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quarta-feira, 17 de junho de 2020

Línguas, Livros, Caminhadas e Travessias

Nos últimos dias empreendi uma empolgante travessia: pela primeira vez li, de capa a capa, um livro inteiro em Alemão, 270 páginas, uma de cada vez.

Não li como quem caminha sobre uma ponte, mas como quem atravessa um rio com água até os joelhos.

O livro, obviamente era "Krabat", de Ottfried Preußler, uma de minhas obras favoritas de fantasia, que descobri quase por acaso, na Bienal de 2007, num balcão de livros encalhados.

Ainda no ônibus, retornando para casa, abri o livro e o devorei em menos de 48 horas. Assim é a prosa de Preußler. Nos anos seguintes li "Krabat" mais duas vezes, ainda na língua de Camões.

Em 2012, quando Priscila e eu partimos para nosso inesquecível verão europeu, um de meus objetivos era trazer para casa um exemplar de "Krabat" na língua original.

Iniciei minha busca desde o primeiro passo em solo germanófono, na insossa Zurique, provavelmente a cidade mais prosaica, chata e pequeno-burguesa do mundo. Em Zurique avistei quantidade de carros de alto luxo como em nenhum outro lugar, mas as livrarias eram escassas, e não havia exemplar de "Krabat"em nenhuma delas, para minha grande decepção.

Felizmente Zurique (onde jamais pretendo zurückgehen) era apenas uma escala. Dali tomamos um trem noturno para Viena com seus mil encantos. Assim que descemos na Hauptbahnhof e tomamos nosso Frühstück, procuramos a livraria da estação. Em meu sempre claudicante alemão, me dirigi à balconista:

"Guten Morgen! Haben Sie 'Krabat', bitte?"

A moça arregalou seus olhos azuis:

"'Krabat'?! Von Preußler?!"

Me senti como quem perguntasse se havia pão na padaria. Retruquei:

"Ja. 'Krabat', von Ottfried Preußler. Haben Sie es...?!"

"Natürlich!"

Sem delongas, a moça atravessou a livraria na diagonal e em poucos segundos eu tinha a relíquia em minhas mãos, como um Parsifal que houvesse encontrado seu Santo Graal:

"Danke schön! Ich liebe 'Krabat'!"

Meu Alemão era insuficiente para expressar adequadamente minha gratidão, mas imagino que o sorriso tenha sido mais que expressivo. A moça sorriu de volta, com uma longa frase, da qual pouco entendi.

Meses depois, de volta ao Brasil, finalmente tomei meu exemplar germânico de "Krabat" para, supostamente, me deleitar com a prosa de preußleriana original. Em vão. Após muitas consultas ao dicionário e à tradução brasileira, desisti da tarefa que se revelou ingrata.

Com imensa frustração entreguei "Krabat, von Preußler" a uma prateleira. Havia viajado meio mundo atrás daquele livro, mas agora que o tinha em minhas mãos, não conseguia juntar as palavras, frases, parágrafos e páginas para fazer um romance. Eu enxergava as árvores, mas a floresta escapava a meus olhos. Me senti como um Parsifal que houvesse encontrado o Santo Graal, mas permanecesse incapaz de contempla-lo em sua ofuscante luminosidade.

Sempre tive facilidade para aprender línguas - a começar pela Portuguesa. Dizem meus familiares que comecei a falar com espantosa fluência com menos de um ano de idade. Alfabetizado, logo comecei a buscar livros cada vez maiores. Aos sete anos encasquetei de ler os dois imensos volumes de "Moby Dick" que tínhamos em casa: "Chamei-me Ismael". Naufraguei como os tripulantes do Pequod; pior, parei no meio do caminho para Nantucket, antes mesmo de embarcar rumo à trágica aventura.

Como Acab, fiquei obcecado por abater Moby Dick - o livro, não o cachalote. Pouco mais tarde, com 13 anos, fortalecido pelas jornadas no Mississipi ao lado de Tom Sawyer, Huckleberry Finn e Mark Twain e por outras aventuras com Emília, Narizinho, Pedrinho e Monteiro Lobato, finalmente resolvi minha velha rixa com Melville e seu temível cachalote branco. Conheci Queequeg, embarquei no Pequod, atravessei o Cabo Horn, e sobrevivi ao naufrágio com Ismael, agarrado a um caixão. Era um livro denso para um leitor imaturo. Ainda assim, impressionante. É um clássico ao qual ainda preciso retornar (agora, na língua original).

Alfabetizado em Português, outros horizontes linguísticos me acenavam. Em criança, um de meus livros favoritos era "O Pato Poliglota" - e eu sonhava em ser como aquele pato! Me encantavam os recuerdos em diversas línguas, colecionados por meu avô em seus tempos de marinheiro globe-trotter.

Na escola primária, "aulinhas" de Inglês. No cinema e nos VHSs eu tentava (com pouco sucesso) encontrar correlações entre as legendas e as falas dos filmes. Com Collor, Itamar e FHC nosso mercado foi se abrindo cada vez mais às importações e chegavam a minhas mãos produtos com rótulos e manuais de instruções em várias línguas (era no tempo em que manuais de instruções eram longos, minuciosos e impressos; altre tempi). Às vezes passava horas e horas debruçado sobre essas preciosidases. Eram minhas pedrinhas de roseta; minha avó caçoava de meus rudimentares exercícios de linguística comparativa, mas é uma mania que ainda hoje me acompanha.

Logo mais chegavam ao Brasil os caríssimos "trading cards" de super-herois - um pequeno luxo que minha suburbana família de classe média baixa podia me conceder de vez em quando. Avidamente colecionados, me proporcionaram duradoura experiência com a língua de Shakespeare. Lia e relia os cartõezinhos coloridos como um dedicado epigrafista, acompanhado de um pesado dicionário Inglês-Português. Certa vez meu avô cometeu a insensatez, duramente censurada por minha mãe, de me satisfazer o capricho de comprar um gibi importado do Batman por R$ 40,00 - quase meio salário mínimo à época...! Os games e, mais tarde, os livros, completaram minha introdução à anglofonia. "Treasure Island", de Robert Louis Stevenson foi o primeiro livro que li em inglês (em barata edição da "Penguin Classics", must be said).

Entrei no Colégio Pedro II no tempo em que os ginasianos tinham o luxo de ter aulas de Inglês, Francês e Latim. Je suis tombé follement amoureux de la langue française. Aos 13 anos, enquanto lia Moby Dick, ingressei na Aliança Francesa, cujas mensalidades minha mãe pagava com algum aperto (mesmo depois que meu bom desempenho me garantiu um desconto de 40% nas mensalidades). Foi nessa época que descobri a Livraria Leonardo Da Vinci  (a autêntica). Com o real valorizado e o franco não-tanto, iniciei uma vasta coleção de Astérix e, mais importante, completei minha coleção das aventuras de Tintin et Milou. Logo descobri as aventuras de Arsène Lupin, que devorei na Mediateca da Maison de France.

O portunhol falamos todos de berço, e me iniciei na língua de Cervantes e Bolaños com "El Lazarillo de Tormes". Com um bom dicionário, me viro na língua do Lácio e adquiri alguma fluência na língua de Dante acompanhando o Giro d'Italia pela Internet, na Gazzetta dello Sport, especialmente o fabuloso Giro de 2004, com a inesperada conquista da Maglia Rosa pelo "Piccolo Principe" Damiano Cunego - mesmo ano da epopeia de Thomas Voeckler no Tour de France, que durante várias etapas se agarrou heroicamente ao Maillot Jaune tomado na lendária Trouée d'Arenberg.

Português, Francês, Inglês, Espanhol, Italiano e um pouco de Latim. Mas o desafio maior, a montanha mais alta, o castelo mais inexpugnável, resistia, e resiste ainda, a minhas investidas: o Alemão.

Tinha meus 15 anos quando me caiu entre as mãos um CD da "Paixão segundo João", de ninguém menos que Johann Sebastian Bach, devidamente acompanhado por um encarte bilíngue, em Alemão e Francês - era no tempo em que CDs vinham acompanhados de robustos encartes - vergangenen Zeiten. Tomei a temerária decisão de aprender Alemão fazendo uma xerox do dito encarte. Mais fácil planejar que fazer - faltou combinar com os alemães! Um recuo estratégico se fez necessário.

Anos mais tarde, em 2003, um maduro cavalheiro em seus 20 anos e graduando em História (nada mais arrogante que um graduando), resolvi empreender meu ataque definitivo contra Deutschenschloss. Munido de dicionários, um livreco de conversação para viajantes e uma pasta repleta de textos impressos da Internet, comecei a estudar Alemão com alguma seriedade e muita irregularidade.

Após alguns anos de inconstantes esforços, conseguia ao menos ler gibis em Alemão - retornando de Veneza, inclusive, passei uma agradável manhã na estação de Munique, lendo gibis (uma chuva torrencial desencorajava qualquer tentativa de passeio). Em Munique embarcamos em um trem da Deutsche Bahn que, por dentro, parecia um cenário de Star Wars; em Düsseldorf tomamos um trem da SNCF onde degustei o couscous marroquino mais saboroso de que me lembro. Só chegamos em Paris à noite, cansados, sedentos e famintos, devido a um terrível acidente ferroviário que nos reteve por horas, esgotando todo o estoque da lanchonete - quase como a bande dessinée "Le Transperceneige", exceto pela antropofagia. Tudo isso com "Krabat, von Preußler" na bagagem.

Em 2013 (re)comecei a estudar Alemão usando o excelente e gratuito aplicativo Duolingo, mas uma série de compromissos acadêmicos e problemas familiares me impediram de manter a disciplina adequada.

Iniciei 2020 firmemente decidido ao assalto definitivo contra Deutschenschloss. Estava determinado a ler em Alemão com desenvoltura até dezembro. Das oder nichts! E assim tenho feito, estudando Alemão quase diariamente, mit mein ganzen Herz.

Há alguns dias terminei de ler "Soie", tradução francesa de "Seta", de Alessandro Baricco, um delírio elsevírico magistralmente ilustrado pela maravilhosa Rébecca Dautremer, com capa artesanal impressa "a quente" num ateliê parisiense, diagramação impecável, papel de textura indescritível, impresso e encadernado numa seleta tipografia de Barcelona.

Ainda aturdido por semelhante fantasia editorial, lida em duas madrugadas, me pus a percorrer minhas estantes em busca de nova leitura.

Foi então que Krabat me chamou.

Timidamente peguei o livro. Ist mein Kraft jetzt genug? Findo o primeiro capítulo, me senti confiante, prosseguindo, com uma ou outra dificuldade, através das 270 páginas, sem recorrer a nenhum dicionário. Wunderschön! Dreimal Hurrah!

Ler "Krabat" em Alemão, apreciando a prosa de Preußler até em sua poética descrição dos tons de verde da grama primaveril foi a realização de um sonho.

Uma breve travessia, após uma longa, exaustiva e, por vezes, desanimadora caminhada. Dezessete anos de esforços foram necessários para ler estas 270 páginas. Mas esta foi apenas uma etapa de uma longa jornada, que espero prosseguir em outros anos e outras páginas.

Finalmente penetrei nos jardins de Deutschenschloss. Ainda há muitos recantos a explorar nesse castelo...


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