Newsletter

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Oficina de Clio - Newsletter

Inscreva-se na newsletter para receber em seu e-mail as novidades da Oficina de Clio!

Nous utilisons Sendinblue en tant que plateforme marketing. En soumettant ce formulaire, vous reconnaissez que les informations que vous allez fournir seront transmises à Sendinblue en sa qualité de processeur de données; et ce conformément à ses conditions générales d'utilisation.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Sobre ilusões, participação e inteligência artificial

Nos últimos anos tenho lido e refletido muito sobre inteligência artificial. Recentemente venho fazendo alguns experimentos participativos de "engenharia reversa", ou como diria Walter Benjamin, venho tentando "escovar a inteligência artificial a contrapelo".

Os resultados podem ser curiosos. Ando jogando Assault Horizon Legacy no Nintendo 3DS. É um jogo de combate aéreo com um fiapo de narrativa, onde o jogador pode pilotar inúmeros modelos de caça desde aeronaves dos anos 70 a alguns aviões experimentais atuais. Meu favorito, por sinal, é o já clássico Rafale M, desenvolvido para as forças armadas francesas - mas isso é assunto para outra conversa.

O jogo possui gráficos bastante elaborados e a interface é espetacular, parecendo (suficientemente) realista usando os parcos recursos do 3DS. A modelagem das aeronaves parece muito boa. Os terrenos são gerados usando imagens reais de satélite; sobrevoados de grandes altitudes passam uma impressão de realismo quase cinematográfico ou fotográfico. A inteligência artificial dos pilotos inimigos e aliados funciona bem quando tentamos realizar as missões. E aqui está o "pulo do gato".

O que acontece quando o jogador não tenta cumprir a missão proposta? O que acontece quando o usuário evita deliberadamente participar da ilusão?



Há cerca de uma hora realizei um experimento nesse sentido, na missão "Acid Rain", onde o jogador deve abater diversos bombardeiros que ameaçam a fictícia cidade de Anchorhead, escoltados por caças de modelos variados. Os ataques acontecem em ondas: a primeira delas conta com apenas dois bombardeiros; conforme o jogador os vai abatendo, as sucessivas ondas são compostas por números cada vez maiores de inimigos, e a última imprime um ritmo frenético ao jogo. Caso a cidade seja pesadamente bombardeada... game over.

Em lugar de cumprir a tarefa dada, disparando mísseis e voando freneticamente atrás dos inimigos, resolvi apenas acompanhar e observar a ação dos bombardeiros. Em quanto tempo eles seriam capazes de destruir completamente os bairros de Anchorhead? Descobri algumas coisas interessantes.

Primeiramente, o padrão de voo dos bombardeiros inimigos é bastante caótico. Se deixados em paz, eles passam muito tempo ziguezagueando aleatoriamente, largando algumas bombas apenas esporadicamente. Deixados à própria conta, os inimigos não fazem grande estrago. Em condições normais de jogo, obviamente, não é o que se passa. O jogador, enredado na trama avança rapidamente contra as ameaçadoras aeronaves, abatendo-as e fazendo com que venham outras.

Os bombardeiros, pilotados pela IA, normalmente se esquivam dos ataques, mas não esboçam "reação" quando acompanhados pacificamente. De fato, eles se comportam como se o usuário/inimigo sequer "estivesse" ali. O mesmo pode ser dito das aeronaves de escolta, que seguem fielmente os bombardeiros, sem reagir veementemente ao intruso no cortejo; apenas eventualmente disparam alguns mísseis ou saraivadas de metralhadora. A mira deles também é curiosamente ruim, o que leva a concluir que seu objetivo real é mais assustar o jogador que causar danos - como acontece numa montanha russa.

Pior ainda, descobri que, na verdade, não há gráficos do lançamento das bombas - apenas os efeitos sonoros de explosões. O jogador não percebe isso porque, normalmente, ele está olhando para outro lugar: disparando contra um caça ou evitando um míssil. Mesmo que esteja de frente para o bombardeiro que está efetivamente "atirando", o usuário pensará que as explosões ouvidas aconteceram em outro lugar. Excessivamente envolvido com a partida, ele não conferirá o radar para verificar que apenas aquele bombardeiro sobrevoa a área alvejada naquele momento específico. Estamos diante de certa forma de alienação - no sentido etimológico do termo.

Devo acrescentar ainda que isso tudo se passava no nível Hard - ou seja, a ação da inteligência artificial deve ser ainda mais anêmica nos níveis mais fáceis. Além disso, a modelagem 3D das aeronaves, que parece tão bonita e detalhada durante o uso normal do jogo, revela toda sua grosseria quando o jogador voa em baixa velocidade, dando-se ao luxo de contemplar, em lugar de atirar.

Ao fim e ao cabo, fica a pergunta: como caímos na ilusão? Por que nos deixamos enredar em aparências tão grosseiras?

O antropólogo Alfred Gell (num texto que não li) propõe a obra de arte como armadilha. É um ponto de partida interessante; tomo aqui a ideia num vago empréstimo.

Muitas armadilhas, como um anzol, requerem a presença de uma isca. E, de fato, o jogo emprega inúmeras iscas para fisgar o usuário. Em primeiro lugar, o jogador recebe um briefing introdutório, onde seu comandante afirma que a cidade e seus habitantes se encontram ameaçados etc etc.

Iniciamos a missão ao som de uma trilha sonora orquestral que lembra todos os filmes de ação vistos recentemente, recorrendo a uma percussão discreta, cordas sincopadas e metais estridentes - alguém mais pensou em Hans Zimmer? Da narrativa propriamente dita somos jogados no terreno da convenção musical. George Lucas sabia o que queria quando pediu a John Williams que compusesse uma trilha romântica, com todos os artifícios acumulados desde Wagner e Verdi, capaz de tornar familiar o estranho universo de Star Wars.

Espaços e distâncias também são meticulosamente planejados em Assault Horizon: o jogador inicia a missão numa das extremidades do mapa, enquanto a cidade se encontra no centro. Uma breve olhada no radar mostra que o ataque é iminente e será necessário correr para alcançar os bombardeiros.

Como se não bastassem esses elementos, o jogo ainda conta com a voz do comandante ao rádio, devidamente acompanhada por efeitos de estática e um tanto abafada. O hábil dublador avisa, em tom cada vez mais alarmado: "Phoenix, the bombers are approaching the city!!!" - "The city is taking dammage, take out those bombers!!!" - "The city is taking heavy dammage, shoot out those bombers!!!". O artifício é muito inteligente, e as sugestivas falas nos induzem a "ver" uma cena que não está efetivamente "lá". Como não pensar na lendária encenação radiofônica de A Guerra dos Mundos, com que Orson Welles teria ludibriado a população nova-iorquina?

Com efeito, os sons tapam inúmeros buracos da parte gráfica do jogo, que mal conseguimos perceber em situação normal - o que me leva a citar, pela enésima vez, o romance Cloud Atlas, de David Mitchell. Em certa passagem do romance o músico Robert Frobisher menciona as cartas repletas de impressões sonoras enviadas pelo irmão do front na Bélgica, durante a I Guerra Mundial:

Adrian's letters were hauntingly aural. One can shut one's eyes but not one's ears. Crackle of lice in seams; scutter of rats; snap of bones against bullet; stutter of machine guns; thunder of distant explosions, lightining of nearer ones; ping of stones off tin helmets; flies buzzing over no-man's-land in summer. Later conversations add the scream of horses; cracking of frozen mud; buzz of aircraft; tanks, churning in mud holes; amputees, surfacing from the ether; belch of flametrowers. squelch of bayonets in necks. European music is passionately savage, broken by long silences.

O que é mais interessante nessa passagem é que o próprio narrador também se vê enredado na ilusão literária do irmão, à medida que ele mesmo, que nunca foi à guerra, apenas imagina esses sons; o mesmo se passa com os próprios leitores do romance, que, em sua maioria, não foram à guerra - bem como o próprio romancista! Personagens e leitores se veem assim sutilmente "embrulhados" pelo hábil autor.

Retornando ao jogo, o único lugar onde a cidade de Anchorhead se encontra efetivamente ameaçada por bombardeiros é a própria imaginação do usuário, que costura todas as pistas sonoras, visuais e narrativas num todo coerente. O mesmo sucede no cinema, onde uma série de imagens e sons fragmentários se reúnem como um todo coeso - quando o diretor domina suas técnicas, obviamente.

Com efeito, é preciso pouco para desmanchar catastroficamente a ilusão. É o que se passa, por exemplo, com X-Men Destiny, um dos piores jogos que já experimentei. O gráfico é passável e até os numerosos bugs de programação são toleráveis. O problema irremediável do game é a inépcia com que seus detalhes foram amarrados.

Curiosamente, um dos defeitos que mais me incomodou era a paupérrima programação de efeitos sonoros. Qualquer bom jogo traz efeitos sonoros encadeados. Por exemplo, em Assault Horizon, quando se dispara um míssil, ouvimos o som do projétil lançado; se ele acerta o alvo, ouvimos o som da explosão. Zelda: Twilight Princess no Wii leva essa dinâmica à perfeição: quando atiramos uma flecha, o alto-falante do controle remoto emite o som do disparo, que é suavemente continuado pelo televisor, como se uma flecha realmente se afastasse do jogador. X-Men Destiny comete o crasso "erro" de empregar sons genéricos para os golpes dos protagonistas, sem outros feedbacks que sugiram ao jogador sobre seus efeitos e impactos.


No entanto, como vimos, mesmo um jogo habilmente dirigido como Assault Horizon vê suas ilusões ruírem quando o jogador não lhe oferece seu consentimento - quando o usuário não morde a isca. A ilusão só funciona quando o usuário efetivamente participa da dinâmica proposta - ou seja, ele aceita tomar parte, fazer parte, ser parte. Ao se tornar parte do jogo ele ingressa no todo imaginado e sugerido pelos produtores, e então a magia da arte acontece: estamos no cockpit de um Rafale M, tentando salvar os cidadãos de Anchorhead de um terrível ataque. Basta sair do papel de participante e inventar uma imprevista posição de observador para escapar do feitiço - o véu de maya foi rasgado, como diriam talvez os místicos hindus.

Uma vez tomada a decisão e o caminho da ruptura com a ilusão, os artifícios empregados pelos produtores do jogo se desmancham em cascata. Destes, o que se desfaz mais dramaticamente, me parece, é a inteligência artificial programada. Quando o usuário se comporta de modo inesperado, os bots se mostram incapazes de reagir de modo satisfatório - é um padrão que venho observando em outros jogos.

É particularmente curioso perceber que o usuário se torna virtualmente invisível para o programa a partir do momento que não age segundo o acordo tacitamente estabelecido - as regras do jogo. Ele está paradoxalmente dentro, mas também fora do jogo. Por exemplo, um experimento interessante é deixar o carrinho absolutamente parado em Mario Kart, jogando no modo "Batalha". Os adversários passam constantemente ao lado do jogador, sem "perceber" que ele está ali ou empreender qualquer forma de ataque. Jogando em modo multiplayer online, com outros seres humanos de diversos cantos do planeta a coisa muda de figura: um carrinho parado se torna presa fácil.


Os bots de Mario Kart ou Assault Horizon estão evidentemente programados para captar e reagir a movimentos em determinadas condições e velocidades específicas - oferecendo ao jogador níveis cuidadosamente balanceados de dificuldade (uma arte dificílima). Em suma, essas inteligências artificiais foram preparadas para interagir com participantes que aceitaram tacitamente certas condições de interação, mas se encontram completamente "desorientados" perante um observador. Paradoxalmente, nesse caso, agir implica uma postura passiva, enquanto não agir implica uma postura ativa - o que lembra o sábio conselho taoísta de "agir pela não-interferência".

Com efeito, a "não-interferência" abre as vias da metacognição - o pensamento que pensa a si mesmo - conseguindo promover um processo de desidentificação com o avatar do jogo (uma palavrinha que parece muito apropriada nesse caso). O usuário, liberto das regras arbitrariamente impostas pelos produtores, sai do reino de samsara. Estar simultaneamente dentro e fora do jogo, participar sem se tornar mera parte - talvez isso seja nirvana.



Tudo isso me lembra as palavras de Mestre Yoda para Luke Skywalker em O Império Contra-Ataca:

You will know (the good from the bad) when you are calm, at peace. Passive. A Jedi uses the Force for knowledge and defense, never for attack. [...] Yes, a Jedi’s strength flows from the Force. But beware of the dark side. Anger, fear, aggression; the dark side of the Force are they. Easily they flow, quick to join you in a fight.


Enfim, há aqui ainda algumas considerações possíveis, estabelecendo paralelos com o trabalho do historiador e do antropólogo. O historiador com suas fontes, que são, em muitos sentidos, armadilhas; o antropólogo com seu método de "observação participante", que também tem suas aporias. Mas essa também é outra conversa.

Um comentário:

Thales disse...

Uma das melhores reflexões investigativas de estética, simulação e filosofia da mente que já li em toda a minha vida!!!! Está sendo um brainstorm para mim o digerir e absorver todos esses dados e ideias completamente novos!!!! Sensacional, Luiz Fabiano!!