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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Variações sobre uma cerâmica palestina estilhaçada

Allegro, ma non troppo



Desde que ainda era um adolescente que sonhava em ser arqueólogo imagino que cada objeto,  raro ou banal, em suas singularidades, carrega em si o mundo inteiro. De lá para cá, a convicção permanece a mesma, embora minha argumentação nesse sentido tenha se tornado (um pouco) mais sofisticada...

1º movimento
Cerca de seis horas atrás, uma de minhas estantes sucumbiu ao peso dos livros, fazendo com que despencasse uma simpática cerâmica palestina, que se espatifou no chão. Catei os estilhaços, pensando em restaurá-la, mas algumas partes ficaram completamente irrecuperáveis, e as lascas são muito afiadas. Preferi jogar fora o que sobrou.



Olhando o trecho do Alcorão pintado em sua superfície, aqueles cacos de cerâmica logo me remeteram à triste situação do Oriente Médio, lembrando-me de uma notícia que acabara de ler, sobre a suposta existência de campos de treinamento do Estado Islâmico na Europa. Tenho grande simpatia pelas culturas islâmicas e suas realizações artísticas, intelectuais e espirituais, uma longa tradição inscrita em inúmeros objetos ao redor do mundo - inclusive minha humilde (e barata) cerâmica palestina. Diante de tudo que o mundo muçulmano e seus povos representam na história do mundo, a emergência do EI com sua barbárie me parece um dos episódios mais tristes da trajetória do Islã.

Nessa pequena obra de artesanato, com menos de 30cm de diâmetro, cabem muitos séculos de história, a começar pelo texto corânico, elaborado há cerca de 1.400 anos, verdadeiro ponto de partida de toda uma cultura - seu fiat ou seu big bang, como preferir. Por sua vez, o texto manuscrito sobre a cerâmica também remete a uma tradição secular do Islã, a arte da caligrafia, que por sua vez remete ao próprio Corão e seus mandamentos, enquanto expressão artística e decorativa que emergiu da proibição de representação de figuras naturais, interpretada e seguida de modo mais ou menos rígido através dos séculos, conforme tempos, lugares e pessoas. Por fim, o uso da cerâmica como suporte artístico deriva de outras circunstâncias históricas do mundo islâmico: as relações comerciais entre a Pérsia e a China durante a Idade Média, em que as tentativas de suprir às demandas por porcelana do mercado chinês levaram os artesãos persas a produzirem peças que inicialmente buscavam imitar as tradições da porcelana chinesa, mas logo começaram a se desenvolver como estilo artístico autônomo com suas próprias convenções, se espalhando desde então pelo mundo islâmico e dando lugar a inúmeras ramificações estéticas, inclusive influenciando as técnicas aplicadas sobre outros suportes que não a cerâmica.

Poderíamos prolongar indefinidamente essas linhas pontilhadas rumo ao passado, a épocas tão recuadas como o surgimento do monoteísmo abraâmico, as primeiras experiências de elaboração da escrita no mundo mediterrâneo, a formação das línguas semíticas, a invenção da cerâmica na Pré-história, ou mesmo o domínio do fogo, necessário à cocção da argila... Poderíamos mesmo ir até as fusões nucleares que, há bilhões de anos, em alguma estrela distante, há muito extinta, originou os átomos componentes do barro empregado em sua confecção.


2º movimento
Com um pouco de imaginação, percebemos que nas exíguas dimensões materiais desse objeto se acumulam inúmeras camadas de história, múltiplas dimensões de experiências religiosas, tecnológicas, comerciais e artísticas, o esforço de milhares - talvez milhões - de seres humanos, convergindo, se precipitando e se comprimindo sobre esse ínfimo artefato, como que em inúmeras circunvoluções, espécie de espiral onde cada volta se conforma à anterior e condiciona a próxima, sempre de modo irregular e imprevisível.

Até aqui falamos apenas das dimensões meramente materiais inscritas nesse objeto durante seu processo de fabricação, visíveis a olho nu. Todavia, creio, poderíamos explorar ainda o imenso conjunto de relações que mediaram sua existência. Me pergunto, em primeiro lugar, quem terá sido o artesão que o produziu: um homem? Uma mulher? De qual idade? Gosta de praticar caligrafia e decorar cerâmicas? Foi trabalho de apenas um artesão ou foi executado através de tarefas divididas - digamos, alguém decorou as bordas e outras pessoas produziram a caligrafia, aplicaram o esmalte, levaram ao forno...? Será que o artesão recebeu paga digna por seu serviço? Ficou satisfeito com a remuneração? Onde, exatamente, se localiza a oficina onde o trabalho foi executado? Quantos parentes esse trabalhador já perdeu no conflito palestino-israelense? Será um muçulmano profundamente fervoroso ou a caligrafia é apenas um meio de vida?

Vale também pensar em todas as relações que intermediaram sua produção e comercialização, desde a matéria-prima até o consumidor final (eu). Onde foi fabricada a tinta ou produzida a cerâmica? Imagino que a resposta para ambas perguntas seja "China"; dado o panorama global, aposto que, no mínimo, algum trecho da cadeia produtiva tenha passado pelo parque industrial chinês, de alguma maneira revertendo, subvertendo ou convertendo o próprio circuito comercial entre o Catai e o mundo islâmico que tanto influenciou a formação da arte ceramista muçulmana na Idade Média - outra volta na espiral do tempo.

Por fim, o trajeto entre Palestina e Brasil percorreu de navio ou avião algum dos inúmeros itinerários do atual comércio global, envolvendo, imagino, alguma agência de importação e um comerciante varejista, chegando a mim. Para fechar essa cadeia, vale indagar que experiências de vida condicionaram minha relação de consumo com esse objeto. Se a memória me serve bem, acho que o momento definidor dessa aquisição casual se deu há cerca de 21 anos, quando, ainda no primeiro segmento do Ensino Fundamental, eu enfrentava dificuldades com os problemas mais elementares da Álgebra apresentados por Tia Leila, minha professora. Um parêntese: na época, obviamente, eu ignorava que se tratava de Álgebra - era uma questão de "achar o valor do quadradinho". Tentando me incentivar a superar essas dificuldades, minha mãe pegou emprestado (com quem?) o encantador livro O homem que calculava, do igualmente encantador Malba Tahan (pseudônimo do escritor e professor de Matemática Júlio César de Melo e Souza). O livro narra as aventuras do brilhante, talentoso e generoso calculista Beremiz Samir, situadas na Pérsia medieval - mais ou menos na época em que as cerâmicas etc etc. Essa leitura foi decisiva no sentido de despertar meu encantamento pelo mundo islâmico, desde então aprofundado por muitas leituras de Malba Tahan e outros autores, culminando na aquisição de inúmeros artefatos artesanais - como a dita cerâmica.

Mas voltemos à Tia Leila e à Álgebra... Convém notar que a bendita Álgebra, como indica a própria etimologia, também nos relaciona diretamente ao Islã medieval, à medida que seus princípios de notação e formalização foram elaborados no mundo muçulmano, com grande destaque para o fervilhante ambiente intelectual de Bagdá... capital da Pérsia. É curioso reparar que, também o nome "Leila" é de origem árabe - apenas uma coincidência divertida. Aliás, seu marido é o Tio Taje, nome de origem indiana - um casal indo-arábico, como os algarismos e a própria Álgebra. Recapitulando: Tia Leila me conduziu à Álgebra, que me conduziu a Malba Tahan, que me conduziu à cultura islâmica, que me conduziu a comprar uma cerâmica Palestina, que se quebrou algumas horas atrás.

E tudo isso me traz lágrimas aos olhos, porque meu sogro também se apaixonou por Malba Tahan alguns anos atrás, quando lhe emprestei O homem que calculava, mas infelizmente ele não se encontra mais entre nós há alguns meses. Lágrimas secas, prossigamos.

Aproveito para notar que até hoje mantenho contato com a Tia Leila, e até aprendi a gostar da Álgebra, embora, definitivamente, ela não goste de mim. Também essas relações, tão pessoais, com a Tia Leila, com Tio Taje, com minha mãe, com meu sogro, de algum modo, acabaram se intrometendo na cerâmica, no momento mesmo em que escrevo esse texto.

3º movimento
Algumas horas atrás... cerâmica... lascas... irreparável, etc. Catei a cerâmica com vassoura e pá de lixo. Para não machucar o gari, resolvi embrulhar os cacos numa caixa de pizza que acabara de consumir, semelhante a essa aqui:

 


Como você pode ver, a caixa (e a pizza) eram da franquia Domino's, uma das maiores redes de fat, digo, fast food do mundo (globalizado, please). É no mínimo irônico que, no fim das contas, os cacos de cerâmica palestina tenham ido parar dentro de uma embalagem que representa o poderio econômico dos Estados Unidos da América, o principal antagonista do mundo islâmico na atualidade e, pior ainda, o maior aliado do Estado de Israel que tanto vem oprimindo os palestinos - inclusive os artesãos que produziram o artefato em questão. Veja bem: uma peça de cerâmica que, como vimos, representa tanto a arte quanto a religião islâmica, com versos corânicos pintados em sua superfície! Uma ironia nada banal, inclusive porquê reúne vários opostos: o refinamento artístico e a mais que mundana junk food; o Islã que tanto preza o jejum e a glutonaria capitalista; o tabu islâmico quanto à carne de porco e as rodelas de pepperoni; a singularidade do artesanato manual e a embalagem produzida em massa; o sagrado, artístico e religioso, contra o profano, capitalista e pequeno-burguês; coração contra estômago.

Ainda aqui há espaço para outro desvio. Eu e minha esposa não nos tornamos clientes da Domino's no Brasil, mas em Paris, onde boa parte dos entregadores que nos atendiam eram de origem magrebina. Um deles, por sinal, muito simpático, vendo que o aparelho de cobrança em débito automático não conseguia sinal para executar a operação financeira, me ensinou um grigri, forma de magia simpática popular do Magreb, que, segundo ele, era infalível para remediar o funcionamento de aparelhos eletrônicos teimosos. Servia até, me disse, para interferir magicamente no resultado do jogo de futebol do time do coração transmitido pela TV, bastando executar o grigri bem próximo da tela! Tudo isso é ainda mais interessante porque con-juga, de novo, sob outros ângulos, capitalismo e Islã, magia e tecnologia, sagrado e profano. E, não nos esqueçamos, em Paris, atual epicentro desse conflito que se desenrola há pouco mais de uma década em diversos pontos do mundo.

Voltemos à caixa da Domino's. Ao lado da logomarca da franquia, vemos a silhueta do Cristo Redentor, mobilizando a imagem do ponto turístico carioca para promover a marca americana. Mas não é apenas isso. Se trata do Cristo, outra imagem religiosa, constituindo assim outra con-jugação inesperada, quiçá indesejável, entre sagrado e profano. Aliás, o Cristo Redentor foi originalmente construído, 84 anos atrás, pela comunidade católica do Rio de Janeiro, não como obra decorativa ou potencial atração turística, mas como símbolo da fé católica no Rio, então capital do Brasil. Naquela época, o estado no Brasil era ainda menos laico que nos dias atuais, e assim o Cristo nos remete a ainda outra dimensão do conflito entre sagrado e profano que perpassa toda essa reflexão. Por fim, a representação figurada de Jesus Cristo certamente se choca com a religiosidade islâmica, muitas vezes refratária à representação da figura humana, e ainda mais das figuras sagradas - lembrando que Jesus também é reverenciado pelo Islã, como último profeta anterior a Maomé. Temos então a tensa proximidade entre duas representações artísticas do sagrado (a caligrafia islâmica e a imagem cristã), amplificada pelo choque entre ambas e a profanidade comercial do delivery do fast food.

Outro parêntese interessante, dessa vez sobre o Brasil e  o Islã. Outro encontro inusitado. Em Granada, ao pé da Alhambra, eu minha esposa conhecemos um curioso comerciante marroquino, figura ímpar, que nos confidenciou ser apaixonado pelo infame Casos de Família, programa popularesco produzido pelo SBT e exibido em algum canal espanhol. A conversa se prolongou de modo animado e caloroso, e no fim das contas, com genuína hospitalidade e liberalidade muçulmana, ele nos presenteou com diversos brindes, inclusive um blend artesanal de ervas para um chá poderosíssimo para a fertilidade. Outras tantas convergências inesperadas entre os mundos da magia e das onipresentes tecnologias que movem esse mundo globalizado, onde a devoção islâmica e o barraco à brasileira convivem lado a lado.

Sim, caro leitor, você já está cansado de ler e eu, confesso, cansado de escrever; façamos, porém, ainda um esforço. A cerâmica se quebrou e os cacos foram embalados na caixa de papelão da pizzaria. Mas isso ainda poderia provocar um acidente com o gari, caso a caixa se abrisse. Tomei, então, uma precaução extra: embalei a caixa (e os estilhaços) em duas sacolas plásticas de supermercado; o embrulho se encontra agora no chão de minha cozinha, ao lado de algumas garrafas pet vazias de Coca-Cola (outros símbolos da cultura capitalista, mas já explorei esse ponto à exaustão). Eu poderia aprofundar o fato de que tanto as sacolas quanto as garrafas são derivados de petróleo, que, por sua vez, é constituído por vestígios de cadáveres de dinossauros e outras espécies pré-históricas há muito tempo em decomposição, lembrando o quanto isso remete ao debate entre criacionismo e evolucionismo, mas vou deixar essa para algum paleontólogo de plantão. Fiquemos apenas com o petróleo, matéria-prima fetiche de nossa época, motor de conflitos muito mais sérios que a infindável litania sobre criacionismo e evolucionismo (que me perdoem ateus e evangélicos, que adoram essa discussão já tão puída). Para resumir, a cerâmica palestina e a caixa da Domino's se encontram agora dentro de duas sacolas produzidas com petróleo, o próprio combustível dos amargos conflitos do Oriente Médio, conflitos esses que estilhaçaram o estado iraquiano, permitindo a emergência do EI, que tanto ultraja a herança islâmica e, para início de conversa, instigou a presente reflexão.

4º movimento
Daqui a algumas horas esses cacos de cerâmica, caixa de papelão e sacolas plásticas estarão em algum caminhão da COMLURB, a caminho de algum lixão situado na Baixada Fluminense, imagino eu. Pelo que conheço sobre degradação de materiais, é provável que a caixa de pizza seja a primeira a desaparecer, seguida pelas sacolas plásticas, enquanto a cerâmica certamente perdurará ainda por milhares de anos. Paradoxalmente, a cerâmica é extremamente vulnerável a choques, mas seus cacos são muito resistentes à degradação pelo tempo - é por isso, aliás, que elas nos ajudam a descobrir tanta coisa sobre as culturas pré-históricas. Resumindo, é perfeitamente plausível que daqui a milhares de anos um arqueólogo encontre alguns vestígios de cerâmica palestina, compondo um itinerário multissecular que nos conduz de Meca à Baixada Fluminense, passando por Bagdá, testemunhando parte da complexidade cultural tramada em nosso mundo globalizado. Me consola imaginar que quando o tempo, esse inexorável carrasco, finalmente tiver aberto todas as camadas dessa imprevisível boneca russa, o que sobrará finalmente será a melhor parte, um testemunho da busca humana pelo sublime, através da arte e da espiritualidade. Como diria a romancista Lian Hearn, "a rede do Céu é vasta, mas sua trama é sutil".

Mesmo esse texto, registrado através de milhões de impulsos elétricos codificados através de placas de circuitos integrados e de linguagem HTML constitui mais um dos giros absurdos e inusitados da espiral do tempo. De um texto a outro, separados por mais de mil anos: do Alcorão registrado pelo ilustre Profeta Maomé a esse exercício de malabarismo historiográfico garatujado por um obscuro professor de História, das ruas da Meca pré-islâmica aos subúrbios do Rio de Janeiro. Tenho apenas  frágeis rudimentos em árabe e em HTML. Por via das dúvidas, apelo para um grigri, que pode, quem sabe, conciliar esses mundos e linguagens tão diferentes, como me ensinou um jovem parisiense de ascendência magrebina a serviço de uma grande corporação americana. Desejo profundamente, por sinal, que ele não venha a sucumbir à bárbara sedução do EI e nem se torne um dos jovens treinados nesses supostos campos em solo europeu, de onde saem para um triste encontro com a morte.

Tudo isso me faz pensar no filósofo Henri Bergson, que venho lendo recentemente, e em sua noção de duração, que ainda não entendi direito; estou com sono demais para farejar mais essa pista. Pois se trata exatamente de uma caçada - como diriam os franceses, de chasses croisées, "caças cruzadas", caminhos que se encontram inesperadamente no meio do bosque selvagem - encontros como aqueles que surpreendem o viajante nos contos de fadas, nos romances de cavalaria ou nas 1001 noites. No fundo, contrariando minhas reflexões de adolescente, talvez não haja nada nos objetos, apenas aquilo que o historiador deseja caçar neles: dizia Marc Bloch, o historiador precisa ser como um ogro, sempre farejando carne humana.  Também precisa ser, creio, como Sherazade, cativando o ouvinte para sobreviver pelo menos mais uma noite, ou como Mozart, reunindo vozes e instrumentos para que, em meio à balbúrdia, sejamos enfim capazes de captar o doce trinado da flauta mágica. No final das contas, permanecendo no universo dos contos de fadas e das 1001 noites, tudo isso exige que nos tornemos fadas ou magos, capazes de conjugar e conjurar vestígios e fragmentos, como um caco de cerâmica, uma caixa de papelão ou uma sacola plástica, para transformá-los em fontes históricas - uma transmutação alquímica, outra palavrinha de raízes árabes.

Como finalizaria Malba Tahan, Alá seja louvado!

Dedico esse texto ao Seu Paulo, que me ensinou tantas lições de vida, à Tia Leila, que tentou me ensinar Álgebra, mas me tornou um escritor e à minha mãe, que me apresentou Malba Tahan

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