"Não ser ouvido não é razão para silenciar-se".
Victor Hugo
Entrando em fevereiro de 2021 as redes de ensino públicas e privadas do Brasil retomam suas atividades letivas e volta à baila a discussão sobre a possibilidade de um retorno "seguro" às atividades presenciais - com ou sem vacina. Apesar da verdadeira matança ocorrida em 2020, há quem teime em brincar com a vida (alheia).
Inúmeros gestores públicos se valem de comitês científicos para deliberar sobre protocolos de retorno. Há aí um imenso, colossal problema.
Ninguém, em sã consciência, há de negar os avanços e confortos que a ciência moderna proporcionou à humanidade. No entanto, nada disso faz de cientistas - e, portanto, comitês científicos - autoridades inquestionáveis em relação à gestão de riscos.
Não quero com isso desacreditar a valorosa contribuição dos cientistas em relação à gestão sanitária da pandemia. No entanto, cientistas geralmente são bons em sinalizar aquilo que é potencialmente perigoso, mas péssimos em garantir que algo é seguro. É mais fácil provar a existência de um grave perigo que provar a inexistência de uma ameaça - ou, em termos de lógica formal, "ausência de evidência não significa evidência de ausência".
Para ficar apenas com um exemplo recente, vimos há poucos anos a terrível tragédia nuclear de Fukushima, da qual o Japão ainda não se recuperou completamente.
O desastre de Fukushima é um alerta contra a arrogância científica. Examinando em retrospecto, chega a ser absurdo que comitês científicos permitissem o funcionamento de um obsoleto reator nuclear de circuito aberto justamente no litoral de um país tão vulnerável a terremotos e tsunamis. Fukushima era uma tragédia anunciada, mas cientistas garantiam que a operação da usina era "segura". O preço dessa arrogância se conta em milhares de mortos, vítimas de envenenamento radiativo e famílias desalojadas de seus lares, com suas vidas desfeitas pelo risco de exposição à radiação residual.
Luc Ferry, filósofo e ex-Ministro da Educação da França, em obra de 1992, já criticava a ilusão de que comitês científicos sejam capacitados a tomar decisões éticas com repercussões na vida de terceiros. Cientistas, quaisquer que sejam suas especialidades, estão aptos apenas a prestar esclarecimentos técnicos sobre sua área de atuação profissional. Isso não significa que lhes caiba decidir sobre os desdobramentos éticos de tais pareceres, mormente quando se trate de questões de vida ou morte. Os cientistas que garantiram a "segurança" operacional de Fukushima são responsáveis por todas as mortes e danos provocados pela usina.
Da mesma forma, quando um comitê científico subscreve as decisões de qualquer político a respeito de retomada de atividades educacionais presenciais ele se torna responsável por todos os enfermos e mortos em decorrência dessa situação, seja entre estudantes, profissionais da educação e respectivos familiares.
A situação se torna ainda mais perversa quando os gestores da educação tornam a decisão de retorno ao ensino presencial facultativa aos estudantes e suas famílias, mas lançam mão de recursos administrativos variados para pressionar os profissionais da educação a retomar suas atividades.
Tomo a liberdade de adaptar o testemunho* de uma amiga professora que adoeceu de COVID devido à atabalhoada retomada de atividades presenciais no segundo semestre de 2020:
Estou apavorada. Sofri com essa doença. Só eu sei o que passei. Quando foi dito novamente que tínhamos que ir à escola, não consegui dormir. Tive crises de ansiedade e pânico. Não sei, para mim, como será esse retorno. Meu médico me passou remédios para relaxar e dormir. Está muito difícil para mim. Ou perco minha sanidade ou perco meu sustento.
E temos aqui o cerne da questão. A profissional mencionada se sente ameaçada e coagida em sua subsistência a retomar suas atividades laborais, apesar de ter sofrido terrivelmente com a enfermidade. É exatamente por essa razão que cientistas não estão aptos a tomar decisões de ordem ética que afetem terceiros: é relativamente simples e fácil para um comitê científico definir protocolos sanitários "seguros" sem levar em consideração as complexas realidades vivenciadas em uma escola.
Afinal de contas, protocolos são apenas instruções redigidas e registradas em documentos, que muitas vezes não funcionam na realidade. E aqueles que redigem os protocolos, muitas vezes, não são aqueles cuja pele será posta em jogo pela aplicação dos mesmos. Como em Fukushima, aqueles que dizem o que é "seguro" não costumam ser os mesmos que arriscam suas vidas.
Para usar uma velhíssima analogia, são como generais que, no conforto de seus gabinetes, decidem sobre a vida de soldados lutando para sobreviver na trincheira. Qualquer ser humano com o menor escrúpulo percebe quão sórdida e perversa é essa situação.
O mínimo que comitês científicos e gestores educacionais poderiam fazer seria EFETIVAMENTE ouvir o que os profissionais com anos de experiência nas trincheiras escolares têm a dizer sobre a suposta eficiência e segurança de tais protocolos.
Mais ainda, é absurdo, injusto e mesmo indecente tornar o retorno facultativo aos estudantes, mas compulsório aos profissionais da educação. Isso significa simplesmente dizer que uns têm o direito a decidir sobre sua saúde, integridade física e, no limite, sua vida, enquanto a outros é negado esse direito.
É ainda mais paradoxal ver que tantos advogados de longa data do ensino remoto em condições "normais" se manifestam agora como intransigentes defensores da retomada de atividades educacionais presenciais e da importância da presença do estudante em sala de aula - em meio à pior crise sanitária global desde a Gripe Espanhola, com elevado risco de contágio.
Por fim, tudo que os profissionais da educação desejam é simplesmente o DIREITO de preservar a vida e a saúde deles mesmos, assim como de suas famílias. 2020 não foi um ano de ócio para os profissionais da educação; foi um período de intenso trabalho, tentando atender às necessidades dos estudantes sob as mais adversas condições.
Nenhum de nós - professores ou trabalhadores administrativos da educação - se recusa a trabalhar. Queremos apenas trabalhar em condições seguras para nós e nossos entes queridos.
O mero fato de ainda precisarmos lutar por esse direito diz muito sobre o modo como a sociedade realmente enxerga a educação e seus profissionais. Pouco adianta realizar homenagens piegas no Dia do Mestre quando nossa vida não é valorizada em um momento de crise sanitária. Não somos super-heróis nem sacerdotes; somos apenas profissionais dedicados à instrução da juventude - e é assim, com profissionalismo, que gostaríamos de ser tratados pela coletividade da qual fazemos parte.
*Texto ligeiramente modificado para preservar a privacidade de minha amiga.
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