Com alguma "presença de espírito", me interroguei: o que a música de John Williams fazia ali naquele momento? Que relação oculta poderia existir entre uma fantasia especial e um romance semi-histórico situado na América do Sul quinhentista? Que estranhas conexões os substratos mais obscuros de minha mente estabeleciam à revelia de meu ego consciente?
Relendo o parágrafo onde me encontrava, formulei uma hipótese. Narra Saer:
A la mañana siguiente, el oficial me volvió a interrogar, señalándome las orillas y, com ademanes, le expliqué que el caserío no estaba lejos y, como estábamos cerca de la borda, comprobé que durante la noche otra nave había anclado cerca de la nuestra. De la segunda, varias embarcaciones cargadas de hombres armados se aproximaban a la nuestra, en la que también la tripulación se preparaba (SAER, p. 130).
Assim como Luke Skywalker e seus companheiros, os espanhóis do romance se preparavam para uma expedição militar. Uma hipótese plausível com que trabalhar.
Há que se notar que tal conexão seria de ordem meramente - talvez totalmente - semântica. No plano propriamente sensorial há muito pouco em comum entre a narrativa de Saer e a música de Williams.
Em primeiro lugar, a distância linguística entre o inglês do filme e o espanhol do livro. Em segundo lugar, a evidente distância entre as linguagens envolvidas, literária de um lado, audiovisual do outro. Not least, mesmo no plano "visual" há considerável diferença entre uma memória visual envolvendo naves espaciais e a "imagem mental" de uma expedição fluvial - ainda aqui, a semelhança remete mais ao plano semântico que ao sensorial. Afinal de contas, "starships" não são exatamente "embarcaciones".
Outra questão também parece interessante: por que um estado introspectivo tão peculiar emergiria precisamente durante essa leitura? Suspeito que o próprio tom instrospectivo da narrativa de Saer, com nuances que eu diria vagamente proustianas ou bergsonianas, tenha me induzido a um estado propício a esse tipo de coisa.
Enfim, é o tipo de coisa que convida a pensar, sem dúvida com algum parti pris, que há muito mais entre nosso cérebro e nossa consciência que suspeitam nossas vãs teorias psicológicas fisicalistas. Tudo isso me lembra uma (longa) provocação de C.S. Lewis que li na semana passada:
Na visão naturalista plena, todos os eventos são determinados por leis. Nosso comportamento lógico, ou seja, os pensamentos e o comportamento ético, incluindo ideais bem como atos de vontade, são governados por leis bioquímicas; elas, por sua vez, são dirigidas por leis físicas, que são declarações atuariais sobre os movimentos anárquicos da matéria. Essas unidades nunca pretenderam gerar o universo regular que vemos. A lei das médias (sucessora da exiguum clinamen de Lucrécio) o produziu a partir da colisão das variações aleatórias em movimento. Os elementos químicos da Terra e o calor do Sol, juntos, geraram essa inquietadora enfermidade da matéria: a organização. A seleção natural, operando nas mínimas diferenças entre um organismo e outro, mexendo com o tipo de fosforescência ou miragem que chamamos de consciência - que, em determinados córtices, sob certos crânios, ainda em obediência a leis físicas, agora filtradas por leis mais complexas, assume a forma que chamamos de pensamento. Essa foi, por exemplo, a origem deste ensaio, e também a origem do ensaio do professor Price. O que deveríamos chamar de "pensamento" não passa do último elo de uma cadeia casual, em que todos os elos precedentes foram irracionais. Ele falou daquela forma porque a matéria de seu cérebro se comportou de determinada forma, e toda a história do universo, até o presente momento, o forçou a se comportar assim. O que chamamos de pensamento é, essencialmente, fenômeno semelhante às outras secreções - a forma que o vasto processo irracional da natureza determinou para acontecer em tempo e espaço específicos.
Claro que nem ele nem nós percebemos isso enquanto estava acontecendo. Ele acreditava estar estudando a natureza das coisas, estar consciente, de certa forma, das realidades, inclusive sobressensoriais, fora de sua cabeça. Caso o naturalismo estrito esteja certo, todavia, Price se engana - ele estava apenas desfrutando de reflexo consciente de eventos irracionalmente determinados que ocorriam dentro de sua cabeça. Ele acreditava que seus pensamentos (nome que ele dava) poderiam ter relações com as realidades externas que chamamos de verdadeiro ou falso, embora, de fato, não são mais do que sombras de eventos cerebrais, não seja fácil perceber que poderiam ter qualquer relação que não fosse casual com o mundo exterior. E, quando o professor Price defendia os cientistas, comentando a devoção à verdade e a escolha da melhor luz que conhecem, pensou estar escolhendo uma atitude de obediência a um ideal. Ele não pensou que sofria apenas de uma reação determinada por fontes totalmente amorais e irracionais, tão aptas a decidir entre o certo e o errado quanto um soluço e um espirro.
Teria sido impossível para o professor Price escrever, e para nós lermos, seu ensaio com o mínimo interesse se ele e nós tivéssemos, conscientemente, defendido a posição do naturalismo estrito o tempo todo. Mas podemos avançar mais. Seria impossível aceitar o naturalismo caso acreditássemos nele real e consistentemente. O naturalismo é um sistema de pensamento, porém, para ele, pensamentos não passam de eventos com causas irracionais. De qualquer forma, considero impossível tomar os pensamentos que criaram o naturalismo dessa forma e, ao mesmo tempo, enxergá-los como discernimento real de uma realidade externa. Bradley fez a distinção entre ideia-evento e ideia-criação, mas parece-me que o naturalismo considera as ideias como simples eventos. O significado é uma relação de um tipo totalmente novo, tão remoto, misterioso e obscuro para o estudo empírico quanto a alma.
Talvez isso possa ser colocado de forma ainda mais simples. Cada pensamento particular (seja ele julgamento de fato ou de valor) pode ser abandonado sempre e por todos os homens no momento em que pode ser explicado por completo como resultado de causas irracionais. Sempre que você sabe que o que outra pessoa diz se deriva totalmente de suas complexidades ou de um pedaço de osso que pressiona seu cérebro, você deixa de dar importância ao que foi dito. Se o naturalismo, porém, fosse verdadeiro, então, todos os pensamentos seriam igualmente sem valor. Se for verdade, então não há como conhecer verdades. Ele corta a própria garganta.
Lembro-me de certa vez terem me mostrado um tipo de nó que se desfazia se você tentasse amarrá-lo mais, e você acabava apenas com um pedaço de barbante na mão. O mesmo acontece com o naturalismo. Ele avança sobre um território após outro. Primeiro o inorgânico, depois os organismos inferiores, em seguida o corpo humano e, então, suas emoções. Quando, porém, dá o passo final e busca a explicação naturalista do pensamento, de repente o nó se desfaz. O último passo, fatal, invalida todos os precedentes: trata-se de raciocínio, que havia sido descartado. Portanto, precisamos abrir mão do pensamento, ou então começaremos de novo, da estaca zero (LEWIS, pp. 137-140).
Obras citadas
Juan José SAER. El entenado. Buenos Aires: Booket, 2012.
C.S. LEWIS. Compeling Reason*. São Paulo: Pórtico, 2017.
*Me recuso a utilizar o título "autoajudeiro" dado à tradução brasileira, Ética para viver melhor - Diferentes atitudes para agir corretamente.
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