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terça-feira, 2 de novembro de 2021

O "Eu" que não fala de mim

Dedicado a minha prima Leilane

Semana passada completei 38 anos de idade. No dia de meu aniversário recebi por WhatsApp a fotografia abaixo, enviada por minha prima Leilane e acompanhada de um meigo comentário: "Para aquecer seu coração, diretamente do túnel do tempo, o Luiz do passado vem saudar o Luiz do presente".

Nesta foto eu tinha cerca de um ano de idade (minha prima sequer era nascida). Não sei dizer se o local da fotografia era a varanda da casa de minha avó ou de seu irmão - ambos moravam na mesma vila e as fachadas das respectivas casas ainda permaneciam como originalmente construídas, em meados dos anos 50. A ausência de vasos de plantas, todavia, sugere que se trate da casa de meu tio-avô. Ao fundo da foto se percebem os contornos de dois adultos da família. Quem seria? Impossível identificar. A julgar por minha roupa, era uma ocasião festiva.

Mais que pela fotografia, em um primeiro momento me senti muito tocado pelo comentário de minha prima sobre o encontro entre o "Luiz do passado" e o "Luiz do presente". Um encontro entre eu e eu mesmo.

Olhando para o menino na foto e pensando na fala de Leilane, me peguei meditando sobre uma indagação de Derrida em uma antiga entrevista: "qui est ce 'Moi' qui parle de moi-même"? Embora não seja apreciador da obra de Derrida, assistindo a entrevista, a formulação do questionamento, um tanto perdida na algaravia costumeira ao filósofo, me pareceu muito feliz: quem é o "Eu" que fala de mim mesmo? 

Evocando o questionamento de Derrida, a singela fotografia me pareceu a um só tempo extraordinariamente familiar e curiosamente estranha. Quem era esse "Luiz do passado", com o indicador na boca, como a cutucar um dente, contemplado pelo "Luiz do presente"?

À época da foto eu já caminhava e, segundo fontes fidedignas, falava pelos cotovelos. A crer nas pessoas de minha família, fui muito precoce no desenvolvimento da fala. Em pouco tempo usava um vocabulário considerável e falava com uma articulação e desenvoltura incomuns para minha idade.

E, no entanto, que falava esse menino da fotografia? Mais ainda, que pensava ele? Com o dedo na boca e a encarar a lente da câmera, que pensava ele? Ou ainda, como pensava ele? Que tortuosos processos cognitivos se arranjavam na mente daquele ser falante? Quem era aquele "Eu" que não sou mais? Impossível saber.

Apesar da linguagem supostamente desenvolta, aquela mente pensante deixou poucas memórias nítidas. E, no entanto, a mente que redige essas linhas necessariamente partilha de muita coisa pensada por esse "Luiz do passado". Ao distinguir esta e aquela mente penso como Heráclito - a mente em devir nunca é igual a si mesma; talvez o próprio fato de pensar em si mesma já a faça diferente, gerando cada vez mais instâncias de metacognição, como uma imagem refletida por infinitos espelhos ou como uma gravura de Escher.

Qual era exatamente a extensão do vocabulário dessa criança seria impossível dizer, mas foi certamente nessa época que aprendi muitas das palavras que ainda hoje emprego. Esse núcleo mais primário da linguagem, alguns verbos, substantivos, advérbios faz parte do patrimônio que compartilhamos - mais ainda, do patrimônio cognitivo a mim legado por esse "Luiz do passado".

Duas palavras que certamente já deviam integrar meu vocabulário a essa altura eram os advérbios "sim" e "não". Mas que significavam essas palavras para esse "Luiz do passado"? Antes de tudo, suponho, instrumentos para manifestar ao mundo sua vontade. No "sim" e no "não" há uma consciência que emerge para a vida, um aceitar e um recusar certos modos de se relacionar com o mundo ao redor.

Segundo minha mãe, ao começar a falar, passei a rejeitar sistematicamente certos alimentos que antes consumia passivamente (entre os quais peixe e banana, aos quais voltarei). Como toda criança, descobria e formava meu paladar. A descoberta, ou mais propriamente revelação, dos alimentos que nos agradam ou não talvez seja um de nossos primeiros passos rumo ao autoconhecimento e à consciência de nós mesmos. Mas, muito antes da consciência de nós mesmos, um gesto de recusa ativa ao que o mundo - aí manifesto pela família - nos oferece e impõe. 

Um gesto primordial em que começamos o lento, incessante e interminável movimento pelo qual demarcamos um espaço entre o "eu" e os "outros". Obviamente permanecemos na condição de dependentes e comensais daqueles que nos alimentam. No entanto, deixamos gradativamente nossa posição de receptores passivos. 

A recusa é também um gesto de seleção. Uma seleção intuitiva, mas um vago despertar do "eu" que se demarca do "outro" através de uma vontade que ainda não se sabe vontade, mas que já se manifesta - mesmo sem palavras, muito antes das palavras. Na primeira vez que cada um de nós cospe um alimento desagradável se esboça instintivamente uma reação contra uma vontade que se impõe a nós - uma vontade à qual provavelmente antes cedíamos incondicionalmente, inconscientes de nossa capacidade recusar.

O cuspir do alimento tem algo de qualitativamente distinto do choro do recém-nascido. Nesse primeiro chorar se manifesta um vago descontentamento de sede, fome ou dor, mas que não reconhece bem o objeto de sua desdita. O alimento que cuspimos, todavia, é algo muito concreto, um corpo estranho cujo contato nossa língua repudia. 

Assim como o Atoun de certa cosmogonia egípcia criava Geb, Nut e Rá - Terra, Céu e Sol - através de uma cusparada no "tempo da primeira vez", nessa cusparada a um tempo instintiva e voluntária iniciamos o parto de nós mesmos, sempre incompleto e provisório. Eis a maiêutica primordial, incessantemente repetida pela maioria dos seres humanos desde o alvorecer da humanidade - e provavelmente antes, por incontáveis hominídeos, mamíferos e sabe mais quantas categorias de seres que habitam esse mundo. 

Quando meu cão cospe ou afasta o focinho de um alimento que o desagrada estamos unidos por algo muito profundo, entrelaçado talvez em nosso DNA - possivelmente uma aquisição evolutiva para evitar a ingestão de substâncias potencialmente tóxicas. Em todo caso, o cuspir do bebê humano tem algo de filogenético e ontogenético - muito individual, mas que, em muitos sentidos, transcende nossa individualidade e mesmo nossa espécie.

Nessa rejeição se manifesta o "Não", mas se inscreve também o "Sim" - "não" e "sim" que a poética taoísta tantas vezes associa ao yang e ao yin. Talvez aceitação e rejeição constituam nosso mais visceral modelo de relacionamento com a realidade, possivelmente as forças que mais nos movem em nosso cotidiano e pelas quais se tramam as redes de nossa sociedade. Em mim há alguma consciência tanto daquilo que aceito quanto do que recuso. Atração e repulsa constituem boa parte do que somos. Quando não gostamos de algo, há indubitavelmente parte desse algo em nós.

"Sim" e "Não" são as bases de nossas escolhas, o próprio caminho de nossas vidas, desde seus primeiros estágios. Mas é superando tanto o "sim" quanto o "não" que somos mais plenamente livres. Bergson diferenciava liberdade e livre-arbítrio de modo muito curioso. Segundo ele, o livre-arbítrio seria meramente nossa capacidade de escolher entre opções que a vida nos oferece. A  liberdade em sentido mais pleno só emergiria realmente nos raros momentos em que criamos algo, nas situações em que entrevemos algo além das possibilidades que a vida põe diante de nós.

De certo modo é o que temos feito ao longo de toda nossa história. O ser humano é um ser que cria todo tipo de coisas novas, de artefatos a canções - homo faber; mas esse gesto de criar livremente é também um modo de driblar as limitações que a realidade nos impõe, um jogar no qual somos também homo ludens. O brincar é certamente um de nossos primeiros modos de interagir com o mundo e com nossos semelhantes, sempre anterior à fala. E também o brincar, ressaltava Huizinga, é algo que partilhamos com boa parte dos animais. Em seu magistral "Homo ludens", Huizinga sustenta que o jogar é onde nos fazemos mais plenamente humanos - "spielen", "jouer", "to play" são verbos que as línguas alemã, francesa e inglesa relacionam às mais diversas atividades - o jogo propriamente dito, mas também a música, o teatro, a adivinhação, o ritual - atividades em que nos sentimos quase sempre absortos, distanciados das atividades ordinárias da subsistência, em que nossas mentes se sentem libertas e envolvidas pela imaginação. Durante o momento do jogo, o que mais importa é o próprio folguedo, que nos absorve e envolve. 

Esse "Luiz do passado" que encontro na fotografia era já um ser brincante. Como brincava? Não sei, mas brincava.  Brincadeiras e brinquedos constituem as memórias mais vividas e intensas de minha infância - e suponho que se dê o mesmo para maioria de nós. No brincar nos fazemos plenamente livres, no sentido bergsoniano. Para a criança que brinca, a realidade se faz trampolim para a imaginação. Tudo pode ser qualquer coisa - uma vassoura se faz cavalo, um balde se faz cachorro, uma pedra pode ser uma motocicleta...

Com efeito, uma das memórias mais vívidas de minha primeira infância remete a uma viagem ao município fluminense de Santo Antônio de Pádua. Ao entardecer eu costumava brincar em uma pracinha onde uma pedra achatada, em minha imaginação, se transformava em uma potente moto - perfeitamente estática, mas ainda assim em intenso movimento, veloz como um meteoro. A pedra-moto e eu nos movíamos imaginariamente - e não tão imaginariamente, sincronizados que estávamos com os movimentos de rotação e translação planetária. 

Coisa estranha, uma moto-pedra! Como nossos ancestrais pré-históricos eu via uma pedra, e naquela pedra imaginava algo mais. E quantas coisas somos capazes de ver no perfil de pedras, montanhas, sombras, objetos e reflexos. Em nossa imaginação podemos sempre ver e criar um "algo mais". Com sua criatividade incendiada e flamejante, o homo ludens vislumbra um potencial que, com muito esforço, o homo faber faz emergir como algo concreto. Talvez naquela pracinha de Santo Antônio de Pádua, minha mente realizasse processos não muito diferentes daqueles de nossos ancestrais na Garganta de Olduvai.

Talvez a tal pedra ainda esteja por lá até hoje. Quantas outras crianças antes e depois de mim não projetaram sobre aquela pedra seus mais acalentados desejos? 

Em minha casa, no Rio, eu tinha meu velocípede, que em minha imaginação também se transformava em motocicleta. E, no entanto, as limitações do velocípede ficavam sempre evidentes, por mais vigorosas que fossem minhas pedaladas. A ilusão talvez se tornasse um pouco mais palpável quando descia a ladeira da vila, freando com os chinelos. Ladeira abaixo, o velocípede corria velozmente e sem esforço, mas a descida era breve, e a realidade logo se impunha. Qual pequeno Sísifo, precisava de novo e de novo puxar o velocípede ladeira acima para gozar daqueles vertiginosos segundos.

A moto-pedra, pelo contrário, por sua própria condição física, só podia se mover por virtude da imaginação, que desconhece limites. Em seu contorno achatado, vagamente reminiscente de uma motocicleta, a pedra se tornava suporte para o exercício ilimitado da imaginação.

Mas o "Luiz do passado" que desvairadamente passeava em sua moto-pedra era um outro "Luiz do passado", não o mesmo da fotografia. E, no entanto, o "Luiz do presente" consegue ao menos se recordar das sensações evocadas pelos passeios em moto-pedra - o sentar-me no "assento", o inclinar-me para frente, o agarrar os guidões imaginários, o estático acelerar, as onomatopeias emitidas, o balançar-me de um lado para outro, ao sabor das curvas fantasiadas... Sensações que, mesmo sentado diante do computador, meu corpo adulto consegue, de certa maneira, emular.

Em sua moto-pedra, aquele "Luiz do passado", sem o saber, era também ator e plateia, tudo de uma vez - um tanto como o "Luiz do presente" com os videogames que não consegue abandonar. Homo semper ludens. Do berço ao túmulo, de certo modo, o viver em sociedade é um perpétuo role playing game - daí talvez boa parte do fascínio que os RPGs, em suas mais diversas modalidades, exercem sobre os jogadores.

Mas, para além do patrimônio mental partilhado, que mais nos une, "Luiz do passado" e "do presente"? Luzes olhares.

No momento, contemplo não apenas uma fotografia, mas uma fotografia de uma fotografia - mais precisamente, uma fotografia digital de uma fotografia analógica. Jogo de luzes a se perpetuar por quase quatro décadas. Em algum momento, por volta de 1984 alguém apontou uma câmera para o "Luiz do passado" e, com um clique, fez com que o filme dentro do aparelho fosse impressionado pela luz que penetrava pela lente, tendo antes "tocado" o corpo daquele menino, assim como o espaço e as pessoas ao redor. Em um laboratório, por procedimentos químicos, a frágil imagem formada no filme foi transposta para papel fotográfico, guardando o registro daquela criança naquele efêmero instante.

Guardada por anos, a fotografia foi novamente fotografada, desta vez por minha prima que sequer era nascida na época em que o retrato original fora feito, provavelmente através da câmera de seu smartphone, desta vez impressionando um delicado "fotorreceptor" capaz de registrar a luz como pixels, codificados eles mesmos através do código binário, usando o padrão .jpeg, elaborado e convencionado pela indústria do software. Enquanto escrevo, visualizo essa imagem como luz projetada pela tela de meu notebook

Mas em cada etapa desse processo, ao longe de tantos anos, luz, sempre luz, impressionando tanto esses engenhosos artefatos humanos quanto, mais importante, nossas retinas e mobilizando nosso aparato cerebral, para que nossas mentes atribuam significado essa imagem de um menino. Convertida e reconvertida, sempre luz.

Mais importante que a luz, no entanto, é o olhar, menos como potência fisiológica que como modo de interação com o mundo. Através dessa imagem, como em um espelho mágico, o "Luiz do presente" contempla o "Luiz do passado". No entanto, alguém em 1984 olhou para aquele menino, apontou a câmera em sua direção e, com um clique, registrou aquele instante preciso, naquele exato ângulo. Quem era exatamente o fotógrafo? Difícil dizer; em todo caso, era alguém que tinha interesse e carinho por aquela criança, uma das inúmeras pessoas com as quais cresci e convivi.

E, naquele exato momento, o "Luiz do passado" olhava para aquela pessoa que fotografava, com um misto de atenção e curiosidade, como quem é repentinamente chamado, como se faz normalmente para fotografar crianças pequenas. A posição dos pés esquerdo e direito, apontando em direções ligeiramente diferentes sugere a interrupção do caminhar. Provavelmente ele não tinha muita consciência de que naquele exato momento se formava uma imagem dele mesmo em um filme fotográfico. Nos anos que se seguiriam, por sinal, câmeras fotográficas permaneceram para mim objetos muito cobiçados aos quais, todavia, os adultos me negavam acesso; só muito mais tarde me foi permitido e manusear câmeras - um objeto frágil e caro, assim como relativamente caro era o próprio filme que registrava as imagens; nenhuma pose devia ser desperdiçada, algo inimaginável nesse tempo em que podemos produzir milhares de fotografias por dia a custo irrisório, fotografias cuja proliferação quase descontrolada, pulsional até, parece tornar menos e menos preciosas.

O menino fotografado ainda permitia que seus cabelos fossem penteados, e estes eram muito mais claros do que se tornaram ao longo dos anos, acompanhando as mudanças de seu metabolismo. O "Luiz do presente" começa a ter fios brancos un peu partout e uma calvície que começa a se mostrar com mais veemência. Ao longo dos anos fez as pazes com as bananas, mas continua muito reticente e seletivo no que diz respeito ao consumo de peixes. Algumas das barreiras que erguemos entre nós e o mundo ao longo da vida são mais duradouras que as outras. É através das pequenas e grandes aquiescências e desobediências que, ao longo da vida, tecemos nossa alma em sua singularidade. A cada "sim" e a cada "não" negociamos nossas fronteiras, sempre imaginárias, com o mundo e a vida.

Como a simbolizar essas barreiras e fronteiras, a emoldurar e separar o antes do agora, é possível perceber nas partes superior e inferior da imagem a superfície sobre a qual a antiga fotografia foi pousada para ser novamente fotografada. "Ceci n'est pas cela".

Há muita coisa que me aproxima e distancia deste "Luiz do passado" capturado pela fotografia. E é nesse constante movimento de aproximação e distanciamento que emerge "o 'Eu' que fala de mim mesmo", o pensamento que pensa a si mesmo. No entanto, todo esse pensamento se elabora a partir de um olhar composto por afetos sobrepostos - do misterioso fotógrafo, da prima carinhosa, do próprio "Luiz do presente". Olhar sempre portador de pensamentos, muitas vezes inconscientes, que não pensam a si mesmos - em certo sentido, o Eu que não fala de mim e, para bem ou para mal, permanece alheio a si mesmo... Virando a indagação de Derrida de ponta-cabeça, quem é o Eu-mesmo que permanece sempre além de mim?

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