Em meu primeiro semestre de graduação tive de ler "Que é História?", de E. H. Carr. O autor comentava que na Idade Moderna o trabalho dos primeiros cientistas era frequentemente visto com desdém, por ser associado aos ofícios manuais, atribuídos à plebe. Essa informação me causou grande estranhamento na época, não devido ao menosprezo pelos manopera comum ao Antigo Regime, que já me era familiar. O que então me pareceu surpreendente foi essa associação entre a pesquisa científica e o trabalho braçal, tão diferente da concepção que temos hoje do cientista, enquanto intelectual, pioneiro do conhecimento. Desde então, me tornei mais familiar à ideia, através de leituras realizadas nesses últimos anos. Contudo, essa semana, pude finalmente compreender com toda a clareza!
A noite estava estrelada, ostentando uma belíssima Lua. Me lancei às atividades de astrônomo amador. Foi então que percebi o quanto necessitava me deslocar, movimentar o telescópio para um lado e outro, mexer daqui, dali e dacolá, puxar e empilhar cadeiras, sentar no chão ou me acocorar... Tudo isso para conseguir focalizar devidamente os corpos celestes que pretendia observar. De fato, por mais intelectual que tal atividade possa parecer, me dei conta da quantidade de trabalho braçal que ela envolve!
Comecei a pensar em outros casos, imaginando os primeiros anatomistas abrindo cadáveres... Que pensaria um aristocrata vendo Vesalius com um avental imundo de sangue, como um açougueiro? Ou os primeiros microbiologistas? Certamente a figura de Spalanzani fervendo caldos para cultura de bactérias, suando esbraseado pelo calor de um fogareiro não devia parecer muito lisonjeira a um fidalgo penteado, perfumado e bem vestido! Enfim, a própria imagem de um laboratório dessa época devia parecer aos nobres uma desagradável mistura de oficina, cozinha e açougue...
A questão é ainda mais marcante se pensarmos nas concepções sobre essência e aparência comuns ao imaginário do período. Como vários historiadores apontam, para a cultura de Antigo Regime, a aparência de algo deveria expressar de modo claro e inequívoco a sua essência. Um cientista suado, sujo, esfalfado seria, naturalmente, um trabalhador braçal, com toda a carga pejorativa associada aos ofícios mecânicos.
Parece-me elucidativo citar uma curiosa passagem escrita por Da Vinci, proclamando a superioridade do pintor sobre o escultor. Embora as ideias se refiram ao campo da Arte, parecem-me facilmente transponíveis ao das Ciências, mesmo porque as artes também eram consideradas ofícios manuais.
Segundo resume a historiadora da Arte Elisa Byington no livro O projeto do Renascimento, Leonardo afirmava que a escultura seria inferior porque "fazia suar, gerava mais cansaço físico e exigia menos esforço mental na sua realização". Descrevia ainda o escultor vivendo "em uma casa suja com a cabeça coberta por pó de mármore 'feito um padeiro'" (grifo meu). O pintor, ao contrário, "podia realizar seu trabalho bem trajado e sentado com grande conforto, segurando um pincel leve e usando cores agradáveis" (grifo meu). Não é difícil imaginar o que ele diria de Galileu Galilei fazendo ginástica ao telescópio...
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