Há alguns dias eu escrevia que não há lugar para Beccaria no Brasil. Eis que hoje, na fila do banco, ouço a seguinte frase de um senhor evangélico:
"Infelizmente Deus ama essa gente".
Ele se referia a presidiários. Argumentava que achava injusto (da parte de Deus, note-se) que um criminoso que matou dez pessoas depois "aceite Jesus" e não vá para o Inferno.
Há que se refletir sobre a curiosa relação desse senhor com a religião que afirma seguir. Suas falas mostram profundo desconforto com dois dos princípios mais fundamentais das teologias protestantes em suas diversas vertentes, Sola Fides (a Salvação exclusivamente pela Fé) e Soli Deo Gratia (a garantia da justificação dos pecados pela pura misericórdia de Deus).
Talvez seja mero problema de vocação religiosa equivocada; o dito senhor talvez sentir-se-ia mais confortável com a teodiceia da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, cujo Purgatório serve como "solução" para "equacionar" os divinos atributos de Misericórdia e Justiça.
Em todo caso, o senhor em questão apresenta alguma dificuldade em aceitar a ideia de um Deus misericordioso. Há que se indagar qual seria sua reação diante da Parábola do Filho Pródigo - entre tantas outras passagens do Novo Testamento.
Tudo isso, obviamente, é matéria de fé e consciência, enfim, assuntos da esfera privada. Todavia, no Brasil - mais que em outros países - a separação entre as esferas pública e privada é muito tênue, quando não inexistente.
Assim sendo, é mais que previsível que a indignação desse senhor contra a misericórdia divina também se canalize contra o sistema penal brasileiro. Vale salientar que volta e meia pipocavam na conversa referências a crimes bárbaros, com riqueza de detalhes, o que me convida a supor que o dito senhor dedica mais tempo ao noticiário policial que à Bíblia.
Em dado momento, ele se manifestou contra o tratamento médico nos presídios. Segundo ele, seria inadmissível que um simples ladrão recebesse atendimento igual ao de um assassino ou de um estuprador. Postulava que a qualidade do atendimento médico deveria ser proporcional à gravidade dos crimes cometidos. Eu ouvia tudo isso calado, mas um de seus interlocutores ainda tentava argumentar que tal conduta atentaria contra a ética profissional médica.
Logo chegou minha vez na fila e não pude acompanhar o resto dessa tertúlia teológico-penal.
De tudo isso, me chamou a atenção um tema geral: para o dito senhor, indignado com a própria misericórdia divina, não basta a parca civilização do sistema carcerário brasileiro; nosso Estado precisa ser ainda mais bárbaro que já é. E quantos outros não pensam da mesma forma?
Definitivamente, não há lugar para Beccaria no Brasil...
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