"Nós" - curioso pronome.
Para existir, precisa que ao menos um "eu", um "tu" ou um "ele" se reúnam. No entanto, é um pronome "egocentrado" - não existe "nós" sem que um "eu" o enuncie, a partir de sua relação com os outros seres componentes do "nós".
Por outro lado, o "nós" pressupõe uma experiência partilhada entre o enunciador e outros seres (humanos ou não). Essa experiência pode ser efêmera ou duradoura. Posso dizer: "nós aguardávamos o médico" - eu e outros pacientes na sala de espera, que nunca nos vimos nem tornaremos a ver, mas partilhamos essa breve experiência. Por outro lado, posso dizer: "nós fomos ao cinema" - "eu" e minha esposa, casados há oito anos.
Por vezes, a experiência partilhada engendra identidades e solidariedades: "nós" que torcemos para o mesmo clube de futebol, "nós" que nascemos na mesma cidade, "nós" que estudamos na mesma escola, "nós" que oramos na mesma igreja, "nós" que temos a mesma opinião... Nesse sentido, o "nós" se torna uma força poderosa, capaz de mobilizar esforços e vontades. Mas também pode ser usado como objeto de insidiosas manipulações, por aqueles que manuseiam a retórica do "nós" apenas para atingir os interesses do "eu".
Também vale notar que nem sempre essa experiência partilhada supõe simultaneidade. "Eu" e "Ivo" estudamos no mesmo colégio; "Ivo" foi aluno 50 anos antes de mim - ainda assim, "nós" estudamos nas mesma escola. Desse modo, o "nós" unifica seres separados no tempo ou no espaço. Também não é necessário pertencer à mesma espécie: "nós" atravessamos a rua - "eu" e meu cãozinho. Muitas vezes o "nós" se configura através de antagonismos: "nós" brigamos, "nós" discordamos - paradoxais experiências de oposição compartilhada.
Às vezes o "nós" é evidente; às vezes precisa ser descoberto. Mas no fundo, não seria a vida nesse mundo um perpétuo reinventar do "eu" no "nós" - e vice-versa?
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