(texto originalmente publicado em meu blog "A rota para o poente" em 13/02/2010)
Esta semana tive a oportunidade de adquirir no McDonald`s um gracioso bonequinho do Chaves. Além de ser muito bonitinho, com uma expressão hiper-simpática e vir devidamente acompanhado por seu barrilzinho, a miniatura caminha de modo bastante engraçado, movida por uma corda. Passei algum tempo estudando esse movimento, e apreciando a engenhosidade do mecanismo.
De fato,o mecanismo em si é belo por sua simplicidade. Funciona de modo semelhante ao pedal de uma bicicleta, mas de modo invertido, ou seja, o movimento circular da mola impulsiona suas pernas, enquanto em uma bicicleta são as pernas que impulsionam o movimento circular da roda traseira, através do pedal.
Essas observações me levaram a curiosas reflexões. Comecei a pensar sobre esse gênero de mecanismo, classificado como um sistema de biela-manivela, amplamente usado em boa parte das máquinas elaboradas pelo ser humano. Basicamente, é um mecanismo que serve para transformar movimentos retilíneos em circulares e vice-versa. O pedal da bicicleta ou o boneco do Chaves são bons exemplos disso. Poderiam ser citados ainda os motores em geral, as bombas hidráulicas, a maior parte das máquinas industriais, entre muitos outros. Não me aprofundarei mais nessas explicações, pois me faltaria o conhecimento necessário para tanto.
Pensando nisso, lembrei-me de um documentário que assisti faz algum tempo, sobre um engenhoso artesão, matemático e astrônomo turco, chamado Al-Jazari, que viveu entre os séculos XII e XIII. Segundo documentos encontrados recentemente, aparentemente Jazari inventou o "nosso" mecanismo biela-manivela. Seu intento era o de criar máquinas capazes de transportar água de modo automático e eficiente, geralmente tirando-a de corpos naturais de água como rios, lagos, etc e passando-a para aquedutos. Essa era uma funcionalidade de suma importância para a região onde Jazari vivia, dada a aridez de boa parte do Oriente Médio. O sistema biela-manivela parece ter chegado ao Ocidente por volta do século XV, sendo registrado num manuscrito alemão da época, aplicado ao funcionamento de moinhos.
Contudo, é ainda mais interessante pensar que esse mecanismo não é exatamente uma invenção de Jazari, mas uma adaptação (ainda que extremamente engenhosa) de um mecanismo muito mais antigo, a manivela, já conhecida dos antigos romanos e largamente empregada por eles desde o século III a.C., e ainda em uso entre os contemporâneos do sábio turco. Todavia, a própria manivela não era uma invenção romana, pois artefatos arqueológicos recentemente encontrados apontam para o uso desse mecanismo pelos celtas da Península Ibérica já desde o século V a.C., empregado em moedores manuais para grãos. Seriam os celtíberos seus inventores? Impossível dizer.
Todas essas divagações me levaram a refletir sobre a historicidade das menores coisas, a ligar-nos qual fios invisíveis a centenas de gerações humanas, distantes no tempo e no espaço. Ora, pensemos em todo esse longo percurso saindo desde a elaboração da (aparentemente) primeira manivela pelos celtíberos, 2.500 anos atrás, espalhando-se por intermédio dos romanos, que passariam aos árabes seu uso, sendo apropriada, adaptada e modificada por Al-Jazari, desenvolvendo o sistema biela-manivela, que por sua vez chegaria três séculos mais tarde à Europa, onde seria empregada de inúmeras formas através dos últimos quinhentos anos, utilizada hoje para fins que não passariam pela cabeça dos celtíberos, dos romanos, dos árabes, de Al-Jazari ou dos moleiros europeus... por exemplo, fazer uma miniatura do Chaves caminhar graciosamente pela mesa de minha sala numa madrugada de sexta-feira!
No fim, os homens de todos os tempos e lugares estão ligados até pelas mais ínfimas coisas.
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