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quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Paternalismo, "cuidado" e autonomia: Comparando os discursos de Crivella e Freixo

Dedico esse texto a todos os cidadãos do Rio de Janeiro, independentemente de religião, posicionamento político ou classe social

Crivella quer cuidar das pessoas. Isso é ótimo, sinceramente. A ênfase no cuidado é uma das dimensões mais bonitas e mais cristãs das igrejas evangélicas. De fato, muitas igrejas evangélicas, tradicionais ou neopentecostais desenvolvem obras sociais admiráveis e dignas de aplauso. Muitos evangélicos são pessoas fantásticas, verdadeiros bons samaritanos que deixariam Jesus muito orgulhoso.

No entanto, prefeitura NÃO é igreja. Democracia plena significa governar COM os cidadãos e não PARA os cidadãos.

A cidadania plena pode ser definida como exercício dos direitos civis, políticos e sociais. Ora, o discurso do cuidado adotado por Crivella enfatiza os direitos sociais, mas deixa em segundo plano os direitos civis e - pior ainda - desdenha dos direitos políticos. Preconiza uma cidadania capenga.
Sob uma roupagem cristã, é o mesmo projeto esboçado pelos governos Lula e Dilma. Os programas sociais do PT foram - e ainda são - importantíssimos. No entanto, esses programas sempre enfatizaram os direitos sociais, deixando os direitos civis e políticos em segundo plano: formam consumidores e eleitores, mas não cidadãos.

É uma lógica paternalista: infantiliza o povo, que precisa ser cuidado por uma figura paterna. Getúlio Vargas foi o "Pai dos pobres"; Lula bem que tentou ser um novo "pai dos pobres", mas o povo não comprou a ideia. Apesar de seus defeitos, Getúlio e Lula promoveram importantíssimas conquistas sociais no Brasil, mas pouco fizeram para tornar nosso país mais democrático, para promover a efetiva participação do povo nas decisões do governo. Essa concepção de cidadania expressa profunda assimetria entre governantes e governados, decalcada da assimetria natural entre pais e filhos, adultos e crianças. No limite, pode conduzir a concepções sociais autoritárias (como aconteceu na Era Vargas): pais mandam, filhos obedecem. Ou, como diz a triste máxima brasileira: "manda quem pode, obedece quem tem juízo". Nos tempos da escravidão, os senhores também se viam como "pais" dos escravos ("subfilhos" na família extensa), que recebiam alimentação, vestimenta e moradia. O senhor CUIDAVA de seus escravos.

No caso de Crivella, o buraco é mais embaixo: sua concepção de cuidado paternalista remete a uma matriz discursiva bíblica, onde a assimetria é ainda mais acentuada: a figura do pastor que cuida de suas ovelhas. Temos aqui um povo-rebanho - mais que infantilizado, animalizado. A criança um dia pode tornar-se adulta, emancipando-se, mas a ovelha será sempre ovelha, indefinidamente dependente dos cuidados de seu pastor. Há uma profunda dimensão de servidão moral embutida nesse discurso; não promove a cidadania e a democracia. É uma versão piorada do recente paternalismo "lulista".

 
Por outro lado, as propostas de Freixo prezam os direitos políticos e civis, tanto como os sociais. Freixo promete governar COM o cidadão, e não PELO cidadão. São propostas como os conselhos de bairro, a autonomia pedagógica das comunidades escolares ou o gabinete virtual. Freixo propõe o cidadão como um adulto que decide, não como uma criança, uma ovelha ou um escravo que precisam de cuidados. Propõe AUTONOMIA em lugar de CUIDADO.

A concepção de cidade proposta por Freixo rompe com o paternalismo brasileiro crônico, de direita ou de esquerda. Nesse sentido, a proposta do PSOL e de Freixo é MUITO DIFERENTE das concepções e práticas do PT e de Lula. O PRB e Crivella estão muito mais perto de virar um "novo PT" e um "novo Lula", do que o PSOL e Freixo  (ao menos nesse momento).

Freixo propõe romper com o paternalismo da senzala e do curral (eleitoral). Se conseguirá ou não, não tenho como dizer.

Nessa eleição, o cidadão carioca precisa escolher um projeto de cidade: queremos um Rio de Janeiro como a Jerusalém monárquica de Salomão ou como a Atenas democrática de Sócrates...?

P.S. 1 (resposta a uma crítica): A referência a Jerusalém e Atenas tinha intenção meramente simbólica: as duas cidades ocupam espaços míticos e alegóricos no imaginário ocidental que transcendem as experiências "reais" vividas nas duas cidades. 

Como dizia Alphonse Daudet, a Atenas e a Esparta da vida real deviam ser no máximo subprefeituras, cujas dimensões foram ampliadas devido à imaginação da Europa meridional, sempre excitada pelo calor escaldante... Por sinal, talvez sejam também as miragens provocadas pelo calor que tenham tornado o Rio uma cidade maravilhosa aos deslumbrados olhares nórdicos. 

A intenção desse texto era menos eleitoral que intelectual - uma tentativa de refletir sobre o modo que múltiplas experiências históricas e culturais se imbricam na "retórica do cuidado" de Crivella, apontando o quanto esse mesmo quadro de referências se infiltra em outros discursos. O homem cordial ama o calor afetuoso do paternalismo, e às vezes até confunde esse paternalismo com democracia. 

Também quis usar o paternalismo como referência para questionar a cada vez mais anacrônica divisão do espectro político entre esquerda e direita. Jacobinos e girondinos já ficaram para trás há muito tempo, e talvez seja a hora de remover conceitos embolorados que tantas vezes obscurecem mais que esclarecem e deixam tanta coisa opaca (no caso, o onipresente imaginário paternalista). As referências cruzadas e invertidas que moralizam esquerda e direita como "bem" e "mal" precisam igualmente ser superadas, particularmente quando embasam unilateralmente a vassalagem partidária do "eSquerda vota em eXquerda", naquela velha relação (também paternalista) entre senhor e vassalo. 

Também é uma provocação aos amigos frustrados, desesperançosos e indecisos, que temem no Freixo e no PSOL uma repetição do Lula e do PT. A esses sinalizo que esse perigo talvez seja mais forte pelo lado do Crivella e do PRB, e talvez eles estejam mais "seguros" votando Freixo que anulando. 

Enfim, espero que o PSOL não venha futuramente a reproduzir como "freixismo" a linguagem paternalista do "lulismo" (o risco sempre é possível). O próprio PT, em suas origens, pretendia ser uma esquerda livre do personalismo carismático, em especial reagindo ao "brizolismo". A gradativa derrapagem do PT rumo ao "lulismo" talvez testemunhe o quanto o imaginário paternalista permanece poderoso em nossa sociedade e quão difícil é exorcizá-lo. O Freixo, o PSOL e sua militância precisam permanecer atentos e vigilantes para evitar que isso aconteça. Como sabiam Freud e Jung, as forças do subconsciente e do imaginário muitas vezes são mais poderosas e traiçoeiras do que pensamos... Já alertava Ricoeur (em Hermenêutica bíblica, por sinal): "só a tomada de consciência de seu estatuto paradoxal pode impedir os símbolos de tornarem-se ídolos".

 P.S. 2 (resposta a outra crítica): De fato, imagino que muitos petistas possam se escandalizar com essa análise, mas acho que já passou da hora dos petistas refletirem séria, profunda e criticamente sobre as virtudes e vícios da "era PT": ouvir críticas também faz parte da democracia. Encarar o espelho pode ser desagradável, mas é muitas vezes necessário. Por sinal, gostaria muito de ouvir o que um petista pensaria dos argumentos que apresentei. 

Em alguns momentos o PT e seus militantes se mostram tão dogmáticos quanto a Universal e seus fiéis - nem todo fundamentalismo é religioso. Está mais que evidente que os velhos catecismos e práticas do PT não conseguem mais convencer muita gente fora da "igreja". Em 2006 e 2010 o PT conseguiu emplacar votações recorde, apesar de todo o barulho midiático em torno do mensalão. Em 2006 o salário mínimo ainda subia como um foguete; em 2008 o salário mínimo entrou em fase de estagnação, mas em 2010 a inflação ainda não havia corroído drasticamente o poder aquisitivo das camadas mais baixas da população. Nessa época o "povão" via melhoras reais em sua vida e votou no PT porque reconhecia essas melhoras, apesar da manipulação da grande mídia. 

Nos últimos anos o quadro mudou: o PT continuava (e continua) cantando glórias passadas, mas no mundo real as condições de vida do "povão" se degradavam. Como professor de escola municipal lido diariamente com o "povão" e sei o quanto as pessoas se sentem insatisfeitas: elas sentem na carne os efeitos do colapso econômico que se agravou devido a inúmeras políticas desastradas implementadas pelo PT para salvar a mobília do andar de cima. 

A "nova classe média" tem críticas legítimas ao PT, embora a porção eXquerdista da "velha classe média" muitas vezes, com certa arrogância, não consiga ou não queira ouvi-las com a devida atenção. Os intelectuais, por sinal, adoram praticar ventriloquismo com o "povão"; às vezes o "pobre" ou o "favelado" aparecem nos discursos acadêmicos um tanto como o índio (ou sua imagem) era usado pelos nossos poetas românticos. Há que se distinguir o "pobre" como pessoa do "pobre" como mito ou alegoria - a esquerda muitas vezes falha em perceber essa distinção. 

Enfim, o povo não é bobo, e nem a rede Globo, a Universal ou o PT conseguem enganá-lo por muito tempo. Se argumentos como os que apresento escandalizariam o petista médio a ponto de negar seu voto ao Freixo, talvez isso indique quem é, de fato, "a esquerda que a direita gosta"... Por sinal, acharia muito coerente que a militância petista votasse no Crivella - afinal de contas, o Crivella foi ministro do governo PT...

P.S. 3 (tréplica a uma réplica): É preciso defender as conquistas sociais realizadas PELO POVO através do PT; é igualmente necessário criticar os aspectos questionáveis da atuação do PT no poder. Há muita diferença entre uma coisa e outra – um verdadeiro abismo.


Discordo da noção de que só devemos criticar as estratégias do PT, e não seus projetos – até porque nos últimos mandatos o PT se especializou mais em tramar estratégias que em elaborar projetos. Minha grande Crítica, com C maiúsculo ao PT foi seu objetivo de governar PARA o povo, e não com o POVO – optei por chamar isso de “paternalismo”; obviamente você tem o direito de discordar dessa definição. É uma crítica a um projeto que privilegiou a extensão dos direitos sociais (o que é louvável), mas pouco fez pelos direitos políticos (o que é lamentável). O PT foi negligente em fomentar o desenvolvimento de uma cultura efetivamente democrática, e a colheita estamos vendo aí. Um anêmico governo supostamente “popular”, que sucumbiu ao sopro das intrigas palacianas. O PT só convocou o povo às ruas in extremis, sempre fiel à estética exigente de vassalagem partidária e de aplausos comandados de cima do palanque. De fato, não podemos confundir as belas palavras proferidas de cima dos palanques com um efetivo projeto social, construído cotidianamente com a participação de todos. Definitivamente, o PT precisa descer do palanque e pisar nas ruas. Conversar COM as pessoas, e não discursar PARA elas.

Ao contrário do sugerido, não me considero inimigo do PT. Pelo contrário: nunca fui petista, mas votei várias vezes no partido. Chorei de emoção em 1º de janeiro de 2003, no discurso de posse de Lula. Antes e depois das eleições de 2002, sempre critiquei o que me desagradava no PT, mas sempre defendi (e ainda defendo) o que me parecia defensável. Por sinal, considero a noção de “inimizade” extremamente deletéria à democracia. O “inimigo” é aquele que deve ser vencido e subjugado – não há diálogo possível com o “inimigo”. Como iniciante nas artes marciais, valorizo a rivalidade cortês. Precisamos superar Clausewitz e Schmitt, a noção de “política como guerra”. A divisão reificada entre direita e esquerda, embora por vezes útil, reforça essa noção de política belicosa. Dificulta a detecção de pontos de encontro, ao mesmo tempo obscurecendo as possibilidades de crítica – se quem critica é “inimigo”, toda crítica torna-se objeto de inimizade. Nesse paradigma, só é possível manter a “amizade” enquanto as críticas permanecem dentro do campo do que aceitamos (previamente) ouvir; as únicas críticas válidas são aquelas que corroborem nossas próprias críticas – um não-diálogo. “Rejeite a crítica, rotule o crítico” – essa tem sido a postura do PT e sua militância diante de todas as críticas um pouco mais incômodas.

Além disso, a política-enquanto-guerra mobiliza rotineiramente sentimentos e discursos de medo. O PSDB usou essa retórica contra Lula em 2002. O PT usou essa estética contra Serra e Aécio, em 2010 e 2014. Foi a retórica do medo articulada em 2014 que levou boa parte das pessoas a acreditar numa improvável “guinada à esquerda” no segundo mandato de Dilma – não só essa “guinada” nunca aconteceu, como o governo capotou. Enquanto capotava, eram tentadas por uma última vez as mesmas técnicas de cooptação através de loteamentos e leilões de cargos no executivo.
Sem recorrer diretamente ao discurso de medo, o PSOL também vem fazendo isso contra Crivella, e em alguns momentos considero que resvalou nessa estética. De fato, expor os problemas da candidatura rival é sempre necessário em alguma medida, mas prefiro uma retórica da esperança. Os limites, obviamente, são tênues e precisam ser manejados com delicadeza.

Não encaro o PT como inimigo, até porque não sou militante do PSOL. Apoiei o partido nas últimas eleições, mas não me sinto comprometido com ele em qualquer medida. Caso Freixo seja eleito, estarei entre as primeiras fileiras de críticos sempre que julgar oportuno ou necessário. Me considero socialista, não “esquerdista” – recuso deliberadamente esse rótulo homogeneizador. Tampouco me enquadro em qualquer ortodoxia socialista – sinto verdadeira alergia a ortodoxias. Costumo brincar: meu cérebro é socialista, meu coração é anarquista e meu estômago, capitalista. Sou fiel a meus princípios, não a partidos ou políticos – quem é fiel a partidos sempre termina traindo a si mesmo. Tampouco sou fiel a “ideologias”, esses construtos semiteológicos que tantas vezes conduzem à servidão intelectual. O “líder” sabe o que faz, mas quando um “líder” me dá as costas para me conduzir a lugares maravilhosos que mal consigo imaginar, sinto ganas de não-sei-o-quê. No dia em que Freixo começar a me dizer o que fazer, chamando-me de “companheiro”, mas tratando-me como empregado, abandono-o imediatamente.

Não sou inimigo do PT. Reconheço que o PT desempenhou importante papel na história recente do país. A atuação do partido foi crucial para a formulação da Constituição de 88. Infelizmente, para garantir espúrios pactos de governabilidade, o partido também se mostrou passivo e conivente diante de tantas emendas e “remendos” que dilapidam esse mesmo legado. Nesse sentido, é emblemático que o recente pedido de Impeachment tenha a assinatura de Hélio Bicudo, destacada figura do PT à época da constituinte. O mérito do pedido pode e deve ser questionado, mas rotular sumariamente Bicudo como “senil” é um atalho fácil para se esquivar das críticas.

Através da legislatura de Florestan Fernandes, o PT articulou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, uma grande conquista em sua época. O PT no poder pouco fez pelo ensino básico, especialmente pelo ensino fundamental. Criou o IDEB, esse sofrível instrumento de solapamento da autonomia pedagógica. Pouco fez para estimular a gestão democrática da educação básica, prevista na mesma LDB-EN. O FUNDEB foi usado de maneiras absurdas pelos governos estaduais e municipais, sem qualquer transparência, sem que o Ministério da Educação, em qualquer momento, tomasse uma postura mais firme. Os professores de todo o país reclamaram constantemente disso, mas suas vozes, como sempre, não chegaram ao alto do palanque. O slogan “Pátria Educadora”, oferecido como hóstia aos crentes que ainda comungam, foi logo desmentido pelos primeiros meses do mandato inacabado, enquanto o Ministério da Educação se tornou objeto de uma verdadeira dança das cadeiras.

O PT contribuiu imensamente para o debate sobre a Reforma Agrária nos anos 90, mas sua atuação no poder executivo também não se mostrou à altura.
No poder, PT – através de coitos satânicos no leito da governabilidade partidária – concebeu Belo Monte, essa monumental monstruosidade. Belo Monte é apenas mais um episódio de uma longa história de violência contra as populações indígenas e sertanejas de nosso país. Um triste episódio em que o PT, mais que cúmplice, foi um dos mandantes. Um monumento à tirania e à iniquidade.

As mãos do PT, de Lula e de Dilma, que tantas vezes apertaram as mãos de Sérgio Cabral e de Eduardo Paes, fedem a lacrimogêneo. Seus pés, que tantas vezes pisaram em iníquos palanques fluminenses, pisam e pesam sobre nossas cabeças. Aqueles mesmos que estrangularam as gargantas que gritaram “não vai ter Copa” cometeram a ignomínia de gritar “não vai ter golpe”, quando suas próprias gargantas eram estranguladas. Como esquecer o leilão de Libra?! Como esquecer a lei antiterrorismo?! Como (como, Deus meu!) esquecer o massacre da Cinelândia em 2013? Como esquecer o massacre salarial imposto aos grevistas da Educação em 2014? Como esquecer que Lula, Dilma e o PT participaram diretamente dessas atrocidades, ou ficaram calados, em culpado e culposo silêncio? Como gritar “golpe” em defesa daqueles que se calaram diante de todos os GOLPES que sofríamos?! Como gritar qualquer coisa em defesa do PT e de sua “democracia”, esse triste arremedo de democracia (sem aspas)? Como gritar qualquer coisa em defesa dos algozes e cúmplices, sem sentir a garganta se fechar e o pulmão sufocar? Como marchar contra os “golpistas”, com os pés atolados na lama de Mariana?!

Temer agiu como Judas em relação a Dilma, mas isso não faz dela um messias, pois Dilma, Lula e o PT lavaram as mãos como Pilatos diante dos crucificados de 2013 e 2014, entre os quais me encontro; gritaram “Cabral” e “Paes”, como outrora se gritara “Barrabás”.

A crise mundial - misteriosa “marolinha” que virou tsunami - existe, mas Dilma e o PT preferiram salvar a mobília do andar de cima a preservar os corpos do andar de baixo. Medidas econômicas desastrosas foram tomadas, visando manter a rentabilidade das exportações do agronegócio e das mineradoras, enquanto o “povão” se afogava na maré montante do desemprego e da inflação. O “povão” se afogava aos berros, mas o salva-vidas acharam que eram apenas os uivos da “mídia golpista”. O “povão” ainda berrava, mas o salva-vidas achou apenas que eram os moradores do andar do meio batendo suas panelas.

Não disputo “de quem é o pobre”. Não tenho a menor dúvida: o pobre é DONO DO PRÓPRIO NARIZ! - ao contrário do que pensam aqueles que se apropriam dele para a prática do ventriloquismo intelectual. O procedimento dessa ventriloquia é deveras curioso: quando se descobre que o boneco tem vida própria e fala o que pensa, o sábio ventríloquo despreza suas palavras: o boneco é manipulado pela mídia. “No Brasil, o boneco é de direita”. Pobre boneco, que não tem aquela idealizada consciência de classe que uma outra classe lhe deseja impor! Boneco ingrato! Recebeu Bolsa-Boneco, Minha casa-de-boneca – Minha vida, e agora age com ingratidão. O boneco recebeu reajustes salariais significativos entre os anos de 2002 e 2008, e agora reclama apenas porque seu salário se encontra há 8 anos estagnado? Que boneco mais exigente! O boneco sofre de sérios transtornos de personalidade. Em 2006 e 2010 o boneco tinha uma sã consciência, votava bem apesar da manipulação da mídia golpista. Em 2014, o boneco, pobrezinho, teve uma recaída. Em 2016, o boneco ingrato não saiu às ruas em defesa de seu mestre, tamanha era a confusão mental induzida pela mídia. Algumas pessoas tentaram ouvir o boneco, compreender quais eram suas queixas, ouvir o que ele tinha a dizer. Essas pessoas eram a “esquerda que a direita gosta”. Essas pessoas burras, sem visão estratégica, achavam que seriam democráticas, mas na verdade prejudicariam o boneco. A única maneira de manter o boneco calado, feliz e votando (porque todo boneco calado parece feliz, desde que vote “bem”) seria fazendo mais pactos de governabilidade. Tudo se resolve com pactos de governabilidade: unha encravada, asma, pane de automóvel, resistência (de chuveiro) queimada e até crises políticas. Me dê um pacto de governabilidade, e moverei o mundo! A “esquerda que a direita gosta” não sabe o que é presidencialismo de coalizão. A “esquerda que a direita gosta” não sabe admirar quão agradável é a paisagem, quando descortinada do “centrão”. A “esquerda que a direita gosta” não sabe apreciar a doce sinfonia que se evola dos gabinetes onde são selados, a portas fechadas, os pactos escritos com o sangue do povo. O boneco precisa ser guiado, cuidado, amparado, orientado. O boneco precisa parar de agir como um bebê chorão e entender que o ventríloquo é adulto, e sabe exatamente o que faz. O ventríloquo cuida dele. Como um pai cuida do filho. Como um pastor cuida de suas ovelhas. Como um senhor cuida de seus escravos.  O boneco, ora bolas, o boneco deve calar a boca, ser feliz e votar! Votar “bem”, é claro.

Quando o boneco vota mal, o assunto é outro. O ventríloquo vai ao palanque-confessionário. Pede perdão, pois o boneco não sabe o que faz. O ventríloquo agora sabe o que fazer pela remissão de seus pecados. Precisa rezar. Rezar muito. Precisa rezar cem milhões de bolsa-famílias, três milhões de minha casa-minha vidas, dez milhões de FIES e outras orações curiosas de interesse público ou privado. Depois de muito rezar, o ventríloquo receberá da Grande Estrela a inspiração luminosa, a indicação dos erros passados: faltou, é claro, trabalho de base! Como sempre. Agora, resta apenas o último passo do ritual de purificação, uma grande procissão vestido com o hábito de penitente – vermelho, é claro.

Peço desculpas pelo fel amargo que aqui vomito, mas certas palavras me deixam nauseabundo. Há certas palavras que me despertam a vontade de trovejar. Há que haver a brisa, mas há que haver o trovão ensurdecedor, para abrir os ouvidos dos surdos. Um trovão inquieto ante a frívola algaravia entoada nos palanques. Me acalmo. Me acalmo, pois minha garganta estoura. Me acalmo, porque não quero beber o vinho do ódio através da taça da indignação.

Não sou inimigo do PT. Não. O PT tem um grande passado, mas seu presente é sombrio. O partido AINDA pode ter um grande futuro, mas precisa se reinventar urgentemente. Precisa superar a idolatria “lulista” e reencontrar suas raízes. O PT precisa superar sua atual tendência ao monólogo “esquerdista” e estabelecer canais de diálogo com a sociedade mais ampla. Ouvir a voz do boneco, em lugar de projetar a própria voz através dele. Talvez assim o partido consiga recuperar um pouco daquilo que era o PT de 1988. É uma pena ver um partido que já teve tanto a dizer afogando-se no mar de suas próprias palavras. Espero que o PT pós-Lula não se torne outra triste sombra como o PDT pós-Brizola. Espero, sinceramente, que o PT reencontre seu lugar na política brasileira e que aprenda (ou reaprenda), finalmente, a dialogar com o povo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Essa total falta de imparcialidade chega a ser feio. Criticar a maneira que o Crivella diz que vai governar não fará o Freixo ganhar mais votos. Eu voto 10!

Luiz Fabiano de Freitas Tavares disse...

É seu direito e respeito isso. O objetivo desse texto específico não era conquistar votos, apenas traçar alguns comentários acerca dos discursos e linguagens presentes na cultura política brasileira. Abs, LF