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sábado, 28 de dezembro de 2019

Do letramento carioca - Ainda

Dedicado aos amigos Marcos e Filipe, interlocutores dessa reflexão

Acho que o fechamento de livrarias físicas - em parte - tem a ver com a concorrência das compras virtuais, dos e-books etc. Mas é fato que o carioca "médio" (se é que isso existe) não é chegado à coisa. De vez em quando pergunto a meus alunos de Ensino Fundamental e Médio sobre hábitos de leitura e muitos (a maioria, no Fundamental) NUNCA entraram numa livraria. Alguns se espantam ao saber que numa livraria é possível folhear livros sem pagar. Muitos relatam ler menos de um livro por ano, nunca ter lido um livro com mais de 100 páginas ou nunca ter lido um livro inteiro. Tenho uma anedota ainda mais significativa: minha escola municipal fica perto do Norte Shopping, onde (ainda) há uma Saraiva MEGAstore; muitos alunos meus, embora frequentassem o shopping, nunca tinham notado a existência da imensa livraria. Apesar do tamanho da loja, ela permanecia quase literalmente invisível para eles. 

Vivemos numa cultura fundamentalmente iletrada - e isso não tem a ver apenas com desigualdade social. Meus alunos de Ensino Médio passam por processo seletivo; a maioria deles é de classe média baixa e cursou o fundamental em escola particular - ainda assim leem pouco, apresentam dificuldade ao interpretar textos e não dominam plenamente a expressão escrita. Mesmo pessoas com formação universitária pouco leem. Conheço médicos, engenheiros e até professores sem hábitos de leitura consolidados. Já tive alunos de graduação que mostravam profunda aversão à sugestão de gastar dinheiro com livros. Enfim, a leitura e o livro ocupam papel marginal na cultura brasileira e carioca e, obviamente, os lugares que vendem livros padecem do mesmo mal.

A crescente prevalência de filmes dublados nas salas de cinema, penso eu, é fenômeno correlato. Quem já tem dificuldade de ler textos "fixos" terá dificuldade ainda maior em acompanhar o ritmo das legendas de um filme. O fechamento de livrarias e a escassez de sessões de filmes legendados são sintomas da mesma doença.

Ao falar numa cultura fundamentalmente iletrada, penso, com efeito, nos fundamentos históricos brasileiros, nos alicerces culturais de nosso povo. Vale lembrar alguns clichês historiográficos que permanecem relevantes para pensar a temática; a comparação com a experiência da América espanhola é bastante reveladora, como já sugeria o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Enquanto a coroa hispânica fundava suas primeiras universidades em solo americano no século XVI, a primeira universidade brasileira ainda não completou sequer cem anos! Durante todo o período colonial só houve uma tipografia na América portuguesa, de duração efêmera e fundação tardia, na segunda metade do século XVIII, enquanto nossos hermanos já imprimiam livros desde o primeiro século de colonização. Isso obviamente não significa que os hispano-americanos fossem majoritariamente letrados, nem que a escrita e a leitura fossem completamente irrelevantes no âmbito colonial luso-brasílico, no entanto, fica evidente que há diferenças relevantes em relação à produção e circulação de impressos. Por sinal, penso que não haja exagero em dizer que a monarquia e a hierarquia eclesiástica lusitanas foram, de longe, as instituições europeias mais reticentes em relação à produção e circulação de material impresso, sempre visto como potencial ameaça à Fé e ao Império.

Não quero com isso postular ou inferir qualquer tipo de inferioridade inerente ao nosso processo de formação histórica, muito menos arvorar um discurso de fatalismo histórico. Pretendo apenas constatar que a precariedade da cultura letrada no Brasil é parte de um processo de longa duração, lembrando ainda que as políticas educacionais durante o Império e a República foram e continuam sendo inconsistentes - apenas no Estado Novo a Educação começou a ser pensada (um pouco) mais seriamente enquanto política pública, e desde então vem seguindo caminhos tortuosos, com seus altos e baixos. Uma figura mais que emblemática dessa árdua e inglória luta é o pouco lembrado Anísio Teixeira, cujas pequenas vitórias e grandes derrotas lembram a imagem de um profeta que fala aos ventos. Feitas as contas, sou otimista e acho que a educação no Brasil teve imensos avanços quantitativos nos últimos cem anos; nosso grande desafio para o século XXI é melhorar - e muito - a qualidade da estrutura hoje existente.

No entanto, o problema cultural do letramento no Brasil e no Rio não se resume à esfera institucional e às políticas públicas. É importante pensar no papel conquistado pelas mídias de massa no Brasil ao longo do século XX - outro fascinante paradoxo brasileiro.

Consternado com a idiotização das massas pela televisão nos Estados Unidos dos anos 1950, Ray Bradbury imaginou um futuro distópico onde livros seriam queimados como política pública; vivesse ele no Brasil, à mesma época, o pesadelo seria a constrangedoramente pequena quantidade de livros disponíveis para a fogueira...
Como sinalizava o saudoso brasilianista Thomas Skidmore, o Brasil foi muito precoce no que tange à expansão do rádio e da televisão, mas ao contrário de outros países pioneiros nesses setores, nossa população era majoritariamente iletrada na época, o que deu a essas mídias um poder cultural muito peculiar em nosso país. O brasileiro foi fortemente exposto às mídias de massa sem que houvesse um letramento prévio para servir de contrapeso. 

E é claro que tudo isso é um convite à "vidiotia". O exercício da leitura e da escrita é ferramenta importante, talvez essencial, para certo desenvolvimento da introspecção, do pensamento crítico, da capacidade de elaborar e avaliar argumentos entre outras tantas competências vitais para a cidadania plena e efetiva e, num nível mais profundo, para a formação de uma consciência autônoma.

É duplamente sintomático dessa renovada "vidiotia" brasileira o espaço que os livros de youtubers estão ocupando no mercado editorial. Foram os mais vendidos nas últimas bienais e certas livrarias já concedem espaço privilegiado e destacado a essas obras. O maior problema é que livros de youtubers mal podem ser chamados de livros. Geralmente são coleções fragmentárias de textos de qualidade duvidosa, repletos de fotos e figuras com diagramação espalhafatosa. Dificilmente servirão como porta de entrada para leituras mais densas, sofisticadas e edificantes. O livro de youtuber é "vidiotia" impressa e encadernada, para consumo rápido e descarte imediato.

Tudo isso soa bastante elitista (e talvez seja mesmo). Não quero, todavia, atribuir juízos de valor às pessoas iletradas ou postular a superioridade de uma cultura erudita e letrada em relação à cultura popular e oral. Muito pelo contrário, elas podem e devem se complementar. O problema é a substituição da oralidade popular viva e pulsante pela indústria cultural massificada e massificante, simplória, simplista, embalada para viagem e descartável, com a única finalidade de gerar modismos frívolos e lucrativos, programada para a obsolescência. Como já dizia Ariano Suassuna, o que mata o cordel não é Shakespeare, é a novela da Globo - ou, atualizando, o lixo cultural diariamente produzido na e para a Internet...

Biblioteca Nacional: tesouro mudo para cariocas iletrados.

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