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domingo, 10 de abril de 2011

"Será que índio é gente?"

O questionamento pode parecer absurdo ou até malicioso. Contudo, ele é proposto na mais pura inocência por diversos de meus alunos. Ou melhor, infelizmente, a noção é geralmente apresentada por eles como uma certeza, um dado naturalizado. Um dos exemplos mais expressivos foi o comentário de uma aluna minha, que afirmava às colegas que o "homo sapiens era uma espécie de minotauro, com corpo de homem e cabeça de índio". Outras formulações semelhantes que já encontrei em trabalhos ou provas são "quando os humanos chegaram ao Brasil só havia índios", "os índios entraram em guerra contra os humanos" ou "os humanos escravizaram os índios", entre muitas outras. A bem dizer, nenhum aluno jamais me perguntou sobre a humanidade dos índios; o que tenho encontrado repetidas vezes é a certeza de sua não-humanidade.

Tal pensamento nos parece obviamente anacrônico, incompatível com o que esperamos encontrar hoje. Essas afirmativas aparentam mais ser contemporâneas ao debate de Valladolid, onde se discutiu a questão da humanidade dos índios. Quando? 1551... Naquela ocasião, o ponto de vista vencedor foi o do dominicano Bartolomé de Las Casas, que sustentava que os ameríndios eram tão humanos quanto os espanhóis. Contudo, muitos de meus alunos desconhecem completamente essa ideia; pelo contrário, talvez concordem com a dúvida exposta em 1557 pelo francês Villegagnon a respeito dos tupinambá da Baía de Guanabara: "me perguntava se tínhamos encontrado bestas com aparência humana"...

Contudo, indo além do choque inicial, é preciso que nos perguntemos: por que, afinal, esses jovens não conseguem identificar os povos indígenas como culturas humanas? Mais ainda, por que o alemão é humano, o argentino é humano, o japonês é humano, e o índio não? Tenho refletido sobre esse problema há alguns anos e creio que possa avançar algumas hipóteses, embora, certamente, nenhuma resposta.

Inicialmente, devemos indagar através de que meios esses jovens entraram em contato com o tema. As respostas são óbvias: a escola e os meios de comunicação de massa. Trata-se então de analisar que imagens e discursos são articulados em torno da figura do índio nesses dois ambientes.

Primeiramente, o indígena é sempre exótico, uma figura definida a partir de seus traços mais pitorescos e chamativos: ele anda nu, usa pinturas corporais, ornamentação com plumagens etc. Mais ainda, no primeiro seguimento do ensino fundamental o aluno periodicamente (no dia do índio) se metamorfoseia, usando artefatos bizarros como cocares de cartolina e plumagem sintética (de preferência em cores muito naturais, como rosa-choque ou verde-limão...) e os famigerados colares feitos de macarrão; eis o pequenino bisonhamente transformado em uma figura indígena carnavalesca. Mas o pior disso tudo é que ele não sabe (e provavelmente nem seus professores) que aquela é uma figura caricata de índio. Se os verdadeiros andassem assim, nem eu os acharia humanos...

Dessa maneira, o índio é uma figura esquisita, definida por seus caracteres mais superficiais. Não à toa as pessoas esperam ver o indígena sempre dessa forma, caso contrário não é um verdadeiro indígena. Índio não pode usar roupas, relógio, ser vacinado, dirigir trator, falar ao celular, caçar com rifle, porque as pessoas esperam vê-lo nu, pintado, emplumado, caçando com arco e flecha em punho. Afinal, por que ninguém raciocina: "esse japonês usa jeans, logo não pode ser japonês"? Ou "esse japonês fabrica video-games, logo não pode ser japonês"? Ora, porque a cultura japonesa é vista como muito mais que andar de quimono ou manipular uma katana, enquanto no imaginário coletivo as culturas indígenas são apenas um conjunto de hábitos superficiais e exteriores, e não constituídas por um sofisticado pensamento cosmológico, línguas complexas, formas particulares de expressão artística, diferentes modos de organização social ou divisão do trabalho etc.

Por outro lado, a figura do índio é sempre usada como instrumento de uma polarização moralista perversa. Boa parte do discurso articulado em torno das culturas indígenas está mais preocupado em defini-las como uma espécie de cultura anti-ocidental que em conhecê-las realmente em suas particularidades. Não é incomum se ouvir afirmações do gênero "os índios não são gananciosos como nós", "os índios vivem em igualdade" ou "os índios respeitam a natureza". Curiosamente, essas noções nunca se acompanham de detalhes concretos, digamos "etnográficos", são apenas ideias vazias que se sustentam por si mesmas no vácuo, porque, no final das contas, essa "cultura indígena" prescinde da realidade, esse "índio" é apenas uma imagem construída como oposto do "homem branco".

Por fim, nesse imaginário coletivo, o índio é sempre uma vítima da crueldade do homem branco. Nessa lógica, os povos indígenas são sempre pacientes, nunca agentes. É uma visão, até mesmo histórica, onde não há realmente conflito, apenas submissão. A luta entre o indígena e o "colonizador" é um embate assimétrico, "covarde", onde o índio não teria nenhuma chance, devido às epidemias trazidas pelos europeus ou à superioridade das armas de fogo (absolutamente questionável; segundo alguns cálculos, no séc. XVI, enquanto uma arma europeia era lentamente carregada e preparada para o disparo, um índio poderia lançar cerca de doze flechas contra seu inimigo). A dignidade e bravura da resistência indígena são então escamoteadas por um discurso que reduz o índio ao mero papel de vítima.

Ante esse panorama, não espanta que meus alunos (e, certamente, muitos, muitos outros...) creiam que o índio não tem humanidade. Afinal, a figura do indígena é sempre representada desprovida dos traços que nos tornam mais profundamente humanos: iniciativa para enfrentar os desafios da vida, profundidade de pensamentos e sentimentos, muitas vezes conflitantes, expressões complexas de convívio social.

Resta agora discutir o que devemos fazer quanto a essa situação em sala de aula, mas isso fica para outra ocasião....

3 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo texto! Já o indiquei para uma colega, professora de Língua Portuguesa, que está envolvida comigo em um projeto pedagógico sobre as múltiplas versões construídas acerca dos indígenas nas músicas (bizarrices como o "índio fazer barulho", da Xuxa ou "se Deus quiser, um dia quero ser índio...", de Rita Lee. Ainda noutro dia, um aluno me perguntou "qual era a fêmea do índio?" Lamentável...

R Dourado disse...

Sobre a questão de como trabalhar o assunto em sala de aula, penso que, antes de tudo, é necessário que professores não apenas da área de História, mas de Português, de Artes, enfim, de outras áreas conheçam mais sobre as culturas indígenas. A comunidade de professores costuma apresentar e reproduzir noções e símbolos equivocados por deter de pouco conhecimento sobre as culturas indígenas. Os índios são assunto com "ibope" baixo assim como o folclore.

Luiz Fabiano de Freitas Tavares disse...

Oi, Cláudia! Muito legal esse projeto da sua colega de Língua Portuguesa. Quanto ao seu aluno, vamos ver o lado positivo: ele não perguntou que tipo de ração índio come... Rosiane, quanto ao seu comentário, concordo plenamente. Deveríamos ter mais espaço para projetos inerdisciplinares. E, realmente, índio não dá "ibope"!rs Acho curioso que hoje haja tanta ênfase em relação às culturas africanas (o que, é claro, é ótimo e muito importante), mas quase não se fale sobre as culturas indígenas... Abraço às duas!