Newsletter

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Oficina de Clio - Newsletter

Inscreva-se na newsletter para receber em seu e-mail as novidades da Oficina de Clio!

Nous utilisons Sendinblue en tant que plateforme marketing. En soumettant ce formulaire, vous reconnaissez que les informations que vous allez fournir seront transmises à Sendinblue en sa qualité de processeur de données; et ce conformément à ses conditions générales d'utilisation.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 "No entanto, muitas vezes são só a reputação e o medo que protegem os navios, e não os homens que neles estão".

Richard Hawkins (1625)

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

 Ai daqueles que depositam suas esperanças na sensatez de lobos famintos!



"Lulalckmin" - O Brasil e suas reviravoltas

Breve reflexão do geógrafo Vinicius Borges

Agora chegou a vez de "Lulalckmin". Até nas alianças liberais nosso campo progressista regrediu... 

José de Alencar em 2002, com todos os senões que se pudesse ter, era um capitalista com senso de respeito à importância de um Estado forte e ativo para poder desenvolver um país.  Hoje, a maior liderança do campo progressista está pronta para se aliar em 2021 com tudo aquilo que era preciso combater em 2006... 

Em 2030, a esquerda partidária brasuca estará trabalhando a aliança com Bolsonaro para evitar a eleição de Zé Trovão ou de qualquer outro incendiário com apelo popular ainda mais "descacetado" das ideias do que o atual... 

E assim seguimos, girando em círculos ao redor de nossas tragédias, como em um romance fantástico de Gabriel Garcia Marques.



segunda-feira, 15 de novembro de 2021

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Desde que o mundo é mundo

 Alguém conhece alguém, que conhece alguém, que conhece alguém, que conhece alguém, que conhece...

Assim se tecem e tramam as vidas humanas, desde que o mundo é mundo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

"Pelo simples fato de decidir seguir as tradições de nossos pais, já lhes somos infieis".

Eric Weil

Eaux chantantes,

Ô, enchantez-moi!

Des doux rêves je veux:

Tombez des cieux,

Lavez mon âme,

Abbreuvez mon coeur!

Bercez-moi, ô,

Chantantes eaux

Je vous conjure,

Fâites sublime mon sommeil,

Comme le lit d'un serein fleuve...

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Kataguiri, Bolsonaro e a democracia putrefata

Na última semana a ministra Rosa Weber, do STF, recusou uma queixa-crime do deputado federal Eduardo Bolsonaro contra o colega Kim Kataguiri, por calúnia e difamação. Entre outras questões, o Sr. Bolsonaro se queixava do uso do apelido "Bananinha", que tem circulado na Internet desde uma declaração jocosa do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República Federativa do Brasil.

O insólito episódio diz muito sobre o atual estado de nossa democracia, que nunca foi muito saudável, mas parece ter piorado terrivelmente nos últimos anos.

Antes de mais, deixo claro que não tenho qualquer simpatia por Kataguiri, por Lula ou pelo clã Bolsonaro, mas acho no mínimo contraditório que o Sr. Eduardo Bolsonaro recorra à Justiça contra Kataguiri, considerando que seu próprio pai, ora presidente da República, não hesita em mentir, espalhar boatos e manter uma conduta, em linhas gerais, indecorosa. Entre outras pérolas, o Sr. Bolsonaro foi o primeiro presidente do Brasil a conjugar o pitoresco verbo "escrotizar" em um pronunciamento oficial, além de ter tratado jornalistas com palavras de baixo calão mais de uma vez. Como este blog se dá ao respeito, pouparei o nobre leitor de maior aprofundamento em torno do escatológico florilégio presidencial. 

No que tange a injúrias pessoais, no entanto, creio que Bolsonaro jamais desceu tão baixo como ao tratar repetidamente o ex-presidente Lula por epítetos como "vagabundo de nove dedos", entre outros similares, aludindo jocosamente à mutilação sofrida por Lula em seus tempos de metalúrgico. Doenças, mutilações, malformações e situações similares são o tipo de coisa com o qual gente civilizada não faz brincadeiras. E é simplesmente nauseante ter como presidente de nossa República uma pessoa que não respeita as mínimas questões de decoro que deveriam ser óbvias para qualquer cidadão educado - no sentido mais elementar da palavra.

Diante de todo o histórico de grosseria e deselegância da família, causa espanto que o sr. Eduardo Bolsonaro ainda tenha a audácia de buscar a Justiça por conta de um comportamento que lhes é tão costumeiro. Mas atitudes contraditórias e incongruentes são exatamente o que se espera de pessoas com caráter dúbio.

Uma das partes mais elementares do convívio social é a reciprocidade. O ser humano costuma esperar do semelhante atitudes semelhantes a suas próprias - bem por bem, mal por mal. Idealmente, deveríamos seguir a "regra de prata", "não fazer ao outro aquilo que não gostaríamos que nos fizessem" e, mais ainda, a "regra de ouro", "tratar ao próximo como gostaria de ser tratado". Todo ser humano adulto e sério tem esses princípios em mente em suas interações sociais e, na maioria das vezes, temos consciência de que a transgressão dos mesmos costuma redundar em algum tipo de reação.

Ao recorrer ao Supremo Tribunal Federal pedindo que regule uma questão de ofensa pessoal entre ele e um terceiro, o sr. Eduardo Bolsonaro deixa evidentes sua imaturidade e falta de seriedade. Age como uma criança mimada que se julga no direito de ofender a todos, mas que não aceita ser ofendido de volta. Como diz a sabedoria popular, "quem fala o que quer, ouve o que não quer". Seria de se esperar que um deputado federal fosse capaz de agir como uma pessoa adulta que aguenta as consequências de seus próprios atos, mas evidentemente não é o caso.

No entanto, a briga entre Kataguiri e Bolsonaro evidencia um mal-estar mais profundo, que corrói a democracia brasileira nos últimos anos. O ambiente do debate político em nosso país tem se tornado cada vez mais deletério - tanto por parte dos políticos quanto, em sentido muito mais amplo, pelos cidadãos. Ofensas e grosserias se banalizaram em diversas esferas de convívio cotidiano. Esse tipo de atitude dificulta seriamente o diálogo democrático.

A simples eleição de uma figura que se comporta como o Sr. Jair Messias Bolsonaro ao cargo de Presidente da República já sugere que há algo de muito errado com o exercício da cidadania no Brasil. Não se trata aqui de discutir santidade, pureza ou qualquer coisa semelhante. Se trata meramente da capacidade de manter a mínima compostura na esfera pública - o que, diga-se de passagem, se espera de todo servidor público. Durante décadas a total falta de decoro parlamentar de Bolsonaro enquanto legislador foi tolerada, confirmando que na república brasileira não há limites para o despudor. Eleito Bolsonaro, o problema subiu a outro patamar.

No entanto, os Bolsonaro não estão sozinhos nisso. Esta é uma tendência muito mais ampla da sociedade brasileira, que se percebe em quase todos os lugares e ambientes. A noção de que a liberdade de cada indivíduo termina onde começa a do outro nunca se consolidou na cultura brasileira e essa carência só tende a piorar com a vida em grandes cidades caóticas, reforçada por uma mídia que muitas vezes endossa esse tipo de comportamento. Parece que estamos indo muito além da informalidade e da irreverência que o povo brasileiro sempre cultivou como um traço de espontaneidade e que, até certa medida, são saudáveis.

A formalidade e a cortesia são um verniz social que nos permite interagir com o mínimo de atrito com pessoas com as quais não temos intimidade, não nos sentimos à vontade ou cujo convívio nos desagrada. No entanto, enquanto coletividade, cultivamos justamente o oposto disso. Em grande medida, a grosseria e a falta de polidez são vistas como sinais de sinceridade, espontaneidade, autenticidade e mesmo de coragem. Muitos eleitores, embora desaprovassem certos comportamentos e atitudes do sr. Jair Bolsonaro os botavam na conta da sinceridade, como algo não apenas justificável, mas positivo.

Que fique bem claro, todavia, que não se trata de problema apenas de problema dos eleitores do clã Bolsonaro. Nos últimos anos se viu todo tipo de comentário despropositado e injustificável por parte de seus opositores. Muita gente que se queixava de atitudes machistas para com Dilma Roussef não via problemas quando o alvo da piada fosse Marcela Temer, Michelle Bolsonaro, Janaína Paschoal ou qualquer outra figura do campo "rival".

Não se trata de estabelecer uma falsa simetria a pretexto de equanimidade. Bolsonaro e seus eleitores mais entusiastas ultrapassam e muito os limites do que seria tolerável e admissível - ainda mais de gente que se jacta de ser cristã, defensora da moral e dos bons costumes. Não custa enfatizar ainda uma vez: Bolsonaro não criou o problema, o elevou a outro patamar e lhe deu uma visibilidade inédita - dentro e fora do Brasil.

Não há democracia que se sustente sem respeito entre os cidadãos. Parece que Eduardo Bolsonaro sentiu isso na própria carne - sentiu tanto que precisou recorrer a arbitragem judicial. 

O que convém desde já indagar é se queremos que as coisas continuem assim ou se deixaremos que piorem ainda mais. Sanear o debate político em nosso país é tarefa que cabe a cada um de nós, não apenas na relação com o outro, mas na reflexão sobre nossas próprias atitudes. Se cada um de nós se observar com a devida atenção, constatará que ainda temos muito a melhorar em nosso trato com nossos concidadãos.



O "Eu" que não fala de mim

Dedicado a minha prima Leilane

Semana passada completei 38 anos de idade. No dia de meu aniversário recebi por WhatsApp a fotografia abaixo, enviada por minha prima Leilane e acompanhada de um meigo comentário: "Para aquecer seu coração, diretamente do túnel do tempo, o Luiz do passado vem saudar o Luiz do presente".

Nesta foto eu tinha cerca de um ano de idade (minha prima sequer era nascida). Não sei dizer se o local da fotografia era a varanda da casa de minha avó ou de seu irmão - ambos moravam na mesma vila e as fachadas das respectivas casas ainda permaneciam como originalmente construídas, em meados dos anos 50. A ausência de vasos de plantas, todavia, sugere que se trate da casa de meu tio-avô. Ao fundo da foto se percebem os contornos de dois adultos da família. Quem seria? Impossível identificar. A julgar por minha roupa, era uma ocasião festiva.

Mais que pela fotografia, em um primeiro momento me senti muito tocado pelo comentário de minha prima sobre o encontro entre o "Luiz do passado" e o "Luiz do presente". Um encontro entre eu e eu mesmo.

Olhando para o menino na foto e pensando na fala de Leilane, me peguei meditando sobre uma indagação de Derrida em uma antiga entrevista: "qui est ce 'Moi' qui parle de moi-même"? Embora não seja apreciador da obra de Derrida, assistindo a entrevista, a formulação do questionamento, um tanto perdida na algaravia costumeira ao filósofo, me pareceu muito feliz: quem é o "Eu" que fala de mim mesmo? 

Evocando o questionamento de Derrida, a singela fotografia me pareceu a um só tempo extraordinariamente familiar e curiosamente estranha. Quem era esse "Luiz do passado", com o indicador na boca, como a cutucar um dente, contemplado pelo "Luiz do presente"?

À época da foto eu já caminhava e, segundo fontes fidedignas, falava pelos cotovelos. A crer nas pessoas de minha família, fui muito precoce no desenvolvimento da fala. Em pouco tempo usava um vocabulário considerável e falava com uma articulação e desenvoltura incomuns para minha idade.

E, no entanto, que falava esse menino da fotografia? Mais ainda, que pensava ele? Com o dedo na boca e a encarar a lente da câmera, que pensava ele? Ou ainda, como pensava ele? Que tortuosos processos cognitivos se arranjavam na mente daquele ser falante? Quem era aquele "Eu" que não sou mais? Impossível saber.

Apesar da linguagem supostamente desenvolta, aquela mente pensante deixou poucas memórias nítidas. E, no entanto, a mente que redige essas linhas necessariamente partilha de muita coisa pensada por esse "Luiz do passado". Ao distinguir esta e aquela mente penso como Heráclito - a mente em devir nunca é igual a si mesma; talvez o próprio fato de pensar em si mesma já a faça diferente, gerando cada vez mais instâncias de metacognição, como uma imagem refletida por infinitos espelhos ou como uma gravura de Escher.

Qual era exatamente a extensão do vocabulário dessa criança seria impossível dizer, mas foi certamente nessa época que aprendi muitas das palavras que ainda hoje emprego. Esse núcleo mais primário da linguagem, alguns verbos, substantivos, advérbios faz parte do patrimônio que compartilhamos - mais ainda, do patrimônio cognitivo a mim legado por esse "Luiz do passado".

Duas palavras que certamente já deviam integrar meu vocabulário a essa altura eram os advérbios "sim" e "não". Mas que significavam essas palavras para esse "Luiz do passado"? Antes de tudo, suponho, instrumentos para manifestar ao mundo sua vontade. No "sim" e no "não" há uma consciência que emerge para a vida, um aceitar e um recusar certos modos de se relacionar com o mundo ao redor.

Segundo minha mãe, ao começar a falar, passei a rejeitar sistematicamente certos alimentos que antes consumia passivamente (entre os quais peixe e banana, aos quais voltarei). Como toda criança, descobria e formava meu paladar. A descoberta, ou mais propriamente revelação, dos alimentos que nos agradam ou não talvez seja um de nossos primeiros passos rumo ao autoconhecimento e à consciência de nós mesmos. Mas, muito antes da consciência de nós mesmos, um gesto de recusa ativa ao que o mundo - aí manifesto pela família - nos oferece e impõe. 

Um gesto primordial em que começamos o lento, incessante e interminável movimento pelo qual demarcamos um espaço entre o "eu" e os "outros". Obviamente permanecemos na condição de dependentes e comensais daqueles que nos alimentam. No entanto, deixamos gradativamente nossa posição de receptores passivos. 

A recusa é também um gesto de seleção. Uma seleção intuitiva, mas um vago despertar do "eu" que se demarca do "outro" através de uma vontade que ainda não se sabe vontade, mas que já se manifesta - mesmo sem palavras, muito antes das palavras. Na primeira vez que cada um de nós cospe um alimento desagradável se esboça instintivamente uma reação contra uma vontade que se impõe a nós - uma vontade à qual provavelmente antes cedíamos incondicionalmente, inconscientes de nossa capacidade recusar.

O cuspir do alimento tem algo de qualitativamente distinto do choro do recém-nascido. Nesse primeiro chorar se manifesta um vago descontentamento de sede, fome ou dor, mas que não reconhece bem o objeto de sua desdita. O alimento que cuspimos, todavia, é algo muito concreto, um corpo estranho cujo contato nossa língua repudia. 

Assim como o Atoun de certa cosmogonia egípcia criava Geb, Nut e Rá - Terra, Céu e Sol - através de uma cusparada no "tempo da primeira vez", nessa cusparada a um tempo instintiva e voluntária iniciamos o parto de nós mesmos, sempre incompleto e provisório. Eis a maiêutica primordial, incessantemente repetida pela maioria dos seres humanos desde o alvorecer da humanidade - e provavelmente antes, por incontáveis hominídeos, mamíferos e sabe mais quantas categorias de seres que habitam esse mundo. 

Quando meu cão cospe ou afasta o focinho de um alimento que o desagrada estamos unidos por algo muito profundo, entrelaçado talvez em nosso DNA - possivelmente uma aquisição evolutiva para evitar a ingestão de substâncias potencialmente tóxicas. Em todo caso, o cuspir do bebê humano tem algo de filogenético e ontogenético - muito individual, mas que, em muitos sentidos, transcende nossa individualidade e mesmo nossa espécie.

Nessa rejeição se manifesta o "Não", mas se inscreve também o "Sim" - "não" e "sim" que a poética taoísta tantas vezes associa ao yang e ao yin. Talvez aceitação e rejeição constituam nosso mais visceral modelo de relacionamento com a realidade, possivelmente as forças que mais nos movem em nosso cotidiano e pelas quais se tramam as redes de nossa sociedade. Em mim há alguma consciência tanto daquilo que aceito quanto do que recuso. Atração e repulsa constituem boa parte do que somos. Quando não gostamos de algo, há indubitavelmente parte desse algo em nós.

"Sim" e "Não" são as bases de nossas escolhas, o próprio caminho de nossas vidas, desde seus primeiros estágios. Mas é superando tanto o "sim" quanto o "não" que somos mais plenamente livres. Bergson diferenciava liberdade e livre-arbítrio de modo muito curioso. Segundo ele, o livre-arbítrio seria meramente nossa capacidade de escolher entre opções que a vida nos oferece. A  liberdade em sentido mais pleno só emergiria realmente nos raros momentos em que criamos algo, nas situações em que entrevemos algo além das possibilidades que a vida põe diante de nós.

De certo modo é o que temos feito ao longo de toda nossa história. O ser humano é um ser que cria todo tipo de coisas novas, de artefatos a canções - homo faber; mas esse gesto de criar livremente é também um modo de driblar as limitações que a realidade nos impõe, um jogar no qual somos também homo ludens. O brincar é certamente um de nossos primeiros modos de interagir com o mundo e com nossos semelhantes, sempre anterior à fala. E também o brincar, ressaltava Huizinga, é algo que partilhamos com boa parte dos animais. Em seu magistral "Homo ludens", Huizinga sustenta que o jogar é onde nos fazemos mais plenamente humanos - "spielen", "jouer", "to play" são verbos que as línguas alemã, francesa e inglesa relacionam às mais diversas atividades - o jogo propriamente dito, mas também a música, o teatro, a adivinhação, o ritual - atividades em que nos sentimos quase sempre absortos, distanciados das atividades ordinárias da subsistência, em que nossas mentes se sentem libertas e envolvidas pela imaginação. Durante o momento do jogo, o que mais importa é o próprio folguedo, que nos absorve e envolve. 

Esse "Luiz do passado" que encontro na fotografia era já um ser brincante. Como brincava? Não sei, mas brincava.  Brincadeiras e brinquedos constituem as memórias mais vividas e intensas de minha infância - e suponho que se dê o mesmo para maioria de nós. No brincar nos fazemos plenamente livres, no sentido bergsoniano. Para a criança que brinca, a realidade se faz trampolim para a imaginação. Tudo pode ser qualquer coisa - uma vassoura se faz cavalo, um balde se faz cachorro, uma pedra pode ser uma motocicleta...

Com efeito, uma das memórias mais vívidas de minha primeira infância remete a uma viagem ao município fluminense de Santo Antônio de Pádua. Ao entardecer eu costumava brincar em uma pracinha onde uma pedra achatada, em minha imaginação, se transformava em uma potente moto - perfeitamente estática, mas ainda assim em intenso movimento, veloz como um meteoro. A pedra-moto e eu nos movíamos imaginariamente - e não tão imaginariamente, sincronizados que estávamos com os movimentos de rotação e translação planetária. 

Coisa estranha, uma moto-pedra! Como nossos ancestrais pré-históricos eu via uma pedra, e naquela pedra imaginava algo mais. E quantas coisas somos capazes de ver no perfil de pedras, montanhas, sombras, objetos e reflexos. Em nossa imaginação podemos sempre ver e criar um "algo mais". Com sua criatividade incendiada e flamejante, o homo ludens vislumbra um potencial que, com muito esforço, o homo faber faz emergir como algo concreto. Talvez naquela pracinha de Santo Antônio de Pádua, minha mente realizasse processos não muito diferentes daqueles de nossos ancestrais na Garganta de Olduvai.

Talvez a tal pedra ainda esteja por lá até hoje. Quantas outras crianças antes e depois de mim não projetaram sobre aquela pedra seus mais acalentados desejos? 

Em minha casa, no Rio, eu tinha meu velocípede, que em minha imaginação também se transformava em motocicleta. E, no entanto, as limitações do velocípede ficavam sempre evidentes, por mais vigorosas que fossem minhas pedaladas. A ilusão talvez se tornasse um pouco mais palpável quando descia a ladeira da vila, freando com os chinelos. Ladeira abaixo, o velocípede corria velozmente e sem esforço, mas a descida era breve, e a realidade logo se impunha. Qual pequeno Sísifo, precisava de novo e de novo puxar o velocípede ladeira acima para gozar daqueles vertiginosos segundos.

A moto-pedra, pelo contrário, por sua própria condição física, só podia se mover por virtude da imaginação, que desconhece limites. Em seu contorno achatado, vagamente reminiscente de uma motocicleta, a pedra se tornava suporte para o exercício ilimitado da imaginação.

Mas o "Luiz do passado" que desvairadamente passeava em sua moto-pedra era um outro "Luiz do passado", não o mesmo da fotografia. E, no entanto, o "Luiz do presente" consegue ao menos se recordar das sensações evocadas pelos passeios em moto-pedra - o sentar-me no "assento", o inclinar-me para frente, o agarrar os guidões imaginários, o estático acelerar, as onomatopeias emitidas, o balançar-me de um lado para outro, ao sabor das curvas fantasiadas... Sensações que, mesmo sentado diante do computador, meu corpo adulto consegue, de certa maneira, emular.

Em sua moto-pedra, aquele "Luiz do passado", sem o saber, era também ator e plateia, tudo de uma vez - um tanto como o "Luiz do presente" com os videogames que não consegue abandonar. Homo semper ludens. Do berço ao túmulo, de certo modo, o viver em sociedade é um perpétuo role playing game - daí talvez boa parte do fascínio que os RPGs, em suas mais diversas modalidades, exercem sobre os jogadores.

Mas, para além do patrimônio mental partilhado, que mais nos une, "Luiz do passado" e "do presente"? Luzes olhares.

No momento, contemplo não apenas uma fotografia, mas uma fotografia de uma fotografia - mais precisamente, uma fotografia digital de uma fotografia analógica. Jogo de luzes a se perpetuar por quase quatro décadas. Em algum momento, por volta de 1984 alguém apontou uma câmera para o "Luiz do passado" e, com um clique, fez com que o filme dentro do aparelho fosse impressionado pela luz que penetrava pela lente, tendo antes "tocado" o corpo daquele menino, assim como o espaço e as pessoas ao redor. Em um laboratório, por procedimentos químicos, a frágil imagem formada no filme foi transposta para papel fotográfico, guardando o registro daquela criança naquele efêmero instante.

Guardada por anos, a fotografia foi novamente fotografada, desta vez por minha prima que sequer era nascida na época em que o retrato original fora feito, provavelmente através da câmera de seu smartphone, desta vez impressionando um delicado "fotorreceptor" capaz de registrar a luz como pixels, codificados eles mesmos através do código binário, usando o padrão .jpeg, elaborado e convencionado pela indústria do software. Enquanto escrevo, visualizo essa imagem como luz projetada pela tela de meu notebook

Mas em cada etapa desse processo, ao longe de tantos anos, luz, sempre luz, impressionando tanto esses engenhosos artefatos humanos quanto, mais importante, nossas retinas e mobilizando nosso aparato cerebral, para que nossas mentes atribuam significado essa imagem de um menino. Convertida e reconvertida, sempre luz.

Mais importante que a luz, no entanto, é o olhar, menos como potência fisiológica que como modo de interação com o mundo. Através dessa imagem, como em um espelho mágico, o "Luiz do presente" contempla o "Luiz do passado". No entanto, alguém em 1984 olhou para aquele menino, apontou a câmera em sua direção e, com um clique, registrou aquele instante preciso, naquele exato ângulo. Quem era exatamente o fotógrafo? Difícil dizer; em todo caso, era alguém que tinha interesse e carinho por aquela criança, uma das inúmeras pessoas com as quais cresci e convivi.

E, naquele exato momento, o "Luiz do passado" olhava para aquela pessoa que fotografava, com um misto de atenção e curiosidade, como quem é repentinamente chamado, como se faz normalmente para fotografar crianças pequenas. A posição dos pés esquerdo e direito, apontando em direções ligeiramente diferentes sugere a interrupção do caminhar. Provavelmente ele não tinha muita consciência de que naquele exato momento se formava uma imagem dele mesmo em um filme fotográfico. Nos anos que se seguiriam, por sinal, câmeras fotográficas permaneceram para mim objetos muito cobiçados aos quais, todavia, os adultos me negavam acesso; só muito mais tarde me foi permitido e manusear câmeras - um objeto frágil e caro, assim como relativamente caro era o próprio filme que registrava as imagens; nenhuma pose devia ser desperdiçada, algo inimaginável nesse tempo em que podemos produzir milhares de fotografias por dia a custo irrisório, fotografias cuja proliferação quase descontrolada, pulsional até, parece tornar menos e menos preciosas.

O menino fotografado ainda permitia que seus cabelos fossem penteados, e estes eram muito mais claros do que se tornaram ao longo dos anos, acompanhando as mudanças de seu metabolismo. O "Luiz do presente" começa a ter fios brancos un peu partout e uma calvície que começa a se mostrar com mais veemência. Ao longo dos anos fez as pazes com as bananas, mas continua muito reticente e seletivo no que diz respeito ao consumo de peixes. Algumas das barreiras que erguemos entre nós e o mundo ao longo da vida são mais duradouras que as outras. É através das pequenas e grandes aquiescências e desobediências que, ao longo da vida, tecemos nossa alma em sua singularidade. A cada "sim" e a cada "não" negociamos nossas fronteiras, sempre imaginárias, com o mundo e a vida.

Como a simbolizar essas barreiras e fronteiras, a emoldurar e separar o antes do agora, é possível perceber nas partes superior e inferior da imagem a superfície sobre a qual a antiga fotografia foi pousada para ser novamente fotografada. "Ceci n'est pas cela".

Há muita coisa que me aproxima e distancia deste "Luiz do passado" capturado pela fotografia. E é nesse constante movimento de aproximação e distanciamento que emerge "o 'Eu' que fala de mim mesmo", o pensamento que pensa a si mesmo. No entanto, todo esse pensamento se elabora a partir de um olhar composto por afetos sobrepostos - do misterioso fotógrafo, da prima carinhosa, do próprio "Luiz do presente". Olhar sempre portador de pensamentos, muitas vezes inconscientes, que não pensam a si mesmos - em certo sentido, o Eu que não fala de mim e, para bem ou para mal, permanece alheio a si mesmo... Virando a indagação de Derrida de ponta-cabeça, quem é o Eu-mesmo que permanece sempre além de mim?

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Era outra vez no Rio de Janeiro - A esperança resgatada por um gato

A vida tem maneiras curiosas de agir. Na última semana, minha esposa e eu tivemos o desprazer de testemunhar uma estarrecedora situação de caos e brutalidade urbana. Hoje, a Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro nos mostrou outra face, mais amável e benigna.

Desde a noite passada, por volta das 19 horas, se fez incessantemente ouvir um miado de gato filhote nas cercanias de nosso prédio. O bichano causava dó, miando e miando, ao que tudo indica durante a madrugada inteira. Quando despertamos hoje, por volta das 6 da manhã, o felino continuava com sua lamúria.

Mesmo preferindo cães a gatos, minha esposa e eu ficamos preocupados com o bichinho. Por volta das 9 da manhã os moradores da casa em frente saíram à rua em busca do animal. Da janela, vimos quando eles localizaram o animal, aparentemente preso dentro do capô de um carro. Eles tentaram resgatar o gato de várias maneiras - em vão. Cerca de meia-hora mais tarde, quando as tentativas de resgate de nossos vizinhos não alcançaram êxito, buscamos os serviços públicos.

Primeiro tentamos contato com a Prefeitura, pelo 1746. Fomos muito bem atendidos por uma simpática moça que, todavia, não tinha como ajudar, pois os abrigos municipais já se encontram lotados. Buscamos então o Corpo de Bombeiros. O atendente foi muito solícito ao tomar nota sobre o caso e avisou que o quartel mais próximo entraria em contato conosco assim que possível.

No meio da manhã, o gato parou de miar. Pensamos que talvez tivesse conseguido escapulir, estivesse dormindo ou, infelizmente, estivesse morto. No entanto, enquanto preparávamos o almoço, o "fulano" voltou a seu insistente miado. Cogitamos da possibilidade de empreender, nós mesmo, o resgate. No entanto, consultando sites de organizações de proteção aos animais, vimos que isso seria pouco aconselhável - poderíamos acabar nos machucando, ou ao animalzinho. A recomendação que encontramos era que se recorresse a serviços especializados, como os bombeiros ou a polícia.

Liguei novamente para a central dos bombeiros. Desta vez, pouco minutos depois recebi uma ligação: era um cabo do Corpo de Bombeiros, pedindo mais detalhes sobre o caso. Assim que passei as informações, ele disse que comunicaria o fato a sua oficial, que deliberaria sobre os procedimentos.  Para nossa imensa surpresa, menos de meia-hora depois um caminhão e uma caminhonete dos bombeiros paravam à frente de nosso prédio. Enquanto me arrumava para descer, minha esposa foi à varanda falar com os bombeiros.

Chegando à rua, os vizinhos da casa em frente já estavam na calçada, e um morador de nosso prédio também se aproximou para ajudar. Os cinco bombeiros se puseram a examinar o carro com uma lanterna, em busca do gato - na verdade, ele se movimentava livremente dentro do motor, assustado conosco. Meu vizinho de prédio conhecia o dono do automóvel (outro morador de nosso prédio) e, para abreviar a história, conseguiu entrar em contato telefônico com ele, que se encontrava muito longe e impossibilitado de vir abrir o capô do carro, mas autorizava os bombeiros a arrombarem o veículo para o resgate - o que, conforme um dos bombeiros esclareceu, eles poderiam legalmente fazer, com ou sem autorização.

Nesse ínterim eu encontrara o porteiro de nosso prédio, que afirmou que mais cedo outra moradora tentara regata-lo. A senhora teria colocado um pouco de comida, fazendo com que ele saísse de seu esconderijo, mas retornando logo depois, quando ela avançou para apanha-lo. Um outro passante relatou que o animal de fato não estava preso, pois também o tinha visto saindo e retornando ao motor. Diante dessas informações, os bombeiros acharam melhor não arrombar o carro, já que o gato conseguia sair por conta própria.

Pedi mil desculpas aos bombeiros por tê-los feito vir à toa, mas eles foram muito simpáticos ao se despedirem. Um deles me tranquilizou afirmando que eu os chamara "por uma boa causa". Do episódio ficou a excelente impressão de que nossos bombeiros estão realmente a postos para ajudar, com dedicação e empatia, em ocorrências grandes ou pequenas - e isso não é pouca coisa!

Mas a história não estava concluída. O animal passou o resto da tarde miando e, por volta das 17 horas, um bocado de pessoas se mobilizou para resgatar o felino. Da janela, minha esposa e eu acompanhávamos ansiosamente. Nessa segunda tentativa, nove pessoas chegaram a se mobilizar pelo animal.

Após cerca de uma hora e inúmera peripécias que seria cansativo descrever, o animal foi resgatado. Um filhotinho bem pequenino, de pelo malhado, um pouco assustado com tanta gente a seu redor - e, ainda assim, estranhamente dócil, aconchegado no casaco emprestado por uma adolescente que ajudava na "operação". Os bravos salvadores tiraram uma selfie com o animal, enquanto minha esposa e eu aplaudíamos de nossa janela.

Um final feliz de vez em quando é bom para alegrar o coração e acalentar a esperança - especialmente após o medonho episódio de confronto urbano de dias atrás.

Há algo indescritivelmente belo em ver tantos seres humanos mobilizados pelo bem-estar de um simples animalzinho. Ao longo do dia, nada menos que dezesseis pessoas se reuniram para ajudar o gatinho, em um gesto de solidariedade que atravessa as fronteiras entre espécies.

Do episódio me ficam dois pensamentos esperançosos: o primeiro é que, apesar de todo o sucateamento e caos na administração fluminense, nossos serviços públicos (e seus servidores) ainda conseguem agir em prol da coletividade; o segundo, e mais importante, o lembrete de que podemos ser mais que bestas furiosas, quando as circunstâncias despertam o melhor que há em cada um de nós. 

Quando abrimos nosso coração ao pequenino, ao vulnerável, quando nos mobilizamos em favor do necessitado, quem quer que seja ele, algo insondavelmente poderoso se manifesta em nós - a potência oculta, muitas vezes esquecida ou menosprezada, que costumamos chamar de "Amor".

Há algo de profundamente simbólico no gatinho encurralado dentro do motor de um automóvel - a natureza como que aprisionada no coração dos mecanismos de nossa civilização moderna. Mais que nunca, fico com a certeza de que apenas no Amor podemos encontrar as forças para vencer os tremendos desafios que nosso mundo impõe, com suas engrenagens frias e, muitas vezes, cruéis.

Como dizia Victor Hugo, "amar é agir", e na ação amorosa (com um pouquinho de paciência e engenhosidade) se manifesta uma força capaz de libertar o menor dos seres dos mais opressivos grilhões.