Se você já torceu o nariz só lendo o título, só posso lhe dizer uma coisa: "você não vai com a minha cara"? Como meus caros amigos sabem, sou fã incondicional da obra de Roberto Gomez Bolaños, o Chespirito. O tema desse post é uma reflexão que venho desenvolvendo há alguns anos. Na verdade, causa-me estranheza a falta de trabalhos nesse sentido; por sinal, considero-a sintomática dos preconceitos que ainda grassam na academia. Afinal de contas, as séries em questão são um grande sucesso em TODOS os países da América Latina há nada menos que 36 ANOS, sem esquecer que com uma mínima renovação de episódios ao longo de todos esses anos. Não é necessária muita sensibilidade historiográfica para se perceber que há aí algum fenômeno cultural bastante significativo, que escapa ao mero efeito de massificação cultural. Contudo, como sabemos, as pesquisas voltadas para a produção artística de "alta cultura" são sempre vistas com mais benevolência, mesmo que as obras em questão não tenham um alcance social muito amplo. É preferível falar de filmes "de arte" que de cinema pipoca, como tem descoberto meu camarada Rogério Marques, que se aventura a percorrer sendas menos batidas.
Mas voltemos ao tema do post. Ultimamente têm sido publicados alguns livros sobre Chaves. Embora curiosos, a meu ver apenas um tem valor acadêmico apreciável, "Foi sem querer querendo", de Luís Joly, Fernando Thuler e Paulo Franco, fruto de uma pós-graduação em Comunicação Social. Na área de História, nada. Pretendo aqui ventilar algumas sugestões sobre como Chaves e Chapolim podem proporcionar vasto campo de estudos, sendo riquíssimas fontes primárias. Na verdade, Chapolim ficará para outra ocasião, pois há muito, muitíssimo a se falar. "Pois é, pois é, pois é"!
O universo de Chaves é um esplêndido microcosmo que representa de forma estilizada, distorcida e refratada uma complexa constelação de relações muito comuns nas grandes cidades latinoamericanas. De fato, a vila do Chaves é muito interessante pelas dinâmicas relacionais que apresenta, carregadas de tensão e ambiguidade.
Uma das relações que mais me fascina na série é aquela mantida entre Seu Madruga e Prof. Girafales, magistralmente sintetizada no famoso discurso de apresentação da peça das crianças no Festival da Boa Vizinhança, onde Girafales fala sobre Seu Madruga com uma fabulosa mistura de menosprezo, complacência e, talvez, uma ponta de inveja (vide citação nos comentários do post). Os diálogos entre os dois personagens são frequentemente marcados por certa reverência de Seu Madruga ao conhecimento e posição social do professor, apesar de certo desrespeito latente e dissimulado; por outro lado, é nítida a atitude de superioridade de Prof. Girafales, sem falar de seu ostensivo e explícito desprezo por Madruga, mal disfarçado pelas regras de civilidade. No entanto, essa relação tem seu reverso, e muitas vezes, sempre reticente e encabulado, Girafales recorre aos conselhos de Madruga, que diz ser um homem "mais vivido". A relação entre os personagens se baseia toda nas distâncias culturais, no abismo a separar cultura oral e letrada, instrução formal e aprendizado empírico, erudição e malandragem. De fato, sua inserção no mundo do trabalho diz muito: um é o funcionário público especializado e qualificado, o outro o biscateiro faz-tudo, sem emprego ou renda fixa, devendo seus famigerados 14 meses de aluguel... Um episódio onde essas distâncias culturais são exploradas de modo muito interessante é aquele onde os dois ensinam Chaves e Quico a "violar tocão"; as diferentes posturas e métodos dos dois em suas aulas mostram atitudes diversas em relação à cultura musical.
Outra relação interessante é a de Chaves e Seu Barriga, onde a tônica dominante é a benevolência do dono da vila em relação ao menino de rua. Sem dúvida, esta tem muito de ideológico. Barriga é um homem rico, que vive de rendas, mas ao mesmo tempo é bonachão e sempre que possível ajuda Chaves de alguma forma. Além disso, tolera estoicamente os meses de aluguel atrasado de Seu Madruga sem despejá-lo. Essas relações exploram as ambiguidades das relações de classe na América Latina de modo igualmente ambíguo. Nesse sentido é bom lembrar que todos se compadecem da condição miserável de Chaves, muitas vezes fazem algo para mitigar suas necessidades, mas jamais algo definitivo. Por sinal, Dona Florinda o emprega em seu restaurante, mas como trabalhador informal, não fosse a valorosa atuação da União dos Trabalhadores Pró-Juventude, da Associação Pró-Direitos Femininos e do Diretório Nacional dos Veteranos em Restaurantes (os outros significados para as siglas dessas respeitáveis instituições vocês já conhecem); aliás, no fim das contas, não é Chaves que conquista seus direitos, mas Dona Florinda, conscientizada, que os concede, de cima para baixo. Soa familiar, hermanitos?
Há muitas, muitas outras possibilidades a explorar, mas por hoje é só. "Sigam-me os bons"!
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9 comentários:
Prof. Girafales - Esta representação teatral foi montada e dirigida pelo Seu Madruga. Mas, por favor, não caçoem dele. Talvez a vocês o trabalho dele pareça tolo, inútil, comum, vulgar... Sim, concordo! Mas é que devem levar em conta que se trata de um indivíduo sem nenhum preparo. De um pobre diabo que nem sequer concluiu o primário! De um pobre infeliz que mal aprendeu a ler e a escrever... Deixe-me continuar, Seu Madruga. De um joão ninguém...
Seu Madruga - Por favor, professor... É que eu não gosto de ser elogiado em público!
Caramba: tô rindo só de ler e me lembrar dos episódios! Sem dúvida são propostas de análises muito pertinentes! Me pergunto se não há pesquisa sobre esse assunto em qualquer outro país latino...
Olha, Cláudia, pelo que já andei pesquisando, os historiadores ainda não despertaram mesmo para El Chavo del Ocho. Na América Latina há muitos trabalhos sobre o tema em Comunicação, mas não em História. "Que coisa, não"?
Ah, já acabou? Muito bom texto. Realmente vemos preconceito por parte dos "acadêmicos" em relação a nosso querido Chavinho. Acho que já está na hora de essas aspas serem retiradas...
Mas, prossiga, professor! Dizia você que a aritmética...
Sensacional, Tavares!
Sensacional, Tavares!
"É preferível falar de filmes "de arte" que de cinema pipoca, como tem descoberto meu camarada Rogério Marques, que se aventura a percorrer sendas menos batidas."
Antes de mais nada, obrigado pela citação e por se compadecer do meu drama! rs Mas é verdade, a Academia ainda é escrava de certas Tradições e ainda temerosa de se aventurar por áreas "novas".
É notório e inquestionável a importância cultural do seriado Chaves e do Chapolin.
Os personagens e situações do seriado representam muito mais que inocente comédia pastelão e possuem uma profundidade que nenhum Zorra Total conseguirá alcançar.
Olha, eu também sou fã incondicional do universo Chaves. Gostei muito de sua reflexão, pois é algo que eu sinto igual (mesmo estando em 2015, 4 anos após ao post). O mundo acadêmico, de fato, tem que estar atento que o alargamento de temas da história não cessou.
Abraço,
Márlon.
Obrigado pelo feedback, Marlon! Não só esse alargamento nunca cessou, como jamais cessará, e precisamos sempre contribuir para a constante renovação de temas e reflexões do campo historiográfico. Grande abraço!
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