Depois de uma qualificação e dois artigos, de volta ao velho blog!
Nesse meio tempo, tive oportunidade de ler alguns livros maravilhosos em minhas horas vagas, dentre os quais o interessantíssimo Monstro de Deus, cujo esclarecedor subtítulo em Português é "Feras predadoras: história, ciência e mito". A obra constitui um excelente exemplo do quanto um bom trabalho de divulgação científica, escorado em pesquisa sólida e questionamentos criativos pode oferecer perspectivas intelectuais extremamente instigantes.
David Quammen elabora uma interessante abordagem interdisciplinar, unindo ciências humanas e biológicas para discutir as relações entre as culturas humanas e os grandes predadores ou, como os denomina, os "predadores-alfa", animais capazes de atacar e devorar sozinhos um ser humano, como leões, ursos, crocodilos, tigres, entre outros.
Sua análise explora a temática em diversos sentidos, por exemplo, discutindo as relações entre mitologia e ecologia, explorando as relações entre as feras mitológicas e as interações entre os homens e seus ecossistemas em épocas arcaicas. Para tanto, recorre a textos como a epopeia de Gilgamesh, o Nibelungenlied, a saga de Beowulf ou a Bíblia. Como bem observa Quammen, Humbaba ou Leviatã eram mais que monstros - eram a personificação da fragilidade humana ante uma natureza poderosa e incontrolável, povoada por grandes animais realmente capazes de reduzir indivíduos à condição de refeição... Como sintetiza o autor, "uma morte no trânsito é um infortúnio banal que não choca a consciência pública com a mesma força que um urso homicida, devorador de carne. Uma coisa é estar morto. Outra coisa é transformar-se em carne".
Um dos pontos altos do livro é a discussão do artigo Being Prey ("Ser presa"), da filósofa australiana Val Plumwood, sobrevivente de um ataque de crocodilo em sua juventude:
"'Se a morte ordinária é um horror, a morte nas mandíbulas de um crocodilo é o horror supremo', testemunha Plumwood. Seu horror mais profundo deriva daquelas 'quebras de fronteiras proibidas' que combinam 'decomposição do corpo da vítima com a reviravolta da vitória sobre a natureza e a materialidade que a morte cristã representa. A predação de crocodilos sobre humanos ameaça a visão dualista do domínio humano sobre o planeta no qual somos predadores mas não podemos nunca ser presas. Podemos consumir diariamente outros animais aos bilhões, mas nós mesmos não podemos ser comida para vermes e certamente não carne para crocodilos'".
De fato, tornar-se presa é a antítese radical de nossas antropocêntricas ilusões sobre o cosmo - e nosso lugar no cosmo. É assumir um papel que há muito nos recusamos a representar, especialmente em nossa sociedade hedonista, que procura inutilmente expulsar da vida as dimensões de sofrimento. É lembrar humildemente que não somos o centro do universo.
Quammen explora magistralmente as ramificações políticas, econômicas e sociais dessa questão em vários contextos históricos, formando um complexo quadro sobre a importância dos animais em nossas vidas e em nosso imaginário. Um livro indispensável para todos aqueles que se interessam pela ecologia e por nossas relações com o mundo natural.
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