"Cuide do seu filho, antes que um professor de História ou de Filosofia o adote".
A infeliz citação reproduz (aproximadamente) o discurso de uma suposta poetisa, psicanalista e filósofa em recente debate radialístico. Como muitos devem ter percebido, trata-se de paráfrase de um slogan que saiu de moda, mas fazia muito sucesso alguns anos atrás:
"Cuide do seu filho, antes que um traficante o adote".
A comparação entre professor (de História ou Filosofia) e o traficante é triste, mas esclarecedora, à medida em que condensa de forma exemplar uma gama complexa de discursos que vêm sendo formulados desde a explosão de manifestações que ganharam as ruas do Brasil desde junho de 2013. Vamos por partes.
Em primeiro lugar, temos o discurso que tende a criminalizar as manifestações e as reivindicações populares, confundindo-as propositalmente com o vandalismo, que ocorre pontualmente - geralmente num circuito de retroalimentação e interdependência com a violência policial. Aliás, embora seja professor de História, não apoio a ação violenta, nem a tática black bloc. Assim, no dizer da distinta "pensadora" brasileira o manifestante é confundido com o vândalo, que por sua vez é confundido com o traficante, criminoso por excelência no imaginário brasileiro.
Por outro lado, a fala da poetisa [sic] também traduz um velho discurso que tende a ver os professores da área de humanas como "revolucionários" e subversivos em potencial. Mais ainda, temos visto uma postura nitidamente persecutória em relação ao magistério, perceptível desde a violência policial contra professores, prisão política de diversos profissionais da área, tentativa de associar o sindicato dos profissionais da Educação aos "vândalos" fabricados pela mídia ou projetos como o famigerado "Escola sem Partido", do pequeno Bolsonaro. Assim, o professor se equipara ao manifestante, ao vândalo e, por fim, ao traficante - todos criminosos.
Talvez esse discurso seja bastante influenciado pelas grandes greves do magistério em 2013, e todo o circo midiático, político e policial montado em torno delas, com direito a Cinelândia cercada e bombardeio aéreo de lacrimogênio: tudo pela Educação! No entanto, creio que a ferida é ainda mais profunda, ligada ao movimento geral de sucateamento da educação pública e de desvalorização da profissão docente. Mais ainda, revela o pavor que os poderosos sentem contra a educação e o esclarecimento das massas.
Tudo isso nos leva ao mito grego de Prometeu, o titã que roubou o fogo dos deuses, símbolo da luz do conhecimento, entregando-o aos mortais. A punição para esse grave crime é uma das mais severas e cruéis registradas pela mitologia: o titã foi acorrentado a um rochedo no alto do Cáucaso, sendo diariamente visitado por um abutre que devora seu fígado, que cresce durante a noite apenas para renovar seu sofrimento no dia seguinte, por toda a eternidade.
Na Grécia antiga, como no Brasil atual, oferecer o fogo do conhecimento ao povo é crime grave, tão grave quanto traficar drogas, praticar atos de vandalismo ou exercer pacificamente o direito democrático de reivindicar.
terça-feira, 29 de julho de 2014
Professores, traficantes e o mito de Prometeu
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