Nos últimos meses, o Judiciário anda na berlinda. Os defensores de Lula na mídia "independente" iniciaram uma ampla ofensiva contra o Judiciário; parte da pauta "pegou", despertando justa indignação contra os privilégios da magistratura, numa crítica transversal a tendências ideológicas variadas, desde a extrema direita à extrema esquerda.
Muitas dessa críticas tendem a formular frases como "o Judiciário é isso", "o Judiciário faz aquilo", "o Judiciário pensa assim", "o Judiciário age assado". Tais formulações me parecem um tanto simplórias, à medida que tratam de modo uniforme e homogêneo uma rede institucional tão complexa como o Judiciário.
Para escapar desse tipo de armadilha, talvez seja interessante questionar o que o Judiciário não é. Vejamos.
Em primeiro lugar, ele não é um partido político, nem mesmo um simples apêndice de qualquer partido. Isso não quer dizer que o Judiciário não tenha interesses ou tendências políticas - tais tendências existem, mas creio que são variadas, de acordo com os posicionamentos de cada magistrado e as dinâmicas peculiares de cada região, instância, especialidade. Por outro lado, acho difícil reduzir os problemas políticos do Judiciário à simples dicotomia esquerda-direita (como, aliás, é problemático fazê-lo em quase todos os sentidos). Tenho a impressão de que as clivagens políticas no seio da magistratura tendam muito mais a se articular em torno de problemas jurídicos muito específicos que, a nós leigos, soam quase bizantinos.
Nada disso significa que a magistratura esteja além de quaisquer influências dos partidos políticos que se alternam no poder. Em alguma medida ela existe, mas se faz segundo as complexas condições impostas pelo cursus honorum do Judiciário. Suas hierarquias se formam, por assim dizer, por acumulação estratigráfica, vão se sedimentando e alterando ao longo de décadas. É um poder muito menos volátil que o Legislativo ou o Executivo, formado por lenta decantação; Executivo e Legislativo operam em ritmo muito mais acelerado, a 2,5 rotações por década, por assim dizer. Vale notar, nesse sentido, a visível disparidade entre as trajetórias dos políticos convencionais, repletas de altos e baixos, e as carreiras dos magistrados, que costumam ser uma ritmada ascensão.
Tal complexidade fica evidente, por exemplo, na recente votação do habeas corpus de Lula no STF. Dos seis ministros contrários à petição, cinco foram indicados por Dilma ou pelo próprio Lula, mostrando bem os limites das intervenções político-partidárias no Judiciário.
Legislativo e Executivo no Brasil tendem a funcionar como balcões de negócios, no desavergonhado e por demais explícito toma-lá-dá-cá que tão bem conhecemos. Por outro lado, as tensões do Judiciário me parecem se acertar segundo um ethos menos explicitamente mercadológico, mais aristocrático, mais próximo à lógica das graças, desgraças e mercês da sociabilidade de corte. Talvez seja a instituição mais caracteristicamente "Ancien Régime" em nossa barroca república.
Em certo sentido, é também uma casta, uma corporação coesa contra agentes externos, apesar de suas tensões internas, dotada de uma aguda "consciência de classe" (sensu Mandrou). Por outro lado, seus padrões de recrutamento me lembram - até certo ponto, note-se - a constituição do clero católico pós-tridentino; há ali algo de "eclesiástico" em sua estrutura viva (mas nada de propriamente "religioso", note-se também).
Prosseguindo em nossas apofáticas reflexões sobre o Judiciário, é interessante lembrar que, ao contrário do que sugerem certas opiniões recentes, o Judiciário não é necessariamente o sustentáculo da democracia - não nos iludamos a esse respeito: o Judiciário é antigo demais para isso. Nunca é demais lembrar, com Simone Weil, que as raízes mais remotas de nossas instituições jurídicas estão no Direito Romano, talhado à medida da sociedade escravocrata onde nasceu. Em nosso caso específico, cabe ainda lembrar que o Direito Romano serviu como um importante marco para pensar e administrar a escravidão no Atlântico português.
Até onde sei (mas não sou especialista no assunto), a legislação vigente em terras brasileiras mudou muito e diversas vezes no Brasil, mas tais metamorfoses nunca acarretaram rupturas muito graves no Judiciário, enquanto corporação. Me parece que a magistratura conseguiu fazer transições bastante suaves, talvez demasiadamente suaves, da colônia à Constituição de 1824, do Império à República, atravessando relativamente protegida as turbulências da Era Vargas, da Terceira República e da Ditadura Militar, finalmente adaptando-se, sem tensões excessivas, à Constituição Cidadão de 1988. Constituições e marcos legais vêm e vão, mas a Magistratura permanece, simultaneamente aquém e além do ordenamento jurídico que opera.
Não quero com isso afirmar alguma imobilidade ou imutabilidade do Judiciário, desejo apenas sinalizar que seu regime de mudança e transformação se dá em padrões peculiares, segundo dinâmicas muito próprias. As mudanças se dão no quadro de uma liturgia onde a continuidade é sutilmente enfatizada e as eventuais rupturas são dissimuladas quanto possível, sempre glissando, nunca stacatto.
Em suma, a imagem do Judiciário como guardião da institucionalidade democrática é tardia e recente; faz parte do imaginário da Quinta República e da Constituição de 88, sem raízes profundas na própria tessitura da instituição.
Ao contrário do que se sugere na esfera dos discursos, o Judiciário não existe para a democracia, e nem precisa da democracia para existir. Nada disso, evidentemente, quer dizer que o Judiciário e a magistratura sejam inimigos da democracia; significa apenas que essa relação não é essencial e transparente - e nem muito sólida.
Me parece que uma ampla e profunda reforma do Judiciário é necessária se desejarmos consolidar nossa República em bases mais democráticas a longo prazo. Não penso, todavia, que esse seja o momento mais adequado para tal. No atual clima de polarização ideológica e instabilidade política, com um Executivo e um Legislativo tão desacreditados e carentes de legitimidade moral, tal reforma do Judiciário tenderia a ser catastrófica. Contudo, é um debate extremamente necessário para a próxima década, quando, espero eu, nossas condições se tornem um pouco mais favoráveis.
De qualquer modo, vale sempre questionar, juvenalmente: e quem julga os juízes?
Nossa velha magistratura, nos vivos traços de Debret. |
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