Oferecido à amiga Lorraine Janis
"Pedreiro que pedalava 42km para estudar se forma em Direito"
O exemplo de vida é respeitável; o que não dá para aturar é o modo
como a mídia se apropria desses casos para justificar o ideal
meritocrático. Segundo essa lógica, há pessoas que "merecem" viver com um salário mínimo de
miséria porque não "quiseram" estudar ou não se "esforçaram" para
"conquistar" uma posição "melhor" na vida.
Aliás, a reportagem em questão não discute de maneira crítica quais são as deficiências do sistema público de transporte que fazem com que uma pessoa prefira pedalar 42km para ir à universidade a pagar uma passagem de valor provavelmente exorbitante. Por outro lado, quem não tem dinheiro para pagar a passagem nem disposição ou saúde para pedalar 42km para estudar, deve ser um tremendo preguiçoso que merece mesmo ganhar esse salário mínimo. Por sinal, alguém tem ideia do que é pedalar 42 km? É quase um quarto de etapa do Tour de France ou qualquer outra competição ciclística de alto nível!!! Nenhuma pessoa deveria passar por algo assim para exercer seu direito constitucionalmente garantido de estudar.
Voltando ao problema da meritocracia, todo trabalhador
realiza uma atividade útil e importante para a coletividade, e merece
ganhar um salário digno. Não há "estudo" ou "esforço" que justifique as
disparidades salariais vexaminosas que existem na sociedade brasileira. Adoramos elogiar as sociedades europeias (ocidentais), mas não estamos nem de longe dispostos a pagar o salário de um lixeiro holandês ou a diária cobrada por uma diarista francesa.
Pior ainda, esse tipo de discurso escamoteia o sucateamento do sistema
escolar público, transformando o "sucesso" ou o "fracasso" em meros
resultados da "força de vontade" individual - como se não existissem salas de aula superlotadas, violência escolar, pressões políticas e até mesmo salariais para aprovação compulsória de alunos (beirando a intimidação), desvalorização salarial e social do professor, falta de profissionais de apoio nas escolas... Etc, etc, etc.
É particularmente irônico enaltecer esse tipo de exemplo num momento em que algumas redes públicas de ensino de nossa Pátria Educadora [sic] cogitam encerrar sumariamente programas de educação de jovens e adultos ou de ensino noturno para cortar despesas.
Em suma, o discurso meritocrático troca a política pelo moralismo individualista, como se as disparidades sociais fossem um problema moral e pessoal, e não uma questão de ordem pública e coletiva.
Vale também
questionar o modelo de pessoa "bem sucedida" articulado nesses
discursos. Do meu ponto de vista, um faxineiro analfabeto que seja uma
boa pessoa, bom amigo, bom filho, bom marido, bom pai, bom vizinho etc é
uma pessoa muito bem sucedida (sem aspas) no que realmente importa.
Conheço muitos bacharéis, mestres e doutores, bem estudados e remunerados, que são um verdadeiro
fracasso humano...
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