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sábado, 31 de dezembro de 2011

Teatro, aparência e poder

Escrevi esse pequeno texto como parte de minha dissertação de mestrado, mas acabei não utilizando. Resolvi postar por aqui. Por sua própria natureza de trecho inutilizado, ele começa abruptamente e não se encaminha a nenhuma conclusão, mas sei que os amigos tirarão suas próprias...
Segundo Edward Thompson, uma das noções essenciais para a compreensão das sociedades de Antigo Regime é a idéia de “teatro”. De acordo com Thompson, a exibição, o espetáculo, são essenciais ao Antigo Regime na construção de hierarquias sociais, bem como na afirmação do poder.

As execuções públicas são uma apresentação teatral, assim como as procissões, as festas, os atos de coroação, as exéquias, entre muitas outras coisas. Cada ato na vida social deve se fazer perceber por signos que o façam legíveis, em geral seguindo a um script pré-determinado e escrito coletivamente. Talvez a prática teatral que nos forneça a mais fiel semelhança com essa teatralidade social seja a Comedia dell`arte italiana, onde personagens fixos e com repertório pré-definido desempenham papéis onde se misturam as suas características costumeiras e a especificidade de cada enredo. Um dos mais célebres livros de Thompson, Costumes em comum é em grande medida, um esforço para decodificar e decifrar os signos dessa teatralidade.

É interessante aproximar essa noção de uma outra, a de “representação”, apontada por Roger Chartier como conceito chave para a compreensão da lógica de Antigo Regime. A proximidade entre as duas conceituações não pode passar despercebida. Afinal de contas, representar é o que fazem os atores sobre o palco. Segundo Chartier, “representação” é um termo polissêmico, podendo significar em sua noção mais básica a substituição de algo ausente por um signo, verbal ou não, que o substitua diante de alguém. A “representação” evoca aquilo que está distante ou invisível.

No entanto, de acordo com o historiador, a noção de representação serve no Antigo Regime para articular uma lógica que qualifica como “perversa”. Dentro dessa lógica, é abolida a distância entre a representação e o representado, essência e aparência se confundem como uma só coisa: a essência se realizaria, então, na aparência que a faria perceptível, através de seus sinais distintivos. Poderíamos exemplificar muito grosseiramente que não haveria rei sem coroa, ou papa sem mitra.

A perversidade estaria no fato de que a simples aparência seria capaz de fazer pressupor a essência, criando assim uma perigosa armadilha mental, que embotaria a capacidade dos indivíduos de perceber a essência separada da aparência e vice-versa. Assim, a aparência pura e simples seria capaz de se passar pela essência inexistente, assim como a essência desprovida da aparência que a codifica socialmente tornar-se-ia imperceptível. Retomando a metáfora teatral, seria impossível dissociar o ator do papel representado.

Como se trata aqui de atores, podemos pensar na interessante noção de “ator de si mesmo” cunhada por Fernando Bouza Alvarez ao tratar de Felipe II e da construção de sua imagem, no livro Imagen y propaganda. Cabe resgatar o contexto em que o riquíssimo conceito é empregado. Alvarez relata uma interessante anedota a respeito do Príncipe Prudente. Estaria Felipe II em viagem, e, passando por uma igreja, entraria para orar; passando adiante por outra igreja, oraria de novo. Interrogado por um dos nobres de seu séquito sobre esta atitude, o monarca responderia: “Acaso os que estão aqui me viram lá?” Segundo Alvarez, não devemos ver aí uma atitude hipócrita: os testemunhos íntimos sobre a profunda devoção do rei são inúmeros. Todavia, o cultivo da aparência exporia sua verdade íntima, sua “essência” aos que o vissem. Daí a riqueza do conceito de “ator de si mesmo”: a atuação não tem em vista a representação fraudulenta de um papel, mas a exposição de um papel que corresponderia à realidade.

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