Texto do amigo Tiago de Souza - brilhante como sempre:
O dia dos professores passou. Como diria a Chiquinha: "Sim. E daí?!"
Logo, vale a pena falar sobre essa cena que pra mim é um baita exemplo
do "que fazer" e do que "não fazer" com o conhecimento e com o que tudo
que se decide "passar" ao aluno. E serve para uma reflexão sobre o que é
ser professor.
Ela é muito conhecida de quem gosta de Chaves,
desde sempre me marcou muito e hoje, revendo tudo, algumas coisas
fizeram sentido. Não, meu exemplo de professor ideal não é o Seu
Madruga. Nem o Girafales. O que eu não entendia era porque ele estava
falando sobre aquele assunto em uma sala de aula. Acho que depois de 14
anos dando aula (sim... Comecei novo no ofício) eu comecei a perceber
que tanto o "utilitarismo" rasteiro do seu Madruga quanto o êxtase do
prof. Girafales são importantes para um professor.
Durante toda a série o
Girafales tenta ensinar aos alunos conteúdos que pra eles não fazem
sentido. Claro que para um catecúmeno eles nunca fazem, mas é tarefa do
professor organizar uma narrativa que faça sentido para eles. Seja um
professor de História que está falando sobre as revoltas do Brasil
Colônia seja um baterista que está falando sobre paradiddles. O problema
do Girafales é que ele está mais preocupado com a "bagunça" dos alunos e
não percebe que em todas as suas outras aulas eles estão atentos,
quietos (claro que as vezes esporros são necessários...) e tentam
compreender a importância e a utilidade de tudo o que está sendo
transmitido. Por exemplo, no episodio sobre a "Chinfurínfula", Chaves
vai fundo na pergunta: até onde vão os limites na arte? E quando a
Chiquinha reclama que "já me bastam os problemas que tenho na vida" e o
Nhonho chora porque "matou as Antilhas", o que temos são os alunos dando
dois recados ao mestre: afinal, porque estamos estudando isso? Será que
você não percebeu que nossa imaginação é muito mais ampla do que o seu
plano de aula diz que é? Planos de aula, assim como na guerra, só
funcionam até tudo começar.
Aí vem o seu Madruga.
Com uma
retórica veloz, uma interpretação cômica mas que espuma seriedade e para
o deleite de todos - inclusive do professor Lingui... digo, Girafales -
ele traz um assunto que faz sentido. Os alunos foram fisgados. Bingo!
Se a aula tivesse continuado, eles poderiam perguntar sobre diversos
porquês: qual a composição química do tal veneno? Porque afinal, tomamos
choque? A aula poderia ser de Química, poderia ser de Física... E
também não poderia. De repente eles poderiam se surpreender: o assunto
da aula poderia ser o Nazismo. Sim! Se o Madruga estendesse o raciocínio
ele poderia dizer que, como alguém que vê uma caveira numa garrafa e
ignora o aviso que explica o seu conteúdo assim aconteceu na Alemanha da
década de 30. E pode acontecer no Brasil de hoje. "Porquê a pessoa quis
beber a garrafa professor?!" Chaves perguntaria. "Porque sim, tonto!"
diria Kiko. Aí entraria o conteúdo que apenas Girafales possui:
ideologia, as massas e a prática política, o "veneno" que foi o
totalitarismo nazista, as leituras de Hannah Arendt, a semiótica
aplicada a caveira do aviso, enfim... A aula - e a mente - estaria nos
trilhos.
Seu Madruga é divertido, mas seu utilitarismo tem limites.
Professor Girafales é um erudito, mas cuja sabedoria nem sempre é como
os cafés que ele toma com a dona Florinda: ela nem sempre é
compartilhada.
Muitos professores repudiam o tipo de conhecimento
e a vivência que os alunos têm. Muitos preferem se posicionar como os
sabichões eruditos e ignoram as necessidades dos alunos. Muitos são
escravos do currículo. Muitos estão ali pra "complementar a renda, meu
negócio é tocar". Muitos querem apenas "bombar" o Lattes. Mas muitos,
apesar da infeliz situação em que nosso país se encontram buscam ser
híbridos. Unem em uma única pedagogia a metodologia"madrugoniana" com o
referencial teórico "girafaleano". São "monstros", mas monstros do bem. E
são eles que me inspiram até hoje.
O mestre que não se importa
em enumerar todos os faraós do Egito mas prefere mostrar como o poder
baseado na religião é um veneno e aqueles que mostram que melhor do que
ter um paradiddle veloz é saber que aquilo é apenas "uma" palavra das
diversas possíveis e que em certos momentos "falar rápido" é ridículo - é
justamente para esses que eu desejo, com muito atraso, um feliz dia
nosso.
Por mais professores como esses.
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