Vivemos há alguns anos um agudo processo de polarização política - e não apenas no Brasil. As relações sociais se encontram tensionadas e esgarçadas.
Hoje soube de uma artista "de esquerda" que passou por uma situação de "cancelamento", por certa opinião que expressara. Como se sabe, "lacração" e "cancelamento" são práticas de "linchamento virtual" que se tornaram comuns em espaços de comunicação digital, em grande medida tomados da boa e velha estética do vexame, tão comum ao longo da História. A meu ver, constituem atos de censura tácita a pessoas e discursos, que pouco edificam a coletividade em seu conjunto.
Há quem sustente, baseado em episódios como esse, que "a esquerda está dividindo a sociedade". É bem verdade que tal estética vem sendo entusiasticamente abraçada por setores da dita "esquerda identitária", em imensa medida nutrida pelo pós-modernismo chocado pela pelos "filhotes parisienses de Nietzsche" (para falar como Ruy Fausto) e cuidadosamente alimentada nos campi universitários dos EUA, como há anos apontam Marshall Sahlins e Mark Lilla
A meu ver, tal argumento de causalidade padece de tremendo reducionismo, pondo de lado a geopolítica e a economia do século XX.
O identitarismo pós-moderno emerge com força após a Guerra Fria, em boa medida reforçando linhas de fratura sociais já existentes.
Para ficar com alguns simples exemplos vale mencionar a duradoura manutenção das leis de segregação racial nos EUA, a criminalização da homossexualidade no Reino Unido, bem como seu tratamento como transtorno psiquiátrico na França até os anos 70 ou ainda a demonização dos gays vinculada à AIDS nos 80 e 90; not least, as restrições variadas aos direitos femininos em diversos países - na França, por exemplo, o sufrágio feminino só foi reconhecido nos anos 70.
Nada disso justifica as atuais paranoias e exageros dos discursos e movimentos identitários, mas contextualiza a questão de maneira mais ampla e complexa.
É fácil acusar a "esquerda" de atitudes divisivas, mas convém sublinhar que a coesão de (neo)conservadores e (neo)liberais "fisiológicos" não é de espantar, visto que ambos grupos estão, apesar dos discursos diferentes, comprometidos com a manutenção do "status quo". O mesmo pode ser dito da "esquerda fisiológica", que se alimenta de discursos banais de revolta barata para manter posições institucionais consolidadas.
Em boa medida, Weber já sinalizava para isso ao falar dos políticos que vivem "para a política" (basicamente a direita abastada, defendendo os próprios interesses "patrimoniais") e aqueles que vivem "da política" (em grande medida os políticos de esquerda que tiram da política sua subsistência, supostamente defendendo os interesses dos trabalhadores). Weber escreveu isso antes da I Guerra, mas me parece muito válido ainda hoje. Ele se referia apenas a políticos stricto sensu, mas creio que se aplica igualmente a ideólogos, artistas e líderes religiosos, de diferentes maneiras.
A estes, à direita ou à esquerda, convém alimentar polarizações estéreis e divisões agudas, contanto que estas revertam em retornos eleitorais, vantagens econômicas ou mesmo a promoção de produtos midiáticos variados, desde livros, programas de rádio e televisão, filmes, séries e até mídias sociais monetizadas. Há quem faça da polarização política uma galinha de áureos ovos, a exemplo de Olavo de Carvalho, Márcia Tiburi e tantos outros que não pretendo mencionar.
Aos adeptos da sensatez, convém, a meu ver, cultivar uma democracia saudável, onde liberalismo, conservadorismo e socialismo se complementem, até porque todos possuem fundamentos genuínos e representam questões sociais e culturais importantes. Para tanto, há que identificar, distinguir e criticar os extremos - o neoliberalismo assanhado (que solapa os direitos sociais e trabalhistas), o pseudo-conservadorismo truculento e tacanho (que ameaça os direitos civis mais elementares) e a esquerda "revolucionária" (cujo discurso envenena o exercício dos direitos políticos).
À coletividade dos cidadãos convém defender com unhas e dentes os direitos civis, políticos e sociais conquistados e reivindicar sua expansão, sempre tendo em mente os deveres cívicos que correspondem a cada um desses direitos.
Somente assim, penso, abandonaremos as trincheiras que tanto nos perturbam a vida e atormentam a consciência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário