Newsletter

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Oficina de Clio - Newsletter

Inscreva-se na newsletter para receber em seu e-mail as novidades da Oficina de Clio!

Nous utilisons Sendinblue en tant que plateforme marketing. En soumettant ce formulaire, vous reconnaissez que les informations que vous allez fournir seront transmises à Sendinblue en sa qualité de processeur de données; et ce conformément à ses conditions générales d'utilisation.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

"Coringa" - Breves impressões

Como ando muito ocupado me falta tempo para um comentário de fôlego acerca do novo e brilhante "Coringa"; deixo aqui breves notas, aguardando tempo para escrever algo mais aprofundado.

AVISO: CONTÉM SPOILERS

- Gostei e não gostei do filme. Achei impecável enquanto arte cinematográfica e Joaquín Phoenix atua com virtuosismo, mas não consigo ver o Coringa ali. É um personagem parecido com o Coringa, que se chama Coringa, mas não é o Coringa (um tanto como os sucos do Chaves). O personagem não tem agência, sua postura é notavelmente passiva, ele só reage ao que acontece - me parece que isso descaracteriza demais o Coringa, mesmo se tratando de um filme "de origem".

-Tendo a discordar das análises muito "politizadas" do filme. A obra tem dimensões de crítica social e política, mas me parece muito mais complexa que isso. O próprio Coringa afirma mais de uma vez que não liga para política - esse dado não é irrelevante, pois os atos do Coringa não se querem políticos; os demais personagens é que se apropriam politicamente desses atos, em apoio ou oposição. Creio que o mesmo vale para as apropriações do público sobre a mensagem da obra cinematográfica. Acho que o filme atira para todos os lados, e não consigo ver sua mensagem como propriamente "esquerdista" ou "direitista". Thomas Wayne e os ricos decerto são apresentados de maneira antipática, mas olhando com atenção, os "movimentos sociais" da ficção - inspirados por um múltiplo assassinato e compostos por uma multidão acéfala sob o absurdo slogan "kill the rich" - não me parecem tampouco enaltecidos pela direção do filme. De resto, a película adota uma estética visual formalmente realista, mas a narrativa joga com muitas camadas de delírio (o duplo delírio do Coringa e de sua mãe), o que confere a todo o resto certo caráter emblemático ou alegórico, mais conotativo que denotativo, por assim dizer. As críticas sociais e políticas do filme são apresentadas com grande sutileza e é com igual sutileza que precisam ser interpretadas.

-Eu diria que o tema central da obra é, sobretudo, loucura versus "normalidade". O Coringa é um doente numa sociedade doente, cuja aparente "normalidade" é, em verdade, doentia. O descaso das autoridades e das elites para com os cidadãos de Gotham é patológico.  Os "movimentos sociais", tal como retratados, também são doentes e parte da patologia coletiva - são loucura inspirada por um louco.

-No começo do filme, "Arthur Fleck" não é vítima dos ricos, mas de uma gangue de garotos latinos, levando um sujeito "normal" a oferecer uma arma a um paciente psiquiátrico para ele "se defender"; depois que as coisas dão errado, esse mesmo sujeito "normal" simplesmente lava as mãos, como se não tivesse qualquer responsabilidade.A obra retrata uma sociedade profundamente adoecida,  conflagrada. Coringa reflete essa doença e a sociedade reflete a doença do Coringa, num jogo de espelhamentos.

-Achei fantástico o uso do lixo como alegoria, aludindo às grandes greves de lixeiros dos EUA nos anos 70 e 80. A sociedade não consegue lidar com seu próprio lixo - material e moral - e os ratos proliferam. Ratos como o Coringa, Thomas Wayne ou os manifestantes-palhaços. Por fim, a discreta alusão humorística do apresentador Murray Franklin à necessidade de "super-gatos" para combater a infestação de ratos me parece um interessante comentário metalinguístico sobre o próprio gênero ficcional de super-heróis.

-O passado da família Wayne é objeto de constantes, sensacionalistas e desnecessárias revisões nos quadrinhos. No caso específico do filme, não gostei da ideia de retratar o assassinato de Thomas e Martha Wayne como um crime político - o que retira ou perverte boa parte do significado da futura cruzada de Bruce Wayne contra o crime. Enfim, o assassinato dos Wayne como ato político esvazia completamente a figura do Batman. Não gosto da versão de Tim Burton, em que os Wayne são assassinados por um jovem "Jack Napier", futuro Coringa, mas ao menos faz mais sentido; Napier seria apenas um assaltante de rua.

-Um detalhe me pareceu espetacular, de uma deliciosa ironia: a versão de Zorro que os Wayne assistem antes do assassinato é justamente "Zorro - The Gay Blade"... remetendo (conscientemente ou não) às paranoias do Dr. Frederick Wertham sobre os quadrinhos e à persistente brincadeira popular sobre a sexualidade de Batman e Robin.

-Achei o filme muito pesado e tenho experiências e relatos de que fez muito mal a alguns pacientes psiquiátricos. Me parece um tanto leviano produzir uma obra com tintas tão carregadas para um público de milhões de espectadores. Obviamente não quero aqui advogar qualquer tipo de censura ou sequer autocensura, mas concordo com João Caetano quando dizia que o artista deve ter certo comedimento ao manipular as emoções do público. A arte pode tanger fibras muito sutis da alma humana e isso exige algum tipo de responsabilidade.


Nenhum comentário: