta que chamamos Terra juntava os continentes todos numa grande Pangeia. Se olhássemos lá de cima do céu, tiraríamos uma fotografia completamente diferente do globo. Quem sabe se, quando o astronauta Iuri Gagárin disse "a Terra é azul", ele não fez um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós pensamos ser. Ele olhou com o nosso olho, viu o que a gente queria ver. Existe muita coisa que se aproxima mais daquilo que pretendemos ver do que se podia constatar se juntássemos as duas imagens: a que você pensa e a que você tem. Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, por que é que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui? O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, ideia do que é humano. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno.

Essa configuração mental é mais do que uma ideologia, é uma construção do imaginário coletivo - várias gerações se sucedendo, camadas de desejos, projeções, visões, períodos inteiros de ciclos de vida dos nossos ancestrais que herdamos e fomos burilando, retocando, até chegar à imagem com a qual nos sentimos identificados. É como se tivéssemos feito um photoshop na memória coletiva planetária, entre a tripulação e a nave, onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica parecendo uma coisa indissociável. É como parar numa memória confortável, agradável, de nós próprios, por exemplo, mamando no colo da nossa mãe: uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa, nos alimentando forever. Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca. Aí a gente dá uma babada, olha em volta, reclama porque não está vendo o seio da mãe, não está vendo aquele organismo materno alimentando toda a nossa gana de vida, e a gente começa a estremecer, a achar que aquilo não é mesmo o melhor dos mundos, que o mundo está acabando e a gente vai cair em algum lugar. Mas a gente não vai cair em lugar nenhum, de repente o que a mãe fez foi dar uma viradinha para pegar um sol, mas como estávamos tão acostumados, a gente só quer mamar.

Viva, a Terra vive...

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

"Estamos revivendo o início da modernidade, mas no lugar do ceticismo temos a burrice".

Maryam Daychoum, antropóloga

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Vozes da Terra

Extrato de  Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak

O nome krenak é constituído por dois termos: um é a primeira partícula, kre, que significa cabeça, a outra, nak, que significa terra. Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como "cabeça da terra", como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra. Não a terra como um sítio, mas como esse lugar que todos compartilhamos, e do qual nós, os Krenak, nos sentimos cada vez mais desarraigados - desse lugar que para nós sempre foi sagrado, mas que percebemos que nossos vizinhos têm quase vergonha de admitir que pode ser visto assim. Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: "Isso é algum folclore deles"; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: "Não, uma montanha não fala nada".

Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos".

"Não, uma montanha não fala nada"...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Da decência em tempos indecentes


Tudo é "macumba"



Este cartum me lembrou meus alunos que chamam mitologia grega, entre outras coisas, de "macumba". Depois de alguns anos cheguei à conclusão que, para muitos deles, "macumba" não tinha a ver especificamente com as religiões afro-brasileiras, é uma categoria genérica para qualquer coisa não-cristã.


Certa vez uma amiga evangélica fez uma encomenda de artesanato com minha esposa, uma plaquinha para botar na porta do novo apartamento, com aquela passagem famosa de Josué, "Eu e minha família serviremos ao Senhor". 


Minha esposa foi pegar o versículo na Bíblia de Jerusalém e lá estava "Yahweh", em vez de "Senhor". Nossa amiga estranhou. Priscila explicou que Yahweh é o Deus judaico-cristão. 

A amiga respondeu: "Só se for o Deus da Macumba!" No fim, a plaquinha acabou ficando com a versão Ferreira de Almeida, "Senhor". Fica a questão: será que a Bíblia de Jerusalém é a "Bíblia da Macumba"?


Parafraseando Eduardo Viveiros de Castro: "No Brasil, tudo é macumba, exceto o que não é"...

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Revolução à brasileira

Trecho de Euclidiana - Ensaios sobre Euclides da Cunha, de Walnice Nogueira Galvão [grifos meus]

"O positivismo se casava tão conaturalmente com o abolicionismo e o republicanismo que o lema da nova bandeira vai ser, como é até hoje, Ordem e Progresso. Benjamin Constant pregava que o soldado deveria ser antes de tudo um cidadão armado, com uma missão ao mesmo tempo civilizatória, humanitária e moral. Esses princípios viriam mais tarde a se institucionalizar na reforma da Escola Militar, de que foi autor, em 1900. Ora, tal concepção tinha sido uma criação da Revolução Francesa, só que ao contrário: eram os cidadãos que tinham se armado para propagar os ideais revolucionários pelo mundo, para civilizar o mundo ainda oprimido pelo Antigo Regime, e não para militarizá-lo. Estava pronto para ser usado - como de fato o foi, até para legitimar a chacina dos pobres em Canudos - o mito da Revolução Francesa à moda da casa".

Sargento Pincel - exemplo de cidadão armado em missão civilizatória, humanitária e moral.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

 A razão iluminista é o berço da cidania e da democracia modernas, mas ninguém vive para sempre no berço.

(Parafraseando Tsiolkovsky, um dos fundadores da Astronáutica)

Controle incontrolável

"Nosso próprio controle parece escapar do nosso controle. Como podemos dominar nossa dominação?"
Michel Serres

"Quem vigia os vigilantes?"

terça-feira, 10 de novembro de 2020

5 motivos para votar em Martha Rocha

Serei bem honesto e apresentarei argumentos que me parecem razoáveis. Martha Rocha não é a candidata de meus sonhos, mas é nela que votarei, pelas seguintes razões:


1) A política, como se sabe, é a "arte do possível". Na conjuntura crítica que vivemos no Rio de Janeiro, não me parece cabível votar simplesmente para "marcar posição". A bem dizer, nenhuma das candidaturas presentes me agrada plenamente, mas se faz necessário apostar em uma candidatura viável, capaz de enfrentar Paes ou Crivella no segundo turno.


2) Já passamos oito anos com Paes e quatro com Crivella - doze anos desastrosos, com investimentos injustificáveis para eventos efêmeros como a Copa e as Olimpíadas, seguidos por uma administração ineficaz, cujo "feito" mais visível é a mortandade pandêmica por gestão sanitária de competência duvidosa. Não faz qualquer sentido passar mais quatro anos com qualquer deles dois. Precisamos dar chance a alguém novo no cargo.


3) O programa de governo de Martha Rocha está longe de ser perfeito (mesmo porque a perfeição não é deste mundo), mas me parece consistente e viável. Sua trajetória política pregressa não me parece brilhante, mas tampouco repugnante. Depois de doze anos castigado por Paes e Crivella, o Rio não precisa de uma gestão maravilhosa, apenas de um mandato suficientemente bom para recuperar os estragos passados e entregar a cidade um pouco melhor em 2024. Como se diz, o ótimo é inimigo do bom - e a simples perspectiva do bom já parece ótima diante de tudo que temos passado.


4) Sem entrar nos méritos e deméritos pessoais de Benedita da Silva, Renata Souza ou Bandeira de Mello, me parecem candidaturas com poucas chances de passar para o segundo-turno ou de vencê-lo. A candidatura de Benedita me parece particularmente problemática, pois se trata de "figurinha carimbada" na política fluminense, com alto índice de rejeição. Além disso, o próprio PT também se encontra em seu pior momento eleitoral, com elevadíssimos índices de rejeição. Levar Benedita ao segundo turno, tendo a crer, é conceder vitória certa a seu opositor. Martha Rocha, ao contrário, é figura menos desgastada, com baixo índice de rejeição, o que torna possível, e até provável, que derrote Paes ou Crivella no segundo turno.


5) Votar em Martha Rocha não significa conceder carta branca à candidata. A cidadania não acaba nas urnas. É necessário acompanhar e cobrar. Votarei nela, mas, caso eleita, estarei entre os primeiros a criticar quaisquer medidas que me pareçam inadequadas. O exercício da cidadania implica sempre na vigilância dos mandatários eleitos.


NOTA ADICIONAL

Para vereador, pretendo votar novamente em Tarcísio Motta, que já elegi em 2016. Acompanho de perto e estou muito satisfeito com a atuação de Motta no legislativo carioca. Tem atuado de modo competente na Comissão de Educação e também desempenhou papel relevante na CPI das Enchentes e na CPI dos Ônibus - nas quais, infelizmente, ficou isolado. Não sou militante partidário, e tenho várias ressalvas quanto ao conjunto da bancada do PSOL na Câmara dos Vereadores, mas acho que realizaram um papel importante de oposição aos desmandos do Poder Executivo nos quatro anos. Quero crer que Tarcísio e seus colegas de bancada realizarão um bom trabalho, independentemente de qual prefeitável venha a ser eleito. E, da mesma forma, cabe cobrar de nossos vereadores eleitos que também cumpram seu papel da melhor maneira possível.




quarta-feira, 4 de novembro de 2020

 Mais um aforismo do romancista R. Watzl

“O momento mais perigoso da vida de um homem acontece quando ele começa a obter algumas vitórias sobre si próprio”.

Bad taste

BART - Pai, desliga esse rádio ou muda de estação!
HOMER - Mas, Bart, esses são os grandes clássicos do Rock!
BART - Pai, nós somos a geração com o PIOR GOSTO MUSICAL DA HISTÓRIA!!!

Sem falar na cafonice dos figurinos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Velho Mundo


Busca e Utopia

Reflexão do romancista Rodrigo Watzl


Eu não diria que, por si, a busca da utopia conduza a regimes políticos autoritários. 

Eu diria que quando alguém se arroga o direito de dizer que a utopia foi alcançada - além de ser uma contradição em termos - há grande chance de estarmos em uma ditadura.

A utopia é algo que, se acontecer, não o será por meio de um projeto politico deliberado, mas por lenta transformação pessoal, no Reino das Consciências...




quarta-feira, 21 de outubro de 2020

domingo, 18 de outubro de 2020

Remando para Caronte

Uma amiga médica, teve COVID em maio - essa semana testou positivo DE NOVO.  Encaminharam o caso dela para estudos. As reinfecções estão acontecendo. Centenas de crianças ao redor do mundo vêm manifestando uma síndrome inflamatória que deveria ser rara, mas tem ocorrido associada à infecção viral, muitas vezes resultando em óbito. 


Semana passada, segundo li no último boletim epidemiológico da OMS, foi a semana com mais óbitos registrados no mundo desde o início da pandemia, cerca de 50% dos quais na América, com EUA, Brasil e Argentina liderando. O número de casos registrados nas Américas segue subindo há um mês, com um salto na última semana. Outra coisa que me entristeceu muito nesse último boletim foi a estatística (até bastante óbvia) de que até agora as categorias profissionais com maior número de óbitos são as da área da Saúde. 


A situação está cada vez pior, mas os cidadãos, e mesmo os órgãos governamentais, agem como se fosse o contrário. Parece que todo mundo resolveu tocar a vida de volta à "normalidade", com máscara e álcool gel, "morra quem morrer", como disse um prefeito por aí, não lembro bem onde. 


A dura realidade, me parece, é que nossa sociedade hedonista e consumista resolveu remar na barca de Caronte, "sem medo de ser feliz". Olho para isso tudo como uma grande tragédia moral, nosso atestado de falência civilizacional. 


É um tipo de "banalização do mal" comparável àquele experimentado sob o Nazismo. Já ultrapassamos um milhão de mortes ao redor do mundo - e ainda não terminou a tragédia.  Estamos coletivamente lavando nossas mãos diante do Holocausto Pandêmico, indiferentes e bestializados. 


Fica cada vez mais evidente que lucro e prazer nos importam mais que vidas - "morra quem morrer". Diante de tanta insanidade, quem parece louco é quem está cumprindo a quarentena, preservando as vidas de suas famílias e poupando a coletividade de riscos desnecessários. Realmente, como dizem, é difícil viver decentemente em tempos indecentes.




quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Para quem sabe enxergar as ausências, há poucas coisas tão belas quanto uma gaiola vazia. Diante dela, ouvidos apurados conseguem escutar o mais canoro dos silêncios.


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Para encontrar palavras profundas é necessário cultivar o silêncio. O verbo altissonante nasce das entranhas do abismo.


quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Qual era realmente o problema do comunismo?

Tradução do interessante relato de Viktor T. Toth, profissional de TI, físico em “meio período”

Como cresci em um país comunista, a Hungria do “comunismo goulash”, me sinto inclinado a oferecer meus pensamentos, apersar do fato de que já há algumas excelentes respostas aqui [no site], como a de Dima Vorobiev. Debato comigo mesmo se posto ou não esta resposta, pois será longa, tortuosa e bastante pessoal. Todavia... talvez seja útil. Em todo caso, vocês estão avisados.

Antes de chegar aos problemas com o comunismo, permitam-me apontar as poucas coisas que eram bem feitas. Essas são as coisas que tornam um monte de pessoas nostálgicas pelo comunismo.

A Hungria do “comunismo goulash” em que nasci no início dos anos 60 não era um lugar desagradável, certamente. Os dias de terror comunista linha dura tinham passado. O regime stalinista de Rákosi tinha sido deposto em 1956, e as retaliações do regime de Kádár terminaram por volta de 1962, quando muitos prisioneiros políticos foram libertados. No tempo em que me tornara consciente do mundo ao meu redor, no jardim-de-infância, o medo não era mais um fator na vida cotidiana.

Tampouco pobreza ou privação. Não, não éramos ricos. Mas não víamos mendigos nas ruas. Até o fim dos anos 60 não era incomum ver, por exemplo, viúvas da guerra (centenas de milhares de soldados húngaros morreram, lutando principalmente do lado de Hitler na II Guerra), licenciadas pelo todo-poderoso Estado totalitário, operando barraquinhas de cigarros ou de legumes ou similares, ganhando a vida nas ruas; mas mendigos de verdade? Não me lembro de jamais ter visto algum. Nem havia filas na vida diária. Ocasionalmente, é claro, quando alguma loja de hortifruti tinha recebido um carregamento inesperado de bananas ou outras comidas de luxo. Mas se tudo que você quisesse fosse simplesmente um pão, leite, manteiga, algumas fatias de mortadela, talvez legumes da estação ou uma maçã... tudo isso era abundante, facilmente disponível até nas menores cidades.

Crimes eram raros. Você podia andar pelas ruas mal iluminadas de Budapeste até tarde da noite. Crime organizado, particularmente, não existia – minha opinião é que um regime cuja própria natureza era criminosa, para começo de conversa, não tolerava competição.

A educação pública funcionava bem. Claro, aulas de História, especialmente quando se tratava do período posterior à Revolução Industrial, era manchado com o dogma Marxista-Leninista, e por alguma razão, aulas de língua estrangeira eram fracas em todo lugar, ao menos baseado em evidência anedótica que ouvi e minha experiência pessoal, mas havia escolas, elas eram funcionais, e até o ensino superior era gratuito; ou você passava nas provas ou você estava fora, mas dinheiro não comprava um diploma.

A saúde pública funcionava. Podiam faltar equipamentos modernos e brilhantes, mas sempre que precisei de cuidados médicos, eram prontamente disponíveis. Quando eu ficava doente, ainda criança, nosso pediatra fazia consultas domiciliares. Mais tarde, eu simplesmente entrava na clínica central do 6º distrito de Budapeste se eu sentisse necessidade de consultar um especialista. Isso incluía atendimento odontológico e oftalmológico. Vacinas não eram opcionais; nós todos recebíamos as vacinas requisitadas na idade indicada na escola, sem solicitação de autorização familiar. Da mesma forma, até adultos eram obrigados a realizar exames pulmonares regularmente – assim foi eliminada a tuberculose.

Quando eu comecei a escola houve um crescimento explosivo no número de automóveis no país. Carros Lada importados da União Soviética eram parcialmente responsáveis por isso. Conseguimos nosso primeiro Lada de uma das primeiras fornadas, em 1970 ou 1971, creio -Um VAZ-2101 “Zhiguli” branco. Era um carro básico, mas um bom carro. Um confiável burro de carga. A última vez que vi aquele carro foi nos anos 90, com um novo dono, obviamente, mas ainda tinha a velha placa (aquelas velhas placas eram designadas para o carro, não para o proprietário), e ainda que gasto, funcionava.

Nossas noites frequentemente se passavam em frente a uma TV em preto-e-branco, assistindo o único canal nacional (um segundo canal, originalmente chamado o canal “a cores”, foi lançado, mas no começo tinha apenas algumas horas semanais de programação, e como transmitia em UHF, aparelhos de TV mais velhos, como o nosso, só recebiam o sinal com um adaptador externo). A programação diária, excetuando umas poucas horas de programação para as escolas durante a manhã, começava no final da tarde. O início da noite tinha documentários, talvez uma série cômica importada ou algum programa sobre atualidades. Então, às 19:15 toda criança no país com acesso a televisão assistia “Urso da TV”, um urso-fantoche muito amado, que apresentava os programas infantis noturnos: geralmente uma animação, incluindo alguns deliciosos desenhos animados poloneses e tchecoslovacos.

O telejornal principal vinha a seguir, e então um filme ou algum seriado importado, séries policiais sendo bastante populares. Eu assisti muitos episódios de Kojak, Columbo, Inspetor Maigret (da França) e outras séries com dublagem húngara (argh, dublagem! Não espanta que o ensino de línguas fosse fraco). As transmissões diárias encerravam por volta das 23:00, depois de alguma programação adicional e um segundo telejornal, mais curto. Até os anos 80 não havia transmissão de TV às segundas. Reza a lenda urbana que Kádár defendia pessoalmente que não houvesse TV às segundas, para que as pessoas passassem a noite com a família. Contudo, quando eu cumpri o serviço militar obrigatório no Exército Popular da Hungria, as noites de segunda eram oficialmente noites de cinema. Pequenas instalações usavam projetores de filme convencionais, enquanto uma base maior onde servi durante um tempo tinha sua própria programação noturna às segundas, em TV de circuito fechado.

Então... um breve registro pessoal da vida na Hungria nos anos 70, início dos 80, sob o “comunismo goulash”. Não parece ruim, parece? Então porque alguém como eu aos 23 anos iria pegar sua mala, atravessar a Cortina de Ferro, pedir reconhecimento como refugiado e tentar começar uma nova vida do zero no Ocidente?

Ah... Eu fui mimado. Terrivelmente mimado. Veja, no início dos anos 70, quando eu tinha 10 anos, minha mãe decidiu fazer a jornada de uma vida e visitar minha tia, que vivia aqui em Ottawa, Canadá, me trazendo junto.

Não foi fácil. Naquela época, viagens para o Ocidente eram estritamente controladas. Cidadãos comuns podiam viajar uma vez por ano, mas apenas se eles tivesse uma carta de convite válida de alguém como um parente, disposto a sustenta-los no exterior. A economia do país passava por uma crise monetária, então havia limites muito restritos sobre quanto dinheiro um viajante poderia trocar. E quero dizer limites realmente muito restritos; segundo me lembro, o máximo permitido a minha mãe e eu era de 30 dólares (!) para férias de seis semanas. Mas essa era apenas a questão financeira. Os pré-requisitos para obter um visto de saída eram muito restritos. Recebemos a visita de um inspetor de polícia (!) que inspecionou nossa casa e anotou nossas circunstâncias, para garantir que nós não estávamos, na verdade, planejando deixar o país para sempre. No fim, foi um processo de meses para obter um visto de saída antes mesmo de podermos começar a solicitar um visto canadense de entrada e que nossos parentes pudessem comprar nossas passagens (que, obviamente, eles tinham de comprar para nós, pois não recebemos permissão de gastos suficientes para cobrir os custos de nossa viagem).

Mas, finalmente, nós embarcamos num voo da Swissair, de Zurique para Montreal, e chegamos no Canadá em uma tarde de verão quente e úmida.

E aquilo... aquilo era como visitar um outro planeta.

A riqueza! A variedade de carros nas estradas! A variedade de comida e outros produtos nas lojas! A alta tecnologia, como calculadoras eletrônicas! Eu já era um nerd de matemática. O respeito entre as pessoas! A polidez com que você era tratado em todo lugar! Era... impressionante.

Vejam bem, é realmente isso. A vida na Hungria do “comunismo goulash” não era ruim. Era até melhor que tolerável. Mas as pessoas sabiam. Elas sabiam quão melhor podia ser a vida, se não fosse pelas restrições arbitrárias e barreiras artificiais do regime. Elas sabiam o que estava ausente das lojas.

Algumas pessoas encontraram maneiras de ultrapassar as barreiras. Pequenos empreendedores, cujos negócios floresciam dentro dos limites impostos pelo Estado comunista. Meu amigo, que realmente tinha não um, mas dois ótimos e brilhantes BMWs em sua garagem dupla, e que foi uma das primeiras pessoas na Hungria a ter um computador pessoal Commodore-64. Mas até ele teve que esperar muitos, muitos anos para que uma linha telefônica fosse instalada em sua casa; até na cidade de Budapeste (uma das primeiras cidades do mundo, por volta de 1930, a ter uma rede completamente automatizada de telefonia) linhas telefônicas levavam mais de 20 anos para serem realizadas.

Nós chamávamos a Hungria “o mais feliz dos quartéis”. Porque em muitas maneiras (incluindo as condições muito reguladas sob as quais cada um recebia permissão para deixar brevemente o paraíso socialista) ela nos lembrava a vida de soldados em serviço.

Por que o regime era tão terrível? Por que ele desperdiçava potencial humano tão deliberadamente?

Eu culpo a premissa básica da doutrina marxista. A ideia de que o “homem socialista” trabalhará sem compensação até o melhor de suas habilidades, e consumir apenas de acordo com suas necessidades, simultaneamente preocupando-se com as necessidades dos outros. A ideia de que o verdadeiro valor dos bens e serviços é determinado pela quantidade de trabalho envolvida, não pela sua necessidade e por sua escassez.

Uma vez brinquei que se essa doutrina fosse tomada literalmente, o produto de meus esforços no vaso sanitário deveria ser muito valioso, pois eu certamente me esforço bastante para produzi-lo. Embora de gosto duvidoso, esta piada ilustra perfeitamente quão ilógico e mal orientado era o dogma comunista.

Agora muitos tentarão convencer você de que o que teve lugar na Europa Oriental ou na União Soviética não era “verdadeiro” comunismo. Que ele desviara de seus princípios centrais logo no começo, ignorando os avisos de pessoas como Trotsky. Bobagem, eu digo. Quando você repete o mesmo experimento sob diferentes circunstâncias e, de novo e de novo, você obtém o mesmo resultado: um Estado policial totalitário com uma economia ineficaz, é hora de parar para pensar.

Mas talvez mais que qualquer outra coisa, os sucessos do comunismo mencionados acima mostram que esses Estados não abandonaram aqueles princípios comunistas centrais. A razão pelas quais Estados no bloco comunista normalmente tinham bons resultados em áreas como educação e saúde pública é precisamente porque essas são áreas que não podem ser medidas usando apenas estatísticas econômicas. Um sistema eficiente de saúde pública não maximiza lucros e minimiza custos; ele maximiza a saúde da população. De modo similar, um sistema educacional eficiente maximiza níveis de letramento e outros índices de escolaridade, não renda.

Infelizmente, uma sociedade saudável e vibrante exige muito mais que saúde e educação. O que talvez tenha inspirado o dito algo críptico (de origem desconhecida para mim ou para o Google) de que “o socialismo é uma coisa boa, mas numa névoa densa, tarde da noite, o capitalismo pode ser melhor”[1].

Com efeito, lembrem como o grande experimento comunista acabou, no fim, não com uma explosão, mas com um mero gemido. A Hungria abrindo suas fronteiras, em particular permitindo a fuga de cidadãos da Alemanha Oriental. A Alemanha Oriental pega despreparada, primeiro tentando restringir as viagens de seus cidadãos até para “países socialistas irmãos” e depois, apressadamente abrindo suas próprias fronteiras de maneira desordenada, levando ao colapso do Estado e à reunificação alemã. A União Soviética de Gorbachev que, depois de sua derrota no Afeganistão e seus próprios problemas internos, não tinha apetite para intervir militarmente, deixando ainda mais valentes esses Estados satélites, que silenciosa, mas rapidamente, se afastaram de ditaduras monopartidárias. Finalmente, o mal aconselhado e mal preparado golpe tentado por grupos de linha-dura, a falha do qual apressou não apenas o colapso do regime comunista, mas a imprevista fragmentação da própria União Soviética.

Aqueles tempos eram um pouco assustadores. Estavam acontecendo eventos que, em thrillers políticos da era da Guerra Fria, geralmente representavam o caminho para o Armageddon nuclear. Em vez disso, houve apenas algumas mortes, por exemplo, na Romênia e na Lituânia, mas a transição, embora rápida, foi bastante pacífica.

Duas imagens desse período permanecem em minha mente. Primeiro, os incontáveis carros da Alemanha Oriental, Wartburgs e Trabants, abandonados na Hungria, perto da fronteira com a Áustria. Seus proprietários devem ter passado anos, senão décadas, na lista de espera antes de obter esses veículos. No entanto, eles também estavam muito conscientes de que aqueles carros eram lixo sem valor no mercado livre. Eu vi isso como um símbolo: como os regimes comunistas desperdiçaram o trabalho, o talento, a criatividade e a vida das pessoas. Essa impressão foi reforçada quando apareceram imagens do protótipo do primeiro ônibus espacial soviético sendo transformado em atração de um parque de diversões, apenas para ser seguida pela visão ainda mais trágica de um hangar mal conservado desabando em cima do próprio ônibus espacial, que realizara um voo espacial não tripulado, mas que nunca tivera a chance de levar cosmonautas ao espaço.

Esse era o problema com o comunismo. É simplesmente um projeto com fundamentos falhos**[2]. Você pode remendar aqui e ali, tentando governar através da polícia secreta, jogando gente em campos de reeducação, instilando terror e um sistema ditatorial de liderança, mas nada disso consertará um sistema se sua premissa básica tiver uma falha profunda. Por outro lado, você pode manter tudo acima: a polícia secreta, os campos de prisioneiros, a ditadura monopartidária, contanto que você jogue fora a doutrina marxista defeituosa e a substitua por uma economia de mercado funcional, como foi feito na China e no Vietnã.



E isso também pode explicar porque as falhas do comunismo são rapidamente esquecidas por gente que se encontrou no lado perdedor do capitalismo frequentemente selvagem que se seguiu ao colapso soviético. De que servem lojas cheias de produtos se você não tem dinheiro para compra-los? Por que você deveria se consolar com condomínios de luxo quando você é expulso do pequeno e desconfortável apartamento onde você cresceu? Por que você deveria se impressionar com um novíssimo aparelho de ressonância magnética quando seus dentes estão apodrecendo porque você não tem meios de pagar um dentista? E se você lembra (ou sabe pela lembrança de seus pais ou avós) como era quando o direito a sua residência era garantido pelo Estado, quando a cesta básica estava sempre disponível a preços que até aqueles de menor renda podiam pagar, quando atendimento médico era realmente universal e gratuito... você não se sentiria nostálgico? Você não sentiria inclinado a ferchar os olhos para a natureza totalitária do regime que garantia tudo isso, mesmo com suas ineficiências e falhas manifestas?



No fim das contas, o que é melhor: um Tesla Roadster que você não pode comprar, ou um Zighuli desajeitado e sedento de gasolina, mas confiável, que você pode adquirir, mesmo que ele não tenha câmbio automático?






[1] Desde então eu perguntei a minha mãe sobre esse dito. Ela acredita que ouviu isso no rádio nos anos 60, em um programa de sátira política (sim, havia sátira política no “comunismo goulash”). Era uma piada envolvendo uma conversa entre dois pequenos empreendedores bem-sucedidos, óbvios beneficiários do regime. Um deles se queixa: “Você sabe, quando eu dirijo por aquela grande avenida de Budapeste em uma névoa densa, numa noite escura, eu sempre me perco. Antes da guerra, você podia identificar onde estava pelas placas de lojas conhecidas. Mas hoje? Todas as placas de lojas estatais são iguais e você nunca sabe onde está; todas as esquinas parecem iguais”. Seu amigo concorda e responde: “Sim, acho que você está certo. Porque o socialismo é uma coisa boa. Mas numa névoa densa, tarde da noite, o capitalismo é melhor”.


[2] Alguém, em uma conversa, sugeriu que sou um anticomunista juramentado. Não sou. Eu vivi sob o comunismo e não gosto dele, apenas isso. Eu hoje vivo no capitalista Canadá. Eu não sou cego às falhas desta sociedade, mas é uma sociedade incomparavelmente mais decente. Mas às vezes nós toleramos as falhas de uma sociedade fundamentalmente boa menos que aquelas de uma sociedade defeituosa desde a base. Uma outra piada me vem à cabeça, esta de um livro do imortal (não realmente; ele morreu de tifo em um batalhão de trabalho forçado em 1943, onde ele foi recrutado devido a sua ascendência judaica) Jenö Reitö, cujos romances, em sua maioria escritos nos anos 30 e muitos deles passados na Legião Estrangeira Francesa, são deliciosas leituras ainda hoje, engraçados como os de Douglas Adams. Esta piada envolve um cozinheiro gourmet que acaba em um batalhão penal, mas depois se encontra em uma base onde acontece um cambalacho colossal. Para manter os prisioneiros quietos, no entanto, eles são mantidos em conforto, o que inclui acesso a comidas luxuosas. O protagonista acaba enrascado de qualquer maneira, e quando seus amigos perguntam por que, ele responde: “Lá em Manson [cidade africana fictícia], eles apenas cozinhavam comida de má qualidade. Isso posso tolerar. Mas aqui, eles cozinham mal comida de boa qualidade, e isso é insuportável”.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Um retrato da caserna

Testemunho deliciosamente irreverente do antropólogo Messias Basques sobre sua experiência no Serviço Militar Obrigatório


Quem teve o desgosto de ser obrigatoriamente alistado para o “tiro de guerra” pôde ver de perto o cotidiano das Forças Armadas. É muito zoado, uma mistura de Loucademia de Polícia com escotismo meia-boca e obsessão por passar a vida ouvindo ofensas e xingamentos de superiores.



quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Vida como jogo

"Se Deus é digno da suprema seriedade, e o homem não passa de um joguete de Deus, e esse é o melhor aspecto de sua natureza. Portanto, todo homem e mulher deve viver a vida de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas inclinações atuais [...] Pois eles consideram a guerra uma coisa séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente as coisas que nós consideramos mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-se ao máximo por viver em paz. Qual é, então, a maneira certa de se viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate".
Platão

Gregos jogando para seus deuses

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Ájax futurista

"...um dia, o filho mata o pai... O povo mata o rei... O homem mata Deus... Não se trata de inveja. É uma ação necessária para poder andar com os próprios pés! [...] Mesmo que o meu corpo seja destruído, a minha vontade de ferro é imortal! Lembre-se, ó manipulador de fantoches que observa do alto de seu pedestal em Zalem! [...] Povo de Zalem... Escute-me através dos ouvidos do anjo da morte... A minha voz representa a ira do povo da superfície... Fomos perseguidos e pisoteados durante séculos pelo sistema opressor de Zalem e de sua Factory! Saibam que minhas palavras representam o ódio dos mortos inocentes! A devastação e a estagnação da superfície! O ódio e o desalento deste mundo são culpa de Zalem! Lembrem-se! Um dia vocês pagarão por terem tirado o céu de nosso alcance! [...] Este meu corpo é só uma carcaça. Nunca poderão me matar de verdade. Pode atirar! Aproveitem essa vitória momentânea!"
Den of Barjack [Battle Angel Alita]

Ciborgue indomável

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Batman na arena política

Os primatas do planeta Terra nos surpreendem ao cabo das translações solares.

Nos anos 50, no auge da paranoia macartista, Batman era acusado de induzir os meninos à homossexualidade; quem diria que décadas depois ele seria acusado de "fascista" pelas militâncias de esquerda... Coitado do morcegão!

O personagem salta há mais de 80 anos pelos telhados de Gotham City e já foi abordado de inúmeras maneiras ao longo dessas décadas. 

É curioso que as militâncias digitais andem  mais preocupadas com a fortuna Wayne que com o Batman propriamente dito. Qualquer leitor atento sabe que Bruce Wayne, o entediado playboy milionário, desde a primeiríssima história,  sempre foi apenas a máscara do Batman.

Na história inaugural, publicada na revista "Detective Comics 27" em maio de 1939, Batman figura desde o começo como protagonista. Wayne aparece durante toda a narrativa apenas como um jovem cuja frivolidade chega a ser casualmente lamentada pelo Comissário Gordon. Só nas duas últimas vinhetas ocorre a revelação: Batman é Bruce Wayne. O milionário fútil, entojado e almofadinha talvez até causasse alguma antipatia aos jovens leitores que tiveram a honra de testemumhar a estreia do Cavaleiro das Trevas.

Para todos nós que viemos depois, é impossível saber, pois lemos desde a página 1 sabendo que Wayne e Batman são a mesma pessoa. Há de fazer diferença.

Quanto a Batman ser um "espancador de pobres", vale lembrar que o vilão da primeiríssima aventura era um milionário que assassinava os próprios sócios para dominar sozinho o negócio. Batman surgiu combatendo um "capitalista selvagem".

De resto, elucubrações excessivas sobre as dinâmicas sociais e políticas de Gotham City, uma cidade ficcional, beiram o ridículo. Como bem sinalizava David Mazzuchelli, desenhista de "Batman-Ano Um", uma das histórias mais icônicas do personagem, quanto mais realismo se tenta aplicar ao fantasioso universo dos super-herois, mais evidente se torna o absurdo da premissa original.

Vale notar, inclusive, que "Ano Um", publicada em 1987, mostra um novato Batman em confronto com uma Gotham City decadente e degradada, dominada por empresários gananciosos e mafiosos associados a um prefeito e uma força policial corrupta. Uma das sequências mais emblemáticas da série mostra Batman invadindo um banquete dessa predatória elite e anunciando sua cruzada por Gotham: "Senhoras e senhores, vocês comeram bem. Comeram a riqueza de Gotham... Seu espírito. O banquete acabou. De hoje em diante nenhum de vocês estará a salvo".

Digna de nota também é a longa sequência de aventuras do Batman produzidas pelos engajados Dennis O'Neil e Neal Adams nos anos 70, entusiastas da contra-cultura da época, muitas vezes abordando temáticas sociais com uma abordagem nada elitista. Uma dessas histórias chega a retratar Batman ajudando guerrilheiros contra um regime ditatorial em um fictício país latino-americano!

Desde sua primeira aparição nos quadrinhos em 1939, Batman figurou em literalmente milhares de obras midiáticas, incluindo HQs, livros, animações, séries televisivas, filmes e video-games, entre outras, com abordagens variadíssimas. Há versões de Batman para todos os gostos e desgostos.

Reduzir Batman a um sádico milionário fantasiado de morcego para espancar bandidos pobres é algo tão simplório que beira o ridículo. Mas é desse tipo de reducionismo que se alimentam as paixões políticas e as querelas estéreis e ociosas. 

Discursos bobos e superficiais como o do meme acima só trazem descrédito àqueles que os reproduzem e banalizam questões sérias como violência urbana e desigualdade social; pouco contribuem para o debate público e até fortalecem as forças políticas que pretendem criticar.

#Reflita

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Servidor Público: Guardião da Democracia e da Liberdade

Oportuna e interessante reflexão do historiador conservador Christopher Dawson no livro O julgamento das nações (1942); em plena II Guerra Mundial, Dawson sinalizava para a importância do servidor público autônomo, ativo, altivo e consciente para a preservação da liberdade, contra a sempre possível escalada de tirania por parte de governantes eleitos (vale lembrar que o partido nazista chegou ao poder por via eleitoral). Grifos meus.


Na verdade, o servidor público é mais apto que o empresário ou o político para para representar o princípio do serviço desinteressado e a honra profissional na sociedade moderna em face da motivação capitalista de lucro e da vontade de poder ditatorial. No passado, é verdade, foram os elementos negativos da burocracia que se tornaram mais evidentes, o que resultou na associação, na mentalidade popular, disso com excessiva regulamentação e formalismo, com a evasão da responsabilidade pessoal e o amor pela rotina. [...] Houve uma expansão imensa nas funções e no poder da burocracia que muito se distancia do que era um século atrás [...]. Mesmo assim, nossa sociedade ainda não assimilou a mudança, e a opinião pública ainda está influenciada pelos hábitos mentais que pertenceram a tradições que há muito deixaram de existir. O serviço público ainda não percebeu plenamente a extensão dessa responsabilidade. Não basta ser um especialista competente e trabalhador. Nada pode ser mais respeitado do que o padrão da burocracia alemã. Por essa mesma razão, todavia, foi o servo obediente de um poder qualquer produzido por quaisquer meios a obter o controle do Estado. [...] Em outras palavras, o servidor público deve ser, ele mesmo, um homem livre e um cidadão, se tem de administrar uma sociedade livre.


Guardadas as diferenças de contexto entre o Reino Unido na época de Dawson e o Brasil atual, suas observações se fazem mais que oportunas no atual contexto em que tramita uma "Reforma Administrativa" que ameaça as bases do serviço público tal como postuladas na Constituição de 1988. Ao consagrar a figura do servidor público CONCURSADO, nossa atual Constituição visa garantir justamente que sejam selecionados para servir à população profissionais plenamente capacitados para o exercício de suas respectivas funções - ao contrário do que prevalecia antes de 88. Infelizmente, como os britânicos de 1942, boa parte dos brasileiros de 2020 "ainda não assimilou a mudança".


O servidor público concursado não pode se tornar um joguete nas mãos de políticos cujos mandatos são passageiros, não pode ser reduzido, retomando as palavras de Dawson a um "servo obediente de um poder qualquer". Nesse sentido, vale lembrar as reflexões de Hannah Arendt sobre a "banalização do mal" no regime nazista, muitas vezes perpetrado por funcionários públicos que, como Eichmann, "apenas seguiam ordens".


De resto, vale lembrar que na história recente de nosso país, os grandes escândalos de corrupção e de negligência ao bem comum raramente são protagonizados por servidores públicos concursados, mas sim por empresários e políticos, motivados, como sinalizava Dawson, por lucro e poder. Os cúmplices e articuladores desses tristes conluios, na maioria das vezes, são os ocupantes de cargos comissionados, apadrinhados por políticos, muitas vezes sem a mínima capacitação para a função que deveriam desempenhar.


Nesse sentido, é do interesse de todo cidadão brasileiro rechaçar vigorosamente essa Reforma Administrativa em pauta, à medida que enfraquece o servidor público capacitado, responsável e comprometido com a população. E cabe também aos servidores públicos concursados, cada vez mais, tomar consciência de sua imensa responsabilidade como guardião da democracia e da liberdade contra todo tipo de arbitrariedade, abuso ou até tirania por parte das autoridades eleitas.




quinta-feira, 10 de setembro de 2020

No limits


Leia-se: "para apadrinhados, o céu será o limite". Ou, como diria Buzz Lightyear, "ao infinito e além"!

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Humanos, cobaias e cientistas

"Meu caro Ido... Neste mundo existem apenas dois tipos de seres humanos... As cobaias e os cientistas que têm o direito de dissecá-las".
Dr. Desty Nova [Battle Angel Alita]

Duas coisas muito difíceis

Dissuadir alguém de cometer tolices; persuadir alguém a tomar atitudes sensatas.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Cada "ordem" traz o "progresso" que lhe corresponde.

Obviedade

Ao contrário do que querem os religiosos, a existência de Deus não é óbvia. Tampouco é óbvia sua inexistência, como pretendem os ateus. Entre uns e outros, a única obviedade é a arrogância humana, que toma seus desejos por verdades e suas conveniências por certezas. A vida e o universo são repletos de mistérios, e mistérios se recusam a ser óbvios.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Sobre trabalho e cidadania no Brasil

 Eis um levantamento que nos deixa MUITO que pensar sobre a situação social da República Federativa do Brasil...



Gume duplo

 Há quem jogue com todas as cartas disponíveis no baralho... E a gerência do nosso cassino eleitoral nunca foi lá muito confiável! Esse santinho é a cara do Brasil. Sensacional.



quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Farsa e Consequências

Diagnóstico certeiro do historiador Fred Oliveira

As discussões políticas mais acaloradas vedaram a visão para o dano colateral produzido ao longo do tempo. Parcela (parcela!) do que temos e vemos hoje é o bizarro desdobramento de farsas, demagogias e omissões, produzidas, fomentadas e reiteradas lá atrás. Ninguém pensou nas consequências.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

"É pecado constante do idealista sacrificar a realidade aos seus ideais; e esse vício prevalece tanto entre os idealistas religiosos quanto entre os seculares".
Christopher Dawson

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Entre o Cetro e a Cruz

Ai do cristão que prefere o cetro de Constantino à cruz de Jesus; deseja impor pelo Poder aquilo que só se pode oferecer com Amor. Tomando a tirania por instrumento da fé, pretende agrilhoar seu semelhante ao Cristo que ele mesmo desconhece, como cego presunçoso que deseja furar os olhos dos videntes para curar-lhes a visão. Seu tresloucado zelo apostólico é traiçoeiro como a consciência de Judas.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Cidadania Defasada

Outro dia enviei a um conhecido uma matéria de certo periódico americano e seus comentários mostravam que ele não entendera sequer a manchete. Me senti um bocado embaraçado com a situação.

Cada vez mais se configura um contexto onde ao menos noções sólidas de uma ou duas línguas estrangeiras sejam necessárias para o exercício pleno da cidadania, mas a maioria das pessoas mal consegue interpretar adequadamente um texto em sua língua nativa.

O currículo escolar se mostra cada vez mais defasado em relação às competências exigidas pelo contexto global, e há poucas perspectivas de cobrir essa defasagem a curto prazo.

Talvez soe elitista, mas creio que um cidadão do século XXI deveria sair do Ensino Básico ao menos com sólidas competências de leitura e escrita em sua língua nativa, conhecimentos razoáveis de ao menos duas línguas estrangeiras, rudimentos de análise estatística e noções básicas de programação.

Mas como estamos longe disso!


Interpretação e (in)tolerância

 

domingo, 9 de agosto de 2020

2020 - A maior tragédia brasileira

Lembrem a Guerra dos Tamoios.


Lembrem a Batalha de Guaxenduba.


Lembrem Guararapes.


Lamentem a Guerra de Palmares.


Lembrem os Emboabas.


Lembrem a Balaiada.


Lembrem a Cabanagem.


Lembrem a Farroupilha.


Chorem a Guerra do Paraguai.


Lembrem a Revolta da Armada.


Lembren a Revolta da Chibata.


Lembrem Canudos, montanha entre colinas.


Lembrem o Contestado.


Lembrem a II Guerra Mundial.


Que se lembre cada gota de sangue vertido nesta Terra de Santa Cruz.


Mas que não se esqueça o sórdido Massacre de 2020, o Grande Holocausto Brasileiro.


Que ninguém se esqueça dos mais de 100 mil mortos por mais que perversa negligência e torpes interesses.


Que ninguém se cale diante dessa catástrofe.


E que se faça Justiça em nome de todos aqueles que sofrem, sofreram e ainda sofrerão. 


Que cada lágrima vertida forme uma poderosa torrente contra os tiranos cuja indiferença cruel e mesquinha nos trouxeram à beira do abismo.



quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Controle, desejo e ilusão

O controle só existe sob duas modalidades: desejo e ilusão. A vida encontra sempre infinitas maneiras de frustrar as fúteis tentativas de submete-la a nossas vontades e caprichos. A cada instante nosso próprio corpo realiza milhares de funções que escapam completamente ao nosso conhecimento. A cada noite o sono nos deixa à mercê de todos os imprevistos. O chão sob nossos pés pode se abrir intempestivamente; a atmosfera que nos circunda pode se tornar repentinamente furiosa. Somos meras cascas de nozes flutuando num infindável oceano. Apenas nossa vaidosa tolice nos convida a crer que a casca de noz que somos pode conter o oceano da vida.


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Oração Derradeira

Senhor, Senhor!

Olhando para este céu azul, entrego minh'alma pecadora! Ao som dos canhões, entrego minh'alma.

Tende piedade de mim! Tende piedade de nós, Senhor!

Sinto o chão duro e áspero sob minhas costas. As mãos chamuscadas de pólvora. Ainda seguro debilmente meu mosquete carregado para um último disparo. A camisa e a barba empapadas de sangue. Meu sangue.

Pólvora. Pólvora. Pólvora. Tanta pólvora, Senhor! Quanta pólvora! Sinto o cheiro; ouço as explosões.

Pólvora. Salitre. Carvão. Enxofre. Assim me disse o mestre artilheiro. Enxofre de Satanás. Pólvora de Satanás.

Que digo, Senhor? Digo bobagens, apenas bobagens. Nem sei o que digo. Sinto sede, sinto frio, sinto o sangue que se esvai. O céu ainda parece azul. Ainda.

Meu ombro não dói mais. Tento mover o braço. Não consigo. Não sinto minha mão.

A poucos passos escuto o ricochetear de balas contra a amurada de pedra. Foi uma bala como essas que me atingiu. Apenas uma. Quente, rasgando, queimando, esmagando. Minha carne, meu osso, meu sangue. Agora não importa mais.

Há poucos momentos eu e meu amigo disparávamos nossos mosquetes sobre a amurada, entre as ameias. Precisávamos defender nossa fortaleza. Atravessamos o oceano para defender esse forte. Pela Fé. Pelo Império. Pelo Rei. Pela Lei. Pela Santa Cruz. Por nossos soldos.

Do outro lado do Mar Oceano. Do outro lado, Senhor. Do outro lado estão minha mulher e meu filho. Entrego-Vos as vidas deles. Cuidai deles por mim. Cuidai do órfão e da viúva, pois sois Deus de Misericórdia!

Meu amigo está morto ao meu lado. Um petardo certeiro atravessou seu olho. Um bom homem, um bom cristão. Tende piedade dele, Senhor.

Viemos aqui por boa causa. Trazer a Palavra de Salvação para o gentio selvagem, nas garras de Satã, condenado à eterna danação. Nossos canhões, mosquetes, colubrinas, receberam a Vossa bênção. Para salvação do gentio e condenação do herege que o seduz.

Eis agora o herege que nos ataca. De seus galeões disparam as bocas de fogo contra nosso forte. As muralhas de pedra estremecem ao coice bestial das balas. Sinto o chão que trepida sob minhas costas.

Abaixo de mim, nossos canhões respondem. As explosões abafadas ecoam. Ouço as correntes que gemem a cada disparo. Vejo as nuvens negras que sobem ao céu azul. Ouço a tosse abafada dos meus camaradas que ainda lutam. Ou será minha própria tosse? Já não sei mais, Senhor.

Sei que morro, mas imploro ainda. Guardai este forte, Senhor Amado, em nome da Santa Cruz, para glória d'El Rey.

De seus escaleres, os hereges desembarcaram na praia, com seus mosquetes e colubrinas. Cada um de meus camaradas correu para seu posto.

Agachados sob a amurada, carregávamos nossos mosquetes, depois fazíamos um rápido disparo por entre as ameias. Sem tempo para mirar direito, a cada disparo confiamos em Vossa mão para guiar nossas armas, como fizestes com a funda de Davi!

O herege se oculta atrás das rochas na praia. Em grande número veio o herege, maior do que imaginávamos. Cinco galeões, sabe-se lá quantas bocas de fogo. Escaleres repletos de homens, como um enxame. Que esperança para uma pequena guarnição como a nossa? Em Vós, apenas em Vós, Senhor, esperamos! De vós há de vir o socorro!

Nossos canhões conseguiram naufragar um dos galeões inimigos. Isto ainda tive a Graça de contemplar! Também alguns escaleres foram atingidos antes de chegar à praia. Alguns hereges se afogavam, bem vi.

Pouco depois tombou meu grande amigo. O olho esquerdo estraçalhado e o nariz despedaçado jorravam sangue. Espumava sem dizer palavra, o pobre cristão. O rosto se contorcia de dor e a mão crispada agarrava a manga de minha camisa. Encomendei a Vós a pobre alma, com o sinal da Santa Cruz. Foste misericordioso, Senhor. Morreu rápida e graciosamente, como merecia tão bom cristão.

Fechei o olho que ainda restava a meu finado amigo e retornei a meu posto nas ameias, com ânimo e fé redobrados para a peleja contra o herege.

Meu disparo seguinte foi certeiro, pude ver. Vislumbrei o alvo e puxei o gatilho. Uma flor sangrenta desabrochou no peito do herege que tombava. Olho por olho, dente por dente, vida por vida. O disparo detonou como um cântico de hosanas e a pólvora cheirava como incenso.

Meu coração batia mais rápido. As lágrimas escorriam quentes por minhas faces.

Fiz mais cinco ou seis disparos, sem ver bem para onde iam. Estava cansado. Por instantes, recostado contra a amurada, repousei o mosquete ainda quente. O som de ricochetes se fazia ao meu redor. Um ou outro petardo zunia acima de minha cabeça.

Derramei a pólvora lentamente pelo cano do mosquete. Pressionei delicadamente o pó negro com o soquete. Peguei mais uma bala, sopesando o chumbo em minha mão. A bala desceu pelo cano, com um ruído áspero. Um pequeno toque com o soquete e estava quase tudo pronto. Senti a força da mola quando puxei a cultatra. Reparei que a pederneira já estava bastante desgastada. Empunhei o mosquete com o indicador próximo ao gatilho.

Em instantes me ergui, me debruçando sobre a ameia. Tive apenas tempo suficiente para avistar o balaço que se aproximava. Por um instante parecia que o mundo inteiro explodia e no momento seguinte estava aqui, estendido no chão, com meu ombro esmigalhado.

Não sinto mais nada. O céu azul e as nuvens negras desapareceram. Acho que fechei os olhos. O barulho das explosões agora parece chegar de muitas léguas de distância. Sinto alguém puxar delicadamente o mosquete de minha mão. Será um anjo?


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Liberdade e Humildade

"O preço da liberdade é a eterna vigilância".

O preço da vigilância é a crítica permanente.

O preço da crítica é a perpétua autocrítica.

O preço da autocrítica é a profunda humildade.

Não há verdadeira Liberdade sem verdadeira Humildade.


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Boas apostas

Da perspectiva eleitoral, política é como cassino. Cada eleitor aposta suas fichas e depois vê o resultado da roleta. O mais importante é deixar os evidentemente piores de lado - mas o povo brasileiro tem muito talento para fazer exatamente o contrário disso.


domingo, 12 de julho de 2020

O desabrochar do Cravo

A muito custo, um frágil Cravo germinou e brotou.

Era um verão abrasador, que crestava suas tenras folhas. Apenas o orvalho noturno abrandava as agruras desse bravo cravinho.

O clima se fazia inclemente. Ao impiedoso verão sucedeu um outono terrível, que anunciava um inverno monstruoso.

Sacudido por violentas tempestades, cresceu o Cravo, robustecido pelas intempéries.

Veio o inverno, longo, rigoroso e brutal, com violentas geadas que ameaçavam todas as flores do prado. Muitas sucumbiram.

Quase milagrosamente, em meio ao frio opressor, o Cravo pôs um botão.

Veio a primavera. Tímida, débil, frágil como uma orquídea.

Ainda atormentado pelas lembranças invernais, o botão do Cravo teimava em se manter fechado. Sobrevivera a tantas durezas, por que se expor agora?

Em meio à primavera, nuvens trovejantes cobriram o céu.

Foi então, corajosamente, que o Cravo desabrochou.

Abriu suas pétalas em espetáculo ao mundo e gritou: "NÃO"!

E o prado inteiro ouviu. NÃO.

As nuvens se envergonharam e os trovões se calaram.

E o grito do Cravo deu esperança a muitas outras flores.


quarta-feira, 8 de julho de 2020

Refugo

Seria o Estado brasileiro apenas um insípido subproduto das Guerras Napoleônicas?

"Le Brésil n'est pas un pays sérieux!" - "Ils sont fous, ces brésiliens, Astérix!"

terça-feira, 7 de julho de 2020

Bolsonaro, Barbárie e o Pacto Civilizatório

Há quase 11 anos postei neste blog um texto lamentando as comemorações pela morte de Bin Laden nas ruas dos Estados Unidos. Comemorar a morte de um bárbaro é um gesto que nos aproxima do próprio bárbaro.

Da mesma forma, mais recentemente, refleti sobre meus próprios sentimentos de regozijo, igualmente lamentáveis, quando recebi a notícia da prisão de Sérgio Cabral.

A língua alemã, em sua riqueza, possui um termo específico para esse tipo de sentimento demasiadamente humano: Schadenfreud - a alegria pela desgraça alheia.

O respeito à doença, ao sofrimento, ao infortúnio e ao luto daqueles que abominamos e nos causam repugnância é um dos limites mais importantes entre a civilização e a barbárie.

O Sr. Jair Messias Bolsonaro, infelizmente, não é uma pessoa conhecida por respeitar esses limites. Sabemos bem disso,  como atestam inúmeros episódios.

Bolsonaro manifestava publicamente seu desejo de que um câncer ou um infarte tirassem a vida da então presidente Dilma Roussef, paciente oncológica convalescente. Comemorou a morte de Fidel Castro.

Mais recentemente, já na função de Presidente da República, fez comentários escarninhos sobre os brasileiros falecidos na atual pandemia, especialmente o grotesco "E daí?"

Jair Messias Bolsonaro, infelizmente, é um ser humano que não respeita, nunca respeitou, os limites do pacto civilizatório. Nem mesmo a experiência da fatídica facada o fez repensar tais posturas.

Agora circulam notícias de que o Presidente Bolsonaro está sob suspeita de ter contraído COVID-19.

Tomemos o cuidado de não nos rebaixarmos, sequer jocosamente, à barbárie de Bolsonaro.

Não devemos desejar "Força, COVID" ou nos regozijarmos com a possibilidade da morte do presidente. Tais atitudes nos rebaixam ao mesmo nível de barbárie que tanto reprovamos nele.

Barbárie alimenta barbárie. Em nome da preservação do sempre frágil pacto civilizatório, precisamos nos colocar acima do "olho por olho, dente por dente".

Diante da barbárie, nos cabe cultivar a altivez ética de lutar contra as próprias pulsões bárbaras, vingativas e rancorosas que existem dentro de cada um de nós.

A alegria diante da desgraça alheia é um impulso muito humano, quase instintivo, que habita em nós. Não é vergonha sentir isso e seria hipocrisia negar que tais sentimentos estão em nós.

No entanto, como humanos, somos seres dotados da capacidade de escolher. Podemos escolher cultivar ou não tais sentimentos. Tal semente existe em nossos corações, mas devemos, em sã consciência, irrigá-la? Desejamos transformar nossas consciências em plantações de amargo ódio? Que colheita podemos esperar de semelhante cultivo?

De minha parte, sinto, como tantos, a inclinação de me regozijar com a enfermidade do presidente, desejar-lhe a morte e fazer piada com o tema.

Mas evitarei isso. Como ser humano, faço a escolha consciente de não me entregar a essas inclinações ou cultivar tais atitudes. Como recitava Mandela, "sou capitão de minha alma".

E como capitão de minha alma, escolho não sucumbir à lamentável barbárie que consome a alma do Capitão Bolsonaro.

Em nome de meus familiares e amigos que sofrem e sofreram as consequências dessa pandemia, só posso manifestar minha esperança - provavelmente inútil - de que sofrendo a enfermidade na própria carne, Bolsonaro reveja suas atitudes e, como ser humano que também é, possa fazer escolhas e tomar atitudes melhores no futuro.


domingo, 5 de julho de 2020

As voltas que o mundo dá (2009-2020)



Matéria da revista Época em 2009.

E pensar que naquele tempo eu também acreditava nisso.

Ce siècle avait neuf ans. J'étais jeune et naïf, hélas!

Só se desiludem aqueles que se iludiram. É da natureza das miragens desaparecer quando avançamos em sua direção.

"Deixo um Brasil mais preparado"...! Capcioso adjetivo - "preparado" para quê? A colheita diz muito sobre a semeadura.

Basta vento para desmanchar castelos de areia.

2030? Nem quero imaginar.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Da Ação Excelente

Se os resultados finais de nossa ação ficam próximos da intenção original, significa que agimos com excelência; inversamente, podemos medir o grau de inépcia do agir pela distância entre a intenção motivadora e o resultado obtido. A ação excelente alcança os fins apropriados através dos meios adequados. Para tanto, o agente deve, antes mesmo de definir seus fins, avaliar os recursos disponíveis e as condições conhecidas, assim como sopesar os riscos e precaver-se contra os imprevistos. "O ótimo é inimigo do bom": intenções sóbrias favorecem resultados excelentes; intenções delirantes conduzem a resultados decepcionantes. A simplicidade é a melhor amiga da excelência.


Twilight Omen

In the swollen swamps,
Twilight whispers omens
Restless sleepers
Hear gloomy chants

One Voice must sing,
Two Princes may fall;
Will the King hold his throne?
The blade of Fate is sharp

The folk on the marshes
Breath poisoned air;
Some choke, some die
Too many people cry

In the mourning castle,
The court laughs no more
The throne crumbles,
The crown is heavy

Even heroes avoid
Haunted roads and paths
Starving ghosts roam,
By hatred blind

The King is deaf,
The King is drunk,
The King is mad,
The King is mute

The castle is full of songs,
But the singers weep
Any joy is madness,
Only madness brings joy

The Jester is hanged,
Barons hold their daggers,
Pale Dukes silently wait
Each man feels like a maiden

Shields are dusty
Swords are blunt
Spears are rusty
Wardrums are quiet

The seeds were rotten,
Harvest is bitter
The fields are barren,
The mills stand still

Crows wait on the trees
Wide eyed owls watch
Hungry vultures laugh
Sharp is the blade of Fate