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terça-feira, 17 de dezembro de 2019

"Bolsonaro está fazendo o que prometeu" - Entrevista com o filósofo Ruy Fausto


Ruy Fausto é filósofo, professor emérito da USP. Entre outras obras, lançou recentemente os excelentes livros Caminhos da Esquerda (sobre o qual já prestou gentil entrevista a este blog) e o igualmente brilhante O ciclo do totalitarismo – uma excelente reflexão crítica sobre as ideologias e regimes totalitários de esquerda e direita no século XX. Desta feita, concede entrevista sobre os rumos do governo Bolsonaro em seu primeiro semestre [a entrevista foi originalmente realizada em setembro, mas teve a publicação adiada devido a imprevistos; de todo modo, as considerações permanecem pertinentes alguns meses depois].

Como você avalia o primeiro semestre do mandato Bolsonaro?
Como ele diz – é uma das poucas vezes em que disse a verdade, uma triste verdade – ele não praticou estelionato eleitoral. Está fazendo o que prometeu. Ou, tentando fazer. Liquidar a esquerda, acabar com todas as mediações (congresso, tribunais, no limite acabar com a democracia), destruir a universidade, disseminar o obscurantismo, asfixiar a imprensa. Tudo isso, numa atmosfera de mediocridade e de boçalidade extremas. Vivemos um dos períodos mais sinistros da nossa história.

Na sua opinião, os setores de esquerda (partidários ou não) vêm atuando de modo consistente nesse contexto? O que precisaria ou poderia melhorar?A resistência se revela melhor do que se esperava, mas, apesar de tudo, com insuficiências graves, que em geral refletem o peso do passado. Digamos que, dentro do desastre, houve e há alguns fatores positivos. Primeiro o fato, já antigo, mas que pesou e pesa, de que, se Bolsonaro ganhou com folga, não esmagou o seu adversário. Creio que aquele forcing final da candidatura Haddad, impulsionado aliás, em grande parte, por gente independente, nos salvou. Um Bolsonaro eleito por setenta por cento dos votos válidos teria se transformado num rolo compressor. Depois vieram os escândalos (caso Queiroz, milícias), e as divisões entre eles. As revelações de The Intercept devem ser destacadas, porque não há como subestimá-las. Pode ser que, de novo, tenhamos sido salvos, agora pela atuação de uma agência dirigida por um liberal ("liberal") americano. Também nos ajudaram as divisões entre eles, agravadas por aqueles problemas. Há, aliás, o fenômeno curioso dos trânsfugas, adeptos de Bolsonaro ontem ou anteontem, que tomam posição contra ele. Impossível esquecer o papel que eles tiveram na vitória da extrema-direita, mas, isso posto, têm participado da crítica de modo muito aguerrido, e às vezes até brilhante. Descontemos os cheques que essas figuras emitem em nosso favor, ou antes, contra Bolsonaro, sem dar cheque em branco a eles, porque não sabemos como e onde vão terminar. Acrescentemos ainda a mediocridade gritante do personagem. Ai de nós, se tivéssemos aqui um Orbán ou um Erdogan. Bolsonaro é politicamente tão ruim ou pior do que eles, mas não tem a habilidade que os outros revelam. Suas intervenções são uma sucessão de desastres, digo, também para o seu próprio campo. Mas não nos enganemos. Isso é um aspecto. O outro é precisamente a fidelidade dele ao seu próprio programa. De forma que a gente nunca sabe se a gaffe foi apenas ou exatamente isso, ou pelo contrário, uma medida pensada e intencional. Acho que as duas coisas. Por exemplo, ele continua elogiando torturadores para cristalizar os trinta por cento de eleitores de que dispõe (perdeu uns vinte cinco), mas com isso e outras coisas mais (discursos escatológicos, intervenções brutais na administração, nepotismo, irresponsabilidade absoluta nas nomeações, às vezes confiada a um guru quem nem conhece a pessoa – e que pessoa – escolhida, destruição da Amazônia etc); ele vai se queimando, inclusive com forças importantes do establishment. Estes andam considerando se um defensor tão reacionário quanto, mas menos barulhento e mais prudente, não seria, no fundo, preferível.
E a esquerda? Em parte reagiu bem, aproveitando as barbaridades do segundo ministro da educação (personagem arquimedíocre além de obscurantista e reacionário), e organizou manifestações que tiveram algum ou (no caso da primeira) bastante sucesso. Também a literatura jornalística antibolsonaro é a destacar. Aguda, sarcástica, mobilizando alguns dos melhores jornalistas, mais cientistas políticos e professores universitários, em geral. A atuação no congresso, até onde pude acompanhar, teve altos e baixos (como diziam outrora os comentadores esportivos). Uma massa de congressistas meio perdida diante do desastre, e não sabendo bem por onde começar, e certo número de deputados e deputadas (acompanhei mais de perto as sessões da Câmara) intervindo de modo muito eficaz e convincente. Não se pode deixar de destacar a atuação do lider da oposição, Alessandro Molon, embora ele não tenha sido o único a acertar. Mas com tudo isso, a esquerda não se mostra suficientemente forte. Sua debilidade tem raízes históricas. O partido de esquerda que foi hegemônico (não sei se ainda o é) apoia a sua política (eu diria quase: resume) na campanha pela liberação de Lula. Ninguém duvida, principalmente depois das revelações de The Intercept, que o julgamento de Lula, referendado ou não por um fieira de juízos, foi irregular e fraudulento. Lutar para que seja solto, tudo bem, isso se impõe. Mas há ai dois problemas: um é o de que o PT tenta insinuar, aproveitando as revelações, que as práticas dos governos petistas e do PT em geral, foram perfeitamente inocentes. Nada mais falso. As revelações de The Intercept não apagam erros e abusos, e em geral o fato de que havia, sim, promiscuidade entre parte do poder econômico e o poder petista. Nem apagam outros escândalos e casos graves, a começar pelo "mensalão". Apesar das aparências, isso tudo pesa hoje em dia. O PT não sabe, mas está desgastado. E também por isso, embora não só por isso, precisamos de uma política que não se limite a pedir a liberdade de Lula, e, de forma geral, que diga a verdade… Sem falar na desastrosa ambiguidade que o PT continua alimentando (é o mínimo que se pode dizer) a propósito do que significa o governo Maduro, na Venezuela. Não basta dizer que “cometeu alguns erros“. Isso só não se afirma (os crentes!) de Deus… Enfim, esses fatores impedem levar adiante uma luta contra o bolsonarismo que seja realmente eficiente e amplamente mobilizadora. Precisamos contar com toda a esquerda (e uma esquerda que esteja mais preocupada com o seu interesse geral, que é o do país) do que com os interesses de burocracias partidárias, para alavancar o conjunto das forças democráticas.

Muitos analistas afirmam que estamos vivendo sob uma espécie de "parlamentarismo brando" ou "parlamentarismo branco". O que você pensa disso?
Certos cientistas políticos, cada vez mais raros, aliás, insistem em ver o processo como se tratasse de mais um episódio de uma pretensa luta entre executivo e legislativo. Sem negar o interesse em estudar como atuam tais forças na situação atual, dar esse privilégio a certas noções tradicionais no bojo da tentativa de compreender o que se passa hoje no Brasil e no mundo, é de um total provincialismo - um formalismo provinciano. Prefiro não entrar nessa discussão, que inserida num contexto substantivo, poderia ser interessante, mas tal qual ela vem sendo formulada tem pressupostos mistificadores.

Em sua opinião, quais seriam as alternativas para a esquerda nas eleições presidenciais de 2022?
Precisaríamos de um candidato único, é claro. Mas essa possibilidade torna-se cada vez mais fraca. Ciro parece ter rompido definitivamente com o PT (ele tinha lá suas razões para se distanciar do PT, mas o seu comportamento, desde o segundo turno das eleições de 2018, foi irresponsável). Quanto ao que fará o PT, não sabemos. Também não sabemos como se comportarão as outras forças e os outros partidos de extrema-esquerda, de esquerda ou de centro esquerda, como o PSOL e o PSB. O ideal seria uma articulação que mobilizasse pelo menos parte importante das formações e movimentos de oposição. A direita irá àquelas eleições (se houver eleições) certamente dividida: com Bolsonaro (ou representante), mais Dória, e ainda, provavelmente, um candidato de centro-direita tipo Huck. A esquerda também irá dividida. Apenas entre PT e PDT? Não sabemos. E qual seria o candidato do PT, já que, quanto ao PDT, parece certo que escolherão de novo Ciro. Haddad continua sendo um bom nome, apesar de muito desgastado pelo oportunismo do partido (Gleisi relutou até o fim a propor a candidatura de Haddad, o humilhou o quanto pôde, e dentro do partido havia – e parece que ainda há – a turma do "Lula ou nada"). Seria possível ainda tentar a chapa Ciro/Haddad, que não conseguiu se estruturar em 2018? Longe de mim, supor que Ciro é um nome ideal. Mas na situação muito grave em que estamos, todas as possibilidades devem ser examinadas. Há aliás outros nomes no PT, como o do atual governador da Bahia. Fora do ex-partido hegemônico, há o governador do Maranhão, Flávio Dino, prejudicado por se apresentar como candidato de um partido que se intitula comunista. Isso não pega bem em lugar nenhum no final da segunda década do século XXI, nem fora nem dentro da esquerda. O que não quer dizer que socialismo ou mais precisamente, esquerda democrática não pegue, por mais que o nome socialismo tenha sido maltratado pela esquerda totalitária. Veja-se o curso surpreendente da campanha eleitoral americana.

Que lições você acha que o povo brasileiro será capaz de tirar até 2022 da situação política corrente?
Espero – sou talvez meio otimista, aqui – que a experiência sinistra do governo Bolsonaro queime definitivamente a extrema-direita, e consideravelmente a direita que direta ou indiretamente o elegeu. Talvez – de novo, sendo bastante otimista ­­– tudo isso termine num banho frio para as direitas, em geral. A partir da gritaria em torno da famosa "roubalheira do PT", essa gente elegeu um personagem corrupto, violento, bronco, cujas posições representam o que existe de mais regressivo na atual política mundial. Os bolsonaristas não são exatamente fascistas, porque lhes faltam alguns traços do fascismo. Mas eles são certamente aparentados com o fascismo. Diria que são primos dos fascistas. Defendem o que é possível defender do fascismo no final da segunda década do século XXI. Mas esse fascismo possível do nosso século é suficiente para destruir as nossas instituições. Sem falar no problema que hoje talvez seja o mais importante de todos. A extrema-direita joga hoje, no plano mundial, a carta da destruição da vida no planeta. O ceticismo diante do aquecimento global, aquecimento hoje comprovado por praticamente a totalidade dos cientistas de todos os continentes, representa uma política literalmente suicida, de quem grita, como os fascistas espanhóis em outro tempo: "viva la muerte". Pois eles não se limitam a professar opiniões céticas diante do que ocorre no Antropoceno: eles agem em consequência. A destruição da floresta amazônica é o presente mais terrível, porque irreversível se não conseguirmos parar o carro a tempo, que nos lega o bolsonarismo.


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