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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Mente x Máquina - Vitória impossível?

 John Henry, well, he told his captain

“Captain, a man, he ain’t nothing but a man

Before I let your steam drill

beat me down

I’m gonna die with a hammer

in my hand, Lord, Lord

I’ll die with a hammer in my hand


A lenda do bravo trabalhador John Henry sempre me encantou desde a primeira vez em que ouvi falar dela em um gibi do Supernan, com meus 10 anos de idade. O fascinante personagem folclórico é um trabalhador negro que não aceita a supremacia da máquina e morre vitorioso em uma competição contra uma perfuratriz a vapor, usando apenas seu martelo.

Na última semana travei meu próprio duelo à la mort, com uma máquina e realizei mais de uma vez algo que sempre julgara impossível: vencer um jogo eletrônico em modo "gauntlet".

Como se sabe, o modo "gauntlet" consiste em lutar contra sucessivas ondas de adversários, com poucos recursos (ou nenhum) para recuperar os danos da batalha: o que significa um árduo confronto até a derrota, sem a menor chance de vitória - exceto uma,  como me dei conta ontem.

Embora já tivesse jogado inúmeros games em "gauntlet", me tornei um aficcionado pela modalidade com meus 13 ou 14 anos,  jogando o arquiclássico Golden Axe em meu então poderoso Pentium 166. Em minha ignorância, eu imaginava que após determinado número de ondas inimigas derrotadas, haveria algo como um final surpreendente ou um prêmio. Após inúmeras tentativas descobri que estava terrivelmente equivocado. Quanto mais longe prosseguia, mais adversários enfrentava, até a inevitável "morte" no campo de honra. Essa constatação me deixou imensamente frustrado,  especialmente após todo o esforço que dedicara à empreitada guerreira.

Nunca mais retornei a Golden Axe (exceto em exposições de games antigos), mas o modo gauntlet permaneceu em minha vida. Durante alguns anos, apenas como um passa-tempo bônus após a conclusão de algum game. No entanto, amadurecendo, percebi que enfrentar gauntlets significava enfrentar a mim mesmo e superar meus próprios limites.

Para se manter de pé onda após onda, cada vez mais longe, são necessários foco e determinação a resistir "sobrevivendo" até a derrota. O momento crucial de um gauntlet é o final da partida, em que a barra de energia (ou o que o valha) se encontra praticamente esgotada e qualquer golpe adversário significa o fim da daquela batalha. Nesse momento prevalece a clareza mental de que a derrota está próxima, mas emerge a firme determinação de resistir por quantas ondas ainda for possível. A iminência da destruição e a resolução de resistir, combinadas, levam a um paradoxal estado de espírito, serenamente tenso, em que conta apenas fazer o melhor possível pelo tempo possível. Quando o "golpe mortal" finalmente chega, é recebido com a tranquiliidade de quem fez o melhor a seu alcance em uma luta onde nunca houve a mínima chance de vitória. Chegou-se tão longe quanto possível em uma jornada infinita.

Com o passar do tempo, comecei a ver os gauntlets como uma alegoria da própria vida: um combate incessante onde o que conta é a determinação de enfrentar reoluta e graciosamente cada nova onda de desafios que chega. Cada onda vencida sem danos, ou com danos mínimos, pode ser considerada, em si, uma vitória. E, com efeito, um gauntlet consiste em uma longa sucessão de vitórias contra dezenas,  até centenas de adversários, até a queda. O mais importante é tirar o máximo proveito dos limitados recursos oferecidos no início da jornada para superar os desafios encontrados.

No entanto, para minha imensa surpresa, na última semana, após tantos anos, consegui o impossível - venci o modo gauntlet.

Em minha postagem anterior, "Acidentalmente épico", registrei o momento em que, pela primeira vez, atingira a 75ª onda de atacantes no modo gauntlet do jogo Thor - God of Thunder, um excelente "beat'em-up" retrô produzido pela Wayforward para o Nintendo DS. Adquiri o jogo em dezembro de 2012 e, desde então, tenho jogado muitas vezes, tanto no no modo "story" quanto no modo "gauntlet" (ou "survival", na terminologia própria do jogo). No entanto, no preciso momento em que superava  meus limites, a máquina encontrava os seus, e travou - o que frustrou minhas expectativas de lutar "até a morte", muito embora deixando uma bela imagem residual.

No entanto, encorajado por meus progressos e determinado a vencer ao menos 100 ondas, nos dias seguintes vim jogando e, quanto mais ondas de adversários eu conseguia superar, mais ocorriam problemas técnicos. Por mais duas ou três vezes o jogo travou e, em outras ocasiões o áudio experimentou falhas cumulativas - em geral, os efeitos sonoros de ataque e feedbacks diversos iam desaparecendo, até que sobrava apenas a trilha sonora de fundo.

Somente ontem, no mais árduo dos confrontos, me dei conta de algo: nos últimos dias eu vinha derrotando não apenas o software Thor - God of Thunder em seu modo gauntlet, mas também o próprio hardware do sistema Nintendo 3 DS - especialmente, imagino eu, sua memória RAM.

A partida de ontem foi aquela onde não apenas alcancei, mas superei minha meta, derrotando 104 ondas e sendo abatido na seguinte. Durante o confronto os efeitos sonoros se foram completamente e, em minha imaginação, comparei a situação à de um combatente ensurdecido pelo ruídos do campo de batalha. A analogia tem lá seu fundamento, uma vez que a perda do feedback sonoro durante a partida causa certo desconforto e desorientação, pela perda das costumeiras pistas auditivas.

Por volta da nonagésima onda me questionei se valia a pena seguir adiante, temeroso de que o sistema de meu DS, com seus mais de 8 anos de operação não resistisse ao esforço. Ainda assim, achei que valia a pena experimentar e a partida veio a bom termo, com minha derrota no centésimo quinto round.

Mas que pensar, efetivamente, de minha "vitória" sobre a máquina? Certamente há que se pensar em suas condicionantes. A principal delas, creio eu, é que o sistema, com oito anos de uso,  já não opera mais em sua máxima potência - afinal de contas,  cedo ou tarde a entropia se faz sentir. Nesse sentido, há que se pensar mais em derrota do sistema que em vitória do usuário.

No entanto, ainda aqui há uma curiosidade: meu "hardware", por assim dizer, tem 28 anos de "uso".a mais que meu Nintendo. Não obstante, em nossas respectivas capacidades de processamento de informação, via interface de jogo, eu permaneci funcional,  enquanto o console entrou em colapso sistêmico.

Por banal que seja esse episódio,  me parece quase alentador "vencer a máquina" em tempos em que muitos advogam a substituição do humano em tantas tarefas demasiadamente humanas. Certo contemporâneo de Ford dizia que eram necessários trabalhadores baratos para operar máquinas caras. Infelizmente notamos que a mentalidade industrial pouco mudou nesses últimos 100 anos.

Apenas tardiamente me dou conta de que tanto Thor quanto John Henry travam suas respectivas batalhas usando martelos - uma das mais arcaicas, simples e eficientes ferramentas humanas. 

Não estranha que os antigos escandinavos e os trabalhadores dos EUA tenham associado o martelo a seus heróis míticos e folclóricos - afinal de contas, há pouco de heroico nas aventuras de uma perfuratriz a vapor, mas um humano com um martelo apela à imaginação, ainda que se trate apenas do Chapolim Colorado com sua marreta biônica. Não contavam com nossa astúcia!




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