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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O coração comido

Um conto medieval adaptado para meus jovens alunos:

Pam, pam, pam... Batidas insistentes abalavam a porta do meu quarto. “Frei Adalbert, abra! Depressa! Oh, meu Deus!” Quando abri a porta, uma mulher assustada entrou no quarto. Me puxou pela manga; percebendo a gravidade da situação, a segui até o pátio iluminado pelas tochas. As pessoas formavam um semicírculo em volta de um corpo. Uma velhinha rezava, ajoelhada. Quando cheguei, a aglomeração se dispersou. Senti um aperto no peito quando olhei para o corpo inanimado. A moça estava deitada, imóvel, no chão. Apesar do sangue que manchava os cabelos, Béatrice ainda era bonita.

Lembrei-me de nossos primeiro encontro, 7 meses antes. Eu havia sido mando por meu superior ao senhor Giraud de Valgaillard para completar a educação de sua filha Béatrice. O barão ambicionava elevar o nome da família, casando-a com o melhor partido possível, nas cortes da França ou da Inglaterra.

Voltei a mim. Um guarda me relatava: "Ela saiu correndo pelas galerias superiores; depois, sem um grito, jogou-se no vazio. Não pude fazer nada”. Por pouco não desmaiei. Por que motivo Béatrice decidiu pôr fim a seus dias? Esse pensamento me revoltava. “Onde está o senhor Giraud? Por que não está aqui?”, exclamei, sacudindo o rapaz. “Ele se trancou em seus aposentos... Ninguém tem coragem de perturbá-lo...”

Pedi que levassem a defunta para seu leito e mandei que a lavassem. Notei a ausência de um anel de esmeralda do qual ela nunca se separava. Examinei atentamente suas mãos e descobri debaixo das unhas fragmentos de carne e um fio púrpura que não provinha da sua roupa. Tudo aquilo era estranho, muito estranho: concluí que a morte da minha aluna ocultava um terrível segredo. Prometi-me descobri-lo.

Desci a escada que levava à grande sala senhorial. A porta estava aberta. A sala estava como a deixáramos desde o jantar. Uma poltrona derrubada quebrava a bela ordem do lugar. Inspecionei cada canto, cada móvel, começando pela mesa. Fora posta para três convidados, mas somente duas taças haviam sido utilizadas – a do senhor e de sua filha. Béatrice e seu pai teriam esperado em vão uma visita? Outro detalhe me perturbava: uma só fatia de pão estava embebida de molho – um molho igual ao que eu tinha encontrado na túnica da morta. No chão, perto da poltrona derrubada, notei sinais de vômito. Debaixo da mesa, descobri o anel de esmeralda perdido.

Pensei na dama de companhia de Béatrice: Agnès. Será que ela sabia de alguma coisa? Na manhã seguinte, fui conversar com Agnès, que tinha os olhos inchados de tanto chorar. Era evidente que ela não queria falar comigo. Mostrei-lhe a joia: “Agnès, reconhece este anel?” Ela desmaiou em meus braços! Quando voltou a si, começou a chorar, agitada: “Santa Mãe misericordiosa! O anel de... Eu sabia que aquilo acabaria mal...” Eu disse a ela: “Vamos, minha filha... Você tem que se controlar e contar-me tudo que sabe. Preciso saber a verdade.”

Com uma voz frouxa, ela revelou-me que Béatrice conhecera pouco tempo antes um rapaz, trovador, nobre, mas sem dinheiro. Seus versos impressionaram muito Béatrice, seu encanto a conquistou: a moça ficou loucamente apaixonada. Nas semanas que se seguiram, encontraram-se às escondidas. Para selar um amor eterno, Béatrice deu ao jovem cavalheiro seu precioso anel de esmeralda. Mas o barão, que não tinha nada de bobo, ficou a par dos encontros. O barão e seus guardas espancaram o rapaz na frente de Béatrice e depois o arrastaram para fora. “Por que não me contou nada?”, perguntei-lhe. “Eu estava aterrorizada... O barão é um homem violento. Eu não tive coragem...”

Tentei reconstruir os últimos instantes de Béatrice. Na última ceia, feita em companhia de seu pai, ela parece ter perdido toda esperança de rever o amado. Uma ideia teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais.

Entrei escondido no quarto do barão, onde descobri uma porta oculta atrás de uma tapeçaria. Uma escada de pedra mergulhava nas trevas; reinava um silêncio mortal. Acendi uma tocha e desci. Tinha a impressão de entrar num túmulo. Encontrei um longo e estreito corredor de pedra úmido e mofado. No fundo, percebi uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa: um corpo banhado numa poça de sangue. Tinha um enorme buraco no lado esquerdo do peito. Tinham arrancado seu coração! No chão, havia uma viola e um pergaminho de poemas rasgado. A verdade revelou-se, terrível: eu havia encontrado o namorado de Béatrice! Subi correndo, saindo no quarto do barão. Nesse instante, uma voz sonora me fez estremecer: “Ora, vejam só, frei Adalbert! Visitando o castelo, irmão?” Giraud de Valgaillard me encarava. Percebi minha imprudência. Fiquei petrificado, imóvel. Passado o primeiro instante de espanto, recobrando o controle, encarei-o e acusei: “Eu sei de TUDO, senhor Giraud! O senhor é um ASSASSINO!”

“Bravo, frei Adalbert! Chegou na hora certa. Eu queria mesmo me confessar... Frei Adalbert, confesse-me! O senhor não pode recusar...” Impotente, sentei-me diante dele, pronto para ouvir a longa lista dos seus pecados.

“O senhor certamente sabe que um fazedor de versos seduziu minha querida filha. O amor é cego e imprudente... Será que acreditavam mesmo que sua paixão nunca seria descoberta? Que eu permitiria um casamento tão descabido? Anteontem, peguei em flagrante os dois pombinhos e mandei meus homens levarem o rapaz para os subterrâneos do castelo. Matei-o e, com minhas próprias mãos, arranquei-lhe o coração. Ontem, fui ver minha filha em seu quarto; disse a ela que os havia perdoado, e que naquela mesma noite os receberia em um jantar. Enquanto os preparativos do banquete iam de vento em popa, chamei no canto meu cozinheiro e entreguei-lhe o coração do moço, para fazer um prato saboroso, digno de uma rainha. Na hora do jantar, Béatrice espantou-se ao não ver o amado. Eu disse que ele estava atrasado e logo chegaria. De ótimo humor, minha filha provou um pouco de cada prato. Adorou o coração ensopado, que repetiu até acabar o prato. Esquecendo-se das boas maneiras, lambeu os dedos úmidos de molho, e disse: ‘Pai, que delícia estava essa carne!’, então respondi: ‘Não me espanta que tenha apreciado esse prato. Você não podia deixar de saborear, assado e temperado, o que você adorava vivo e palpitante. Minha filha, esta carne que tanto lhe agradou, outra coisa não era que o coração do seu namorado. O lindo coração lhe serviu de alimento. Aqui está a prova do que digo: o anel que tirei do cadáver do seu trovador. Ó delícias do amor!’ Ela se curvou para o chão e vomitou. Depois, enfurecida, precipitou-se sobre mim, unhas à mostra. Uma saraivada de socos e arranhões se abateu sobre meu rosto e meu peito, mas continuei a zombar: ‘Ele não queria lhe dar o coração? O desejo dele foi satisfeito! Melhor ele não podia esperar. Agora vocês estão reunidos. Você consumiu o seu amor. Devorou-o com apetite!’ De repente, ela se acalmou; seus punhos pararam de me bater. Presa do delírio, fugiu da sala, correu para as galerias superiores e atirou-se no vazio. Morreu louca e amaldiçoada. Pronto! Agora o senhor sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio. Quem irá cobrar por meus atos?”

Nenhuma palavra de arrependimento, nenhum remorso saiu dos lábios do senhor Giraud. Ele até se orgulhava do seu feito! Apavorado, fugi do castelo, deixando o barão impune.

Dez anos se passaram desde esses terríveis acontecimentos. Soube recentemente que o Senhor Giraud de Valgaillard multiplicara suas peregrinações, antes de morrer combatendo na oitava cruzada. Ele teria entrado no corpo a corpo berrando como um possesso: “Béatrice! Deus! Perdão!” Não era um grito de guerra. Eu, Adalbert, frade, sei da falta da qual ele tentava redimir-se, em vão. Que Deus, Nosso Senhor Onipotente, tenha piedade da sua alma!

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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Castelo de Vincennes, Paris. O simpático gorducho à esquerda é o autor deste blog.


2 comentários:

Unknown disse...

Melhor conto que já li❤

Unknown disse...

Amei o conto❤