"Prefiro me queixar de minha fortuna que me envergonhar de minha vitória".
Dito atribuído a Alexandre Magno, mencionado por Michel de Montaigne
"Prefiro me queixar de minha fortuna que me envergonhar de minha vitória".
Dito atribuído a Alexandre Magno, mencionado por Michel de Montaigne
Hoje de manhã houve uma altercação sobre política na portaria do meu prédio, envolvendo quatro pessoas. Em 13 anos morando aqui é a primeira vez que vejo algum bate-boca. O triste é saber que essa polarização não vai acabar depois das eleições. Talvez até piore.
7 de setembro de 2022, Abolição, Rio de Janeiro, cerca de 23 horas.
No boteco de minha esquina, um cidadão entusiasmado berra: "Hoje é dia de Flamengo e Bolsonaro"! Não era exatamente o brado retumbante que eu esperaria ouvir no bicentenário da Independência.
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Lá se vão mais de vinte anos, a empregada de minha avó relatava, encantada e vivamente emocionada, o encontro com o prefeito de seu município na Baixada Fluminense: "Imagina, Dona Nair, uma pessoa importante apertando a mão de uma pessoa como eu"!
Ficava ali evidente a noção de que ela não era uma pessoa importante - não se via no mesmo patamar existencial que o prefeito; já era muito que ele mantivesse algum contato físico com uma pessoa "como ela": doméstica, analfabeta, retirante, moradora de um bairro periférico. Seu encantamento revelava tanto uma visão autodepreciativa quanto uma surpresa imensa com o extra-ordinário fato de que, por um breve instante, uma "pessoa importante" a tivesse tocado, rompendo (mas não muito) uma barreira social.
Por volta da mesma época, ela era fiel eleitora da Família Garotinho. Em certa ocasião, comentava que valia a pena votar para ver "um casal tão bonito" como Rosinha e Garotinho. Àquele casamento idealizado evidentemente se contrapunha sua própria relação com um marido alcoólatra, que não trabalhava e maltratava os enteados. Votar era um modo de participar, de alguma maneira incompreensível, quase mística, da aparente felicidade conjugal daquelas "pessoas importantes".
Nessa vivência profundamente afetiva da política se articulavam mecanismos de projeção, intensificados pela precariedade da vida e pela autodepreciação, em uma sociedade em que historicamente, sempre se esperou que cada um soubesse se colocar "em seu devido lugar", em um país cuja Independência mantivera a escravidão e forjara um Império cujo monarca era o próprio sucessor da coroa lusitana, onde é necessário que as coisas mudem para que se mantenham as mesmas.
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7 de setembro de 2022, Brasília, manhã.
Perante uma multidão, o Presidente da República, homem cristão, defensor da família, da moral e dos bons costumes ora, agradecendo a Deus por ter lhe concedido uma "segunda vida". No meio da oração, um pequeno coro começa a gritar algo um tanto inadequado para um momento de louvor e adoração: "Imbrochável! Imbrochável! Imbrochável!"
Longe de ignorar essa espúria manifestação popular, o dito presidente cristão interrompe a oração para, sorridente, puxar ele mesmo, ao microfone, o coro: "Imbrochável! Imbrochável! Imbrochável!", sem grande adesão da multidão ali reunida, talvez consternada. Sem hesitar, o presidente retoma sua oração.
Me ponho a imaginar uma criancinha ali presente perguntado para a encabulada genitora: "Mamãe, o que é 'imbrochável'?"
Tudo isso na Pátria Amada em que a família e a moral se encontram ameaçadas por uma esquerda endemoninhada, que planeja sexualizar as crianças e distribui "kit gay" e mamadeiras eróticas nas escolas...
"Brasil acima de tudo. Deus acima de todos". Amém.
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"Imbrochável, imorrível e incomível", já se declarou inúmeras vezes o presidente, como parte de uma infindável litania marcada por certo ideal de virilidade, celebrando o arqui-macho brasileiro, herdeiro do lusitano "furor femeeiro", como diria Gilberto Freyre. Bolsonaro, afinal de contas, é o homem das armas e bravatas, com sua infatigável "arminha", gesticulação eleitoral cujo teor fálico parece difícil negar. Assim como a empregada de minha avó se projetava no casamento de Rosinha, é mais que provável que milhares de machões deste Brasil Varonil se projetem no Presidente Imbrochável com sua obsessão armamentista. Como sarcasticamente cantavam os Beatles, "happinness is a warm gun".
"Imbrochável" é o presidente que faz questão de ostentar sua esposa-troféu, muitos anos mais jovem. Mais que troféu, no entanto, Michelle Bolsonaro tem sido usada como trunfo eleitoral, em uma campanha que visa arrebanhar o eleitorado evangélico feminino. A "varoa" recatada que ora pelo marido em sua cruzada contra o Mal. Bolsonaro, pai do jovem que "pegou metade do condomínio" tenta ao mesmo tempo se vender como varão cristão e garanhão "imbrochável" para diferentes parcelas do eleitorado, por mais contraditório e contraintuitivo que isso possa parecer.
Nesse país onde tudo é possível, o defensor da "família tradicional brasileira" acumula casamentos e divórcios mais que litigiosos, marcados por escândalos públicos; como deputado federal, declarava empregar o auxílio-moradia "para comer gente".
"Deus, Pátria e Família". Não espanta que a Ditadura Militar também tenha sido a era áurea da pornochanchada brasileira.
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"Jair, o Imbrochável" é também, não esqueçamos, o "incomível", para não deixar dúvidas quanto a sua heterossexualidade. Poucas coisas parecem abalar o clã Bolsonaro mais que dúvidas sobre sua masculinidade.
Não espanta tal necessidade de se afirmar "incomível" por parte de alguém que sai do sério ao ser chamado de "Tchutchuca do Centrão"!
Espantoso, todavia, é o modo como "Jair, o Incomível" inúmeras vezes recorre a metáforas de teor homoerótico para descrever seus relacionamentos políticos - namoro, "casamento hetero" e por aí vai.
Not least, vale lembrar a pitoresca fala do "Incomível" ao ex-galã pornô Alexandre Frota pouco antes de sua ruptura política: "Fecha essa matraca, puta que pariu, eu quero continuar transando com você".
Freud explica.