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sábado, 1 de fevereiro de 2020

Avó exorcizada, Tio excomungado, Amigo ateu

Minha avó nasceu em 1926, em Agostinho Porto (então distrito de Nova Iguaçu), com o tremendo azar de ser canhota. Como sugerem as neurociências, a condição de canhoto pode derivar de inúmeros fatores genéticos ou epigenéticos, desenvolvimento fetal e até experiências durante a primeira infância.

Para azar da pequena Nair, no entanto, sua avó materna (minha trisavó), não entendia nada de neurociências, mas entendia muito da religiosidade popular. Canhotos, a velha senhora de ascendência açoriana bem sabia, tinham parte com Satanás - por sinal, entre muitos apelidos interessantes, como Lúcifer, Coisa Ruim, Capa Verde, Capiroto e Capeta, o bom e velho Satã também costuma ser referido, no linguajar popular como "O Canhoto".

Não espanta. Canhotos são um grupo minoritário (cerca de 10% da população mundial) e não é raro, em diversas culturas, que traços minoritários e desviantes recebam conotação negativa. Na tradição cristã, o polo negativo por excelência era Satanás e, portanto, um comportamento aberrante como o uso predominante da mão esquerda só podia ser obra do Senhor dos Infernos, assim como sucedia a pessoas que nasciam com o azar de serem ruivas ou albinas. De pessoas com certos "defeitos físicos" também se dizia que "Deus marcou para não perder de vista".

Vale lembrar que (como tudo) a figura de Satanás no imaginário cristão tem uma História, como bem assinalam Robert Muchembled e Jean Delumeau, entre tantos outros. Nos primeiros séculos do Cristianismo as interpretações sobre os "espíritos imundos" permaneceram bastante ambíguas; a imagem do demônio como Mal Absoluto é uma invenção tardia, que começou a emergir na Baixa Idade Média, por volta do século XII e se consolidou com força crescente na Idade Moderna, era dourada dos "estudos" demonológicos e das caças às bruxas.

Não se imagine, todavia, que, nos albores do esclarecido século XX, tal pavor fosse exclusivo da gente iletrada de Agostinho Porto, periferia da periferia do mundo. Poucas décadas antes, em Paris, cidade tão emblemática da modernidade, centro produtor e difusor de tantas nouvautés a homilia de certo padre Janvier ressoava na nave da encantadora catedral de Notre-Dame de Paris, na quaresma de 1907:


Imagina muita gente que o demônio não é mais que um símbolo, uma figura literária que não corresponde a coisa alguma na Criação, uma ficção poética, uma palavra que serve para designar o mal e as paixões: é um erro. O demônio, na doutrina católica, é um ser perfeitamente real, uma personalidade distinta do resto da natureza, tendo vida, ação e domínio próprios. O que, porém, é infinitamente mais temível é a ação ordinária, contínua, exercida por Satanás na Criação, a intervenção real e oculta que tem no curso dos sucessos e das estações, na germinação das plantas, no desencadear dos ventos e das tempestades (grifos meus).


Como se nota, o imaginário do padre Janvier, embora reagindo às críticas da modernidade, estava ainda muito longe do "desencantamento do mundo" assinalado por Weber. A bem dizer, nessa breve citação se encontram inúmeros estratos da história das culturas popular e erudita. O demônio do padre Janvier soa quase pré-tridentino, mesclando um pouco da figura do Demiurgo, senhor do mundo material, tão proeminente entre os maniqueístas e gnósticos da Antiguidade, quanto nas tradições populares do campesinato europeu. É um demônio que, senhor da vegetação e dos fenômenos atmosféricos, não deixava espaço ao saber dos botânicos ou dos meteorologistas. A homilia parisiense e o pensamento de minha iletrada trisavó habitavam a mesma morada.

Para todos os efeitos, assim que a pequena Nair começou a mostrar suspeita destreza com a mão esquerda (note-se, por favor, o trocadilho), sua avó iniciou um processo caseiro de "exorcismo" - bastante comum, pelo que já ouvi falar. Daí em diante, minha avó passou a receber frequentes palmadas com colher-de-pau na mão esquerda, para que a dor a forçasse a privilegiar a destra, como se esperava de uma boa menina católica, devidamente desencapetada.

Para alívio de minha trisavó, o exorcismo da jovem Nair foi bem sucedido. No entanto, o resultado final foi a formação de uma destra frustrada! Minha pobre avó nunca chegou a desenvolver a contento a coordenação motora fina da mão direita, o que se revelava particularmente em sua vacilante caligrafia, bastante legível, mas, definitivamente, feia.

Dona Nair se sentia ligeiramente embaraçada por sua caligrafia e reclamava constantemente da ignorância de sua avó, que reprimira seu desenvolvimento natural como canhota. Acredito que tal vergonha fosse acentuada pela elegantíssima caligrafia de meu avô. Minha avó tinha verdadeira ojeriza a todo tipo de "superstição" e veio a se tornar uma católica pouco praticante; muito mais tarde, se tornou espírita convicta e entusiástica - o que, calculo, causaria grande desgosto à minha trisavó e talvez confirmasse suas suspeitas de que, desde o início, havia uma semente diabólica naquela  menina.

Não posso afirmar com certeza, mas suspeito que tais sessões de exorcismo doméstico tenham contribuído para que minha avó se tornasse uma católica pouco ortodoxa e, principalmente, para o horror que ela sempre manifestava quanto às "superstições". Talvez fosse também por isso que ela se tornou a mais atenta vigilante de minha caligrafia e fiscal preferencial dos cadernos de caligrafia que eu preenchia quase diariamente até meus 12 ou 13 anos de idade. Me censurava constantemente por segurar o lápis com pouca firmeza, afirmando que o lápis dançava como uma bailarina em minha mão. Finalmente, em seus últimos anos de vida, ela mesma se dedicava a preencher cadernos de caligrafia, não tanto para aperfeiçoar a letra, mas para exercitar o cérebro, dizia ela.

Por sinal, a única informação que minha avó me comunicou (muito mais que uma vez) sobre sua própria avó era essa anedota. Em minha imaginação se sedimentou a imagem de minha trisavó como uma tirana rabugenta e fanática - espero que a realidade fosse distante disso, mas fica a impressão de que ela não deixou muitas recordações agradáveis para a neta. Nunca havia parado até agora para me perguntar, mas a memória familiar me sugere que ela faleceu cedo, quando minha avó ainda era pequena.

Assim calculo porque minha bisavó faleceu precocemente, durante o parto de meu tio-avô Manoel - ou, familiarmente, "Tio Manel". Minha avó, com seus 10 anos de idade, largou os estudos e, como irmã mais velha, assumiu a responsabilidade pelos menores, o que me leva a crer que a matrona exorcista já não se encontrava entre eles.

Minha avó e Tio Manel desenvolveram uma relação que era mais característica de mãe e filho que de irmãos. Mesmo meu avô, que conheceu Tio Manel já adolescente, também o considerava "como um filho", mais que como cunhado. Já bem velhinhos, o irmão caçula ia todo sábado, religiosamente, visitar a maternal irmã; jamais esquecerei quão devastado Tio Manel parecia nos funerais de minha avó.

Tive convívio muito próximo com Tio Manel ao longo da vida. Ele era um homem muito irreverente, em todos os sentidos do termo. Apesar de pouca escolaridade, questionador como ninguém, sempre suspeitoso de todo tipo de autoridade religiosa, política ou científica. Era o tipo de pessoa que só dava crédito ao que conseguia entender, deixando a dúvida pairar sobre todo o resto. Sempre tinha um comentário irônico na ponta da língua.

Uma anedota dá bem a dimensão da figura. Durante o longo conclave para eleição do sucessor de João Paulo II a mídia dava grande cobertura à vaticana liturgia e ao código da fumaça negra e da fumaça branca com que se comunicavam os resultados das sessões diárias. Em certa ocasião, assistindo o telejornal, Tio Manel ridicularizava o rito eclesiástico, que considerava anacrônico e patético. Numa das tiradas "politicamente incorretas" que lhe eram peculiares, se questionava se o código não devia ser aperfeiçoado: se o papa fosse branco, fumaça branca; se fosse negro, fumaça negra; se fosse gay, fumaça rosa... Comentário tão irreverente sobre Sua Santidade seria digno de um herege - o que, de fato, ele era.

Lá pelos anos 40, o menino Manel, como toda criança católica, foi encaminhado à catequese na paróquia local, para a preparação necessária para sua primeira Eurcaristia. O problema era que o garoto questionava tudo que a catequista dizia! Ao fim e ao cabo, a maternal irmã foi convocada à igreja. Segundo minha avó, a catequista afirmava que Tio Manel "não levava jeito para a coisa" e gentilmente convidou que ele fosse retirado da turma de catequese. Assim foi feito, e o jovem Manel nunca tomou parte na teofagia eucarística; mais que excomungado, pode-se dizer que ele era algo como um "acomungado".

Nada disso impediu Tio Manel de se tornar um católico à moda dele - vale dizer, um herege. Em algum momento de sua juventude se tornou devoto de São Jorge, e dizem que era devoto muito fervoroso, o que não cheguei a ver com meus próprios olhos. Quando nasci, sua devoção já era mais moderada, mas sempre levou no pescoço sua medalhinha de São Jorge.

Tio Manel era um homem de fé, mas tinha horror às religiões organizadas e às hierarquias eclesiásticas. Nas últimas décadas era crítico ferrenho das "igrejas empresariais" que vinham surgindo e desde então se fortalecendo. Tinha sempre algum comentário ferino a fazer contra os pastores caça-níqueis que andam pelos canais de televisão; de vez em quando gostava de assistir às tele-igrejas, sempre fazendo troça do que via.

Mas que esperar de um menino educado por uma jovem canhota?!

As desventuras de minha avó e seu irmão se deram lá pelos anos 30 e 40, mas conheço um recente caso de interessante ressonância. Certo amigo meu, questionador como Tio Manel, lá pelos anos 80, calculo, também ingressou na catequese. Em certa ocasião, quando a catequista instava os pequenos catecúmenos a ser como cordeiros, meu amigo reclamou que preferia ser uma águia ou um leão, e nada o convencia do contrário. Suas insistentes perguntas costumavam ser respondidas por um "Jesus quer assim" ou fórmulas do gênero. Certo dia, a já exasperada catequista respondeu que Jesus não gostava de crianças que perguntam muito, ao que meu amigo retrucou que "Esse Jesus é um cara muito chato!". Assim como se passara quase meio século antes com Tio Manel, a família de meu amigo foi convocada e mais um menino se viu escorraçado pela Santa Madre Igreja - Católica, Apostólica e, principalmente, Romana.

Meu amigo, hoje ateu, é canhoto como a menina Nair... Que diriam padre Janvier e minha trisavó?!

Dedico este texto a minha avó, ao Tio Manel, ao canhotíssimo amigo Vinícius e ao Professor Guilherme Pereira das Neves, que inspirou toda essa reflexão.

Ned Flanders - canhoto, carola e personificação do Diabo em vários episódios de Halloween dos Simpsons; note-se, todavia, que nesse frame ele segura o tridente com a destra...

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