No último domingo fui à Feira da Providência, adquirir novas quinquilharias e badulaques para minha coleção de artesanato. Acabei esbarrando no stand da Síria, onde vivi uma experiência, digamos, singular. Eu minha esposa vimos uma linda mesa em marchetaria. Perguntamos o preço a um vendedor, que respondeu em sofrível inglês. Como não demonstramos interesse e esboçamos movimento para sair, ele ofereceu um preço menor; começamos a negociar, mas tivemos dificuldade para compreender seu inglês. Perguntei se ele falava francês e - voilà! - apareceu outro vendedor, francófono. A negociação continuou, mas logo este último chamou um terceiro, e começaram a discutir entre si detalhes sobre o pagamento... em árabe. Logo havia outros ao nosso redor, e nos vimos em verdadeira Babel! No fim das contas, trouxemos a mesa por cem reais a menos. Infelizmente não sou muito versado nas artes da pechincha, pois creio que poderia tê-la comprado por muito menos!
Como todos sabem, o episódio não tem nada de muito espantoso, considerando a proverbial fama dos comerciantes do mundo islâmico, onde esse tipo de negociação é praticamente uma regra de etiqueta. Me senti num verdadeiro estereótipo de mercado árabe de filme das mil e uma noites! No entanto, essa pequena "aventura" me suscitou reflexões sobre alguns velhos e conhecidos temas, mais especialmente a "invenção" dos preços e a reificação das relações econômicas.
Uma das referências mas evidentes nesse sentido é o bom e velho Marx com seus célebres conceitos de valores de uso e troca, sobre os quais considero desnecessário tecer maiores comentários. Particularmente, minha curiosa negociação me fez pensar no quanto o processo de elaboração dessa conceituação enquanto ferramenta analítica é especificamente ocidental e contemporâneo. De fato, não me parece que Ibn Khaldun teria necessitado dela para pensar sobre as sociedades magrebinas da Idade Média,por exemplo; pelo contrário, essa diferenciação lhe seria provavelmente aparente, talvez mesmo evidente.
Por outro lado, nós necessitamos explicitar distinções desse gênero, pelas condições específicas com que nossa cultura experimenta a economia. Desde o século XVIII a sociedade ocidental tem presenciado insistentes e incessantes esforços por parte de pensadores e instituições visando à construção de uma imagem reificada da economia, onde se perde justamente a dimensão do mundo econômico como universo de relações estabelecidas entre grupos e indivíduos. A economia que vemos retratada nos periódicos, telejornais e muitos livros é um ser autônomo, dotado de vida própria e regido por princípios claramente identificados, supostamente previsíveis. Romper com a velha noção de "mão invisível" nem sempre é fácil para nós...
Justamente o que despertou minha atenção a partir dessa recente experiência é o quanto o contrário pode ser evidente em outro contexto cultural. A etiqueta oriental de negociação pressupõe justamente o contrário de nossa noção reificada de economia. Pelo contrário, a invenção do preço, suas dimensões relacionais e negociadas são por demais explícitas nesse contexto. Igualmente aparentes se tornam as relações de poder envolvidas em qualquer negociação (remetendo a Hegel e sua "dialética do senhor e do escravo"...). Nessa perspectiva, a ficção de uma economia autônoma e autorregulada se tornaria provavelmente uma ideia difícil de sustentar. Imagino com que dificuldade Aladim ou Ali Babá leriam Adam Smith...
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