Coluna publicada no jornal O Globo (27/03/2016)
Vivi a crise de 1964 como estudante universitário em Belo Horizonte. Mais tarde, o distanciamento permitiu-me pensar melhor sobre o que se passara. Impressionou-me o rápido processo de radicalização e polarização política por que passou o país, comandado pelas lideranças de Carlos Lacerda, de um lado, e Leonel Brizola, do outro. Brizola ainda disputava corrida com o presidente João Goulart pela liderança sindical e popular. A polarização parece ter ganhado força própria e desaguou na ruptura institucional. No entanto, pesquisas de opinião pública feitas na época pelo Ibope indicavam o moderado Juscelino Kubitschek como o favorito a vencer as eleições presidenciais de 1965. Incapaz de achar resposta científica para o fenômeno, ocorreu-me a conhecida frase "Os que deseja destruir, Júpiter primeiro os enlouquece". Desconfiei que um deus cruel andara por estas bandas divertindo-se em nos enlouquecer e em jogar com nossos destinos.
A história nunca se repete, nem como tragédia, nem como farsa. Mas isto não impede que certas dinâmicas possam estar presentes em diferentes crises políticas, sobretudo nas que levam ao desastre. Um deles é o que se verificou em 1964: a radicalização e polarização das opiniões em dois campos irreconciliáveis, igual à que estamos vivendo hoje. José Bonifácio dizia que a sã política era filha da moral e da razão. Ninguém lhe deu ouvidos. Hoje, a moral se foi e a razão foi junto. Entramos de novo em enlouquecida marcha de insensatez que exclui o diálogo e a negociação. Os adversários não têm mais nomes, mas apelidos insultantes: são petralhas e coxinhas, corruptos e golpistas; o vocabulário comum está a desaparecer: impeachment, procedimento legal para afastar governantes, virou golpe; qualquer manifestação de rua, de cem mil ou um milhão, vira a voz do Brasil (que tem 200 milhões de habitantes). As universidades, onde, em tese, o teor de racionalidade deveria ser mais alto, são talvez os piores exemplos de intolerância entre colegas, alunos, funcionários. O ódio invade e envenena todos os espaços de convivência, a família, o trabalho, o lazer, as ruas, as mídias, as redes sociais. Nunca antes o Brasil foi tão cordial, no sentido de ser movido pelas paixões do coração.
Para acrescentar mais um exemplo histórico, polarização houve também em 1954. Mas então ainda havia heróis trágicos em nossa política: o suicídio de Vargas derrotou Júpiter e salvou as instituições. Em 1964, havia restos de virtú política, mas não havia heróis trágicos e sobravam fatores agravantes como a Guerra Fria e a presença militar. O presidente imitou o ato de seu homônimo português em 1807 e as instituições naufragaram. Hoje, quando não temos os dois agravantes e viemos de 30 anos de prática democrática, inclusive com um impeachment, deveria ser possível resistir ao fascínio da voragem da desrazão. Mas não é o caso. Os anos de governo militar dizimaram os estadistas e deslegitimaram a própria atividade política. A grande invasão de povo na política e nas redes sociais não foi acompanhada da capacidade de organização e de liderança.
Entre as saídas possíveis, nenhuma é satisfatória. Só há as ruins e as menos ruins. A pior de todas, a intervenção militar, parece descartada, o que não impede que as Forças Armadas possam, dentro da lei, ser chamadas para manter a ordem em caso de conflitos violentos. A renúncia da presidente é improvável: ela certamente não tem vocação para heroína trágica. Um eventual impeachment mudará o governo, mas o conflito e a polarização continuarão, apenas com sinal trocado: quem jogava pedra vai virar vidraça e vice-versa. A sobrevivência da presidente, por sua vez, significará o alongamento da paralisia governamental, com todas as consequências desastrosas para a economia do país. Não há luz no fim do túnel.
Sem melhor explicação, e talvez com a razão já afetada, desconfio que Júpiter tenha voltado a se divertir à nossa custa.
José Murilo de Carvalho é historiador
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