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sábado, 12 de setembro de 2015

Livros queimados e outros atos de barbárie

Extrato do discurso do Capitão Beatty no visionário Fahrenheit 451, clássico de Ray Bradbury, que em 1953 imaginava um futuro onde a função dos bombeiros (firemen) não seria apagar incêndios, mas queimar livros...

"Todo bombeiro, cedo ou tarde, passa por isso. Eles só precisam compreender, saber como as rodas giram. Precisam conhecer a história de nosso ofício. Essa história não é contada para os recrutas, como costumavam fazer. Uma grande lástima. [...] Hoje, só os bombeiros-chefes se lembram disso. [...]

Você pergunta: quando tudo começou, esse nosso trabalho, como surgiu, onde, quando? Bem, eu diria que ele realmente começou por volta de uma coisa chamada Guerra Civil, embora nosso livro de regras afirme que foi mais cedo. O fato é que não tivemos muito papel a desempenhar até a fotografia chegar à maioridade. Depois, veio o cinema, no início do século vinte. O rádio. A televisão. As coisas começaram a possuir massa. [...]

E porque tinham massa, ficaram mais simples. [...] Antigamente, os livros atraíam algumas pessoas, aqui, ali, por toda parte. Elas podiam se dar ao luxo de ser diferentes. O mundo era espaçoso. Entretanto, o mundo se encheu de olhos, cotovelos e bocas. A população duplicou, triplicou, quadruplicou. O cinema e o rádio, as revistas e os livros, tudo isso foi nivelado por baixo, está me acompanhando? [...]

Imagine o quadro. O homem do século dezenove com seus cavalos, cachorros, carroças, câmera lenta. Depois, no século vinte, acelere sua câmera. Livros abreviados. Condensações. Resumos. Tablóides. Tudo subordinado às gags, ao final emocionante. [...]

Clássicos reduzidos para se adaptarem a programas de rádio de quinze minutos, depois reduzidos novamente para uma coluna de livro de dois minutos de leitura, e, por fim, encerrando-se num dicionário, num verbete de dez a doze linhas. Estou exagerando, é claro. Os dicionários serviam apenas de referência. Mas, para muitos, o Hamlet, certamente você conhece o título, Montag; provavelmente a senhora ouviu apenas uma vaga menção ao título, senhora Montag, o Hamlet não passava de um resumo de uma página num livro que proclamava: Agora você finalmente pode ler todos os clássicos; faça como seus vizinhos. Está vendo? Do berço até a faculdade e de volta até o berço; este foi o padrão intelectual nos últimos cinco séculos ou mais. [...]

Acelere o filme, Montag, rápido. Clique, Fotografe, Olhe, Observe, Filme, Aqui, Ali, Depressa, Passe, Suba, Desça, Entre, Saia, Por Quê, Como, Quem, O Quê, Onde, Hein?, Ui! Bum! Tchan! Póin, Pim, Pam, Pum! Resumos de resumos, resumos de resumos de resumos. Política? Uma coluna, duas frases, uma manchete! Depois, no ar, tudo se dissolve! A mente humana entra em turbilhão sob as mãos dos editores, exploradores, locutores de rádio, tão depressa que a centrífuga joga fora todo pensamento desnecessário, desperdiçador de tempo! [...]

A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas? [...] O zíper substituiu o botão e o homem não tem muito tempo para pensar ao se vestir pela manhã; uma hora filosófica e, por isso, melancólica. [...] A vida se torna um grande tombo de bunda no chão, Montag; tudo é pum, rá e uau! [...]

Tirar tudo dos teatros, exceto os palhaços, e instalar nas salas paredes de vidro e nelas fazer passar muitas cores alegres, como confetes, sangue, vinho tinto ou branco. Você gosta de beisebol, não gosta, Montag? [...] Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar, não é? Organizar, tornar a organizar e superorganizar super-superesportes. Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos. Impaciência. Rodovias cheias de multidões que vão pra cá, pra lá, a toda parte, a parte alguma. Os refugiados da gasolina. Cidades se tornam motéis, as populações em surtos nômades, de um lugar para o outro, acompanhando as fases da lua, vivendo esta noite no quarto onde você dormiu hoje até o meio-dia e eu a noite passada. [...]

Agora tomemos as minorias de nossa civilização, certo? Quanto maior a população, mais minorias. Não pise no pé dos amigos dos cães, dos amigos dos gatos, dos médicos, advogados, comerciantes, patrões, mórmons, batistas, unitaristas, chineses de segunda geração, suecos, italianos, alemães, texanos, gente do Brooklyn, irlandeses, imigrantes do Oregon ou do México. Os personagens desse livro, dessa peça, desse seriado de tevê não pretendem representar pintores, cartógrafos, engenheiros reais. Lembre-se, Montag, quanto maior seu mercado, menos você controla a controvérsia! Todas as menores das menores minorias querem ver seus próprios umbigos, bem limpos. Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever! Eles o fizeram. As revistas se tornaram uma mistura insossa. Os livros, assim diziam os malditos críticos esnobes, eram água de louça suja. Não admira que parassem de ser vendidos, disseram os críticos. Mas o público, sabendo o que queria, com a cabeça no ar, deixou que as histórias em quadrinhos sobrevivessem. E as revistas de sexo em 3D, é claro. Aí está, Montag. A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus. Hoje, graças a elas, você pode ficar o tempo todo feliz, você pode ler os quadrinhos, as boas e velhas confissões ou os periódicos profisssionais.

-Sim, mas onde entras os bombeiros nisso tudo? - perguntou Montag.

-Ah - Beatty inclinou-se, varando a rala névoa de fumaça de seu cachimbo. - Nada mais simples e fácil de explicar! Com a escola formando mais corredores, saltadores, fundistas, remendadores, agarradores, detetives, aviadores e nadadores em lugar de examinadores, críticos, conhecedores e criadores imaginativos, a palavra "intelectual", é claro, tornou-se o palavrão que merecia ser. Sempre se teme o que não é familiar. Por certo você se lembra do menino de sua sala na escola que era excepcionalmente "brilhante", era quem sempre recitava e dava as respostas enquanto os outros ficavam sentados com cara de cretinos, odiando-o. E não era esse sabichão que vocês pegavam para cristo depois da aula? Claro que era. Todos devemos ser iguais. Nem todos nasceram livres e iguais, como diz a Constituição, mas todos se fizeram iguais. Cada homem é a imagem de seu semelhante e, com isso, todos ficam contentes, pois não há nenhuma montanha que os diminua, contra a qual se avaliar. Isso mesmo! Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma brecha no espírito do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido? Eu? Eu não tenho estômago para eles, nem por um minuto. E assim, quando as casas finalmente se tornam à prova de fogo, no mundo inteiro [...], já não há mais necessidade de bombeiros para os velhos fins. Eles receberam uma nova missão, a guarda de nossa paz de espírito, a eliminação de nosso compreensível e legítimo senso de inferioridade: censores, juízes e carrascos oficiais. Eis o nosso papel, Montag, o seu e o meu. [...]

Você precisa entender que nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que nossas minorias sejam transtornadas e agitadas. Pergunte a si mesmo: O que queremos nesse país, acima de tudo? As pessoas querem ser felizes, não é certo? Não foi o que você ouviu durante toda a vida? Eu quero ser feliz, é o que diz todo mundo. Bem, elas não são? Não cuidamos para que sempre estejam em movimento, sempre se divertindo? É para isso que vivemos, não acha? Para o prazer, a excitação? E você tem de admitir que nossa cultura fornece as duas coisas em profusão. [...]

Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabana do Pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro. Serenidade, Montag. Paz, Montag. Leve sua briga lá para fora. Melhor ainda, para o incinerador. Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os também. Cinco minutos depois que uma pessoa morreu, ela está a caminho do Grande Crematório, os incineradores atendidos por helicópteros em todo o país. Dez minutos depois da morte, um homem é um grão de poeira negra. Não vamos ficar arengando os in memoriam para os indivíduos. Esqueça-os. Queime tudo, queime tudo. O fogo é luminoso e o fogo é limpo. [...]

Não se pode construir uma casa sem pregos e madeira. Se você não quiser que se construa uma casa, esconda os pregos e a madeira. Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem da letra das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra de milho do ano anterior. Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo que peço é um passatempo sólido".

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