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sábado, 20 de fevereiro de 2021

"É na escuridão que mais claramente vemos" - entrevista com o escritor Rodrigo Watzl

Entre as obras de ficção científica que li nos últimos anos, uma das mais instigantes e surpreendentes é Herdeiros da Eternidade, de Rodrigo Watzl. Tive a oportunidade - e o imenso prazer - de ler o romance ainda no manuscrito, mas o livro já se encontra publicado, pela Editora Gana. Nesta entrevista, o criador permite entrever o que há de tão fascinante na criatura...


Um dos aspectos literários mais fascinantes de Herdeiros da Eternidade - ao menos para mim - é o modo complementar e paralelo com que a trama política e aquela de ficção científica se desenrolam. A meu ver, o romance é quase um híbrido de sci-fi e thriller político. Como você desenvolveu essa simbiose temática? Era algo previsto desde a concepção ou foi emergindo com o desenvolvimento da obra?

Luiz, em primeiro lugar, obrigado pela oportunidade que você está me oferecendo. De verdade. Bem, a coisa toda foi a seguinte: eu estava em uma festa de ano novo (isso foi em 2005/2006) e houve um momento em que o céu capturou a minha atenção. Ali, veio a ideia inicial que tem relação com a parte da ficção científica propriamente dita, embora de uma forma ainda muito superficial. Embora não fosse tão novo nessa época (eu tinha vinte e sete anos), minhas preocupações tinham outra natureza (principalmente trabalho e estudos). Mas o tempo prosseguiu em sua marcha e, é claro, ninguém passa por isso impunemente. Meu pensamento foi mudando, fui dedicando mais atenção a aspectos mais mundanos do ambiente social. E os primeiros capítulos, ou melhor, seus primeiros esboços, foram rabiscados em 2009. Eu entendo esse processo como um início de "fermentação" da ideia no "caldo" do inconsciente. E o protagonista era um alto funcionário de Estado em um país fictício. Quando se pensa em escrever uma história assim, é natural (ou pelo menos esperado) que o desenvolvimento exija essa abordagem em um cenário correspondente. Não fazer isso seria, acredito, escrever uma história com, vamos dizer assim, "pouca densidade". Afinal, indivíduos e contextos se afetam reciprocamente, seja na ficção, seja no mundo real. Ainda assim, a ideia estava a quatro mil anos luz do que foi se tornando. E a referência à distância, você deve entender, foi intencional.

Fascinante - como diria o Sr. Spock. Pelo que você diz, o processo criativo foi, em boa medida, "dialético". Suponho que isso tenha em alguma medida ajudado o desenvolvimento das dimensões filosóficas da obra, que ficam mais evidentes na relação entre os personagens Vera e João Paulo. Mas você mesmo tem um grande interesse por filosofia. Indagar se esse interesse influenciou a obra seria, talvez, trivial. Me sinto mais curioso para saber se, de alguma maneira, o processo de criação do romance afetou a sua maneira de encarar a filosofia. E ainda: qual foi a maior dificuldade que você enfrentou ao escrever os diálogos entre Vera e João Paulo?

Sim, foi. E acredito que essa dialética tenha uma relação bastante próxima com uma tentativa de compreensão do ambiente, enquanto autor. Algo como encaixar a realidade em uma moldura teórica, sem precisar sucumbir a um preciosismo filosófico que tornaria a narrativa provavelmente muito cansativa. Nesse sentido, e respondendo à sua primeira pergunta, acredito que sim. Há ali uma intenção ontológica, porque se trata de uma tentativa de compreender o real, o ser. É, portanto, uma exposição da apreciação da realidade de uma forma que preserva a "superfície", e mesmo a materialidade, do ser enquanto tal, mas que procura entender sua essência sob um ponto de vista um pouco... diferente. Como indivíduo, eu carrego uma bagagem de crenças e algumas destas foram consideravelmente reformuladas com o objetivo de usar a história para transmitir a mensagem que me interessava. É curioso pensar que não apenas os livros que lemos, mas os que escrevemos também têm a propriedade de nos modificar.

Respondendo à sua segunda pergunta, as dificuldades foram consideráveis. Aliás, eu levei anos para concluir o livro não apenas porque havia aperfeiçoamentos a serem feitos, detalhes para "amarrar", contradições para corrigir, etc., mas também porque, em se tratando dos diálogos entre João Paulo e Vera, estamos falando aqui de uma conversa entre um humano e a criatura mais poderosa do universo. Alguém dotada de um conhecimento absoluto. Mas também é justo e honesto dizer que o trabalho somente foi possível, porque passou por um longo processo de "fermentação" no caldo do inconsciente, como respondi antes.

Seu comentário sobre as modificações que um livro pode suscitar em seu leitor me fazem pensar em minha própria experiência ao ler Herdeiros. Como já conversamos em outra ocasião, a leitura não apenas me ofereceu temas para semanas de ruminação como me parece ser o tipo de livro que exige ao menos uma segunda leitura para ser plenamente fruído. Que tipo de reações, como autor, você espera que Herdeiros suscite entre os leitores?

Eu costumo criar aforismos. Não é algo como um trabalho programado, que me exija o pensamento e a atenção direcionados a um assunto específico. É um processo bem diferente e que, um dia, eu tive a sorte de perceber acontecendo. Funciona da seguinte maneira: alguma coisa banal desperta minha atenção. Pode ser um idoso na rua com dificuldade para andar, uma criança se comportando mal, alguém que maltrate um garçom, etc. Enfim, você terá compreendido a ideia da banalidade a que eu me refiro. Pois bem, essa situação trivial captura minha atenção e dispara, sabe-se lá o motivo, alguns processos mentais: lembranças, ideias e conceitos que aprendi, conclusões anteriores (minhas ou de outros). Tudo vai se combinando na minha cabeça. É como a "fermentação" de que falei outras vezes. Finda a etapa, eu enuncio um aforismo.

Então, respondendo a sua pergunta, acho que vale a pena pensar nos papeis que a filosofia e a arte exercem nas vidas das pessoas. A arte, assim entendo, exerce uma papel profilático: ela nos impede de sucumbir às pressões, oferecendo-nos a sensação de encantamento. É como dizer: "amigo, você está vivo e isso é extraordinário". Ao mesmo tempo, veja que interessante, a razão, instrumento cardeal da filosofia, exerce um papel diametralmente oposto. Dialeticamente, e parece impossível evitá-la, sob este ponto de vista, é a antítese do encantamento.

E é aqui que começa a fazer sentido a razão pela qual mencionei os aforismos. Um deles, foi este aqui: "a razão existe como remédio diante do espanto, como antídoto para o encantamento. O que, se você pensar bem, é espantoso e a torna encantadora".

É esta síntese aquilo que eu desejo ao leitor.

Adorei sua reflexão sobre o processo de alquimia aforismática; daria que pensar até a La Rochefoucauld. Eu diria que essa resposta me pôs em xeque. Assim sendo, meu lance final é perguntar sobre o engenhoso uso de epígrafes em cada capítulo do romance, cujo efeito narrativo me impressionou vivamente. Aqui passo a você a responsabilidade de realizar o xeque-mate para finalizar essa entrevista.

Quero novamente agradecer pela oportunidade, Luiz, de me fazer conhecido dos leitores do seu blog. Você foi muito generoso.

Respondendo a pergunta, eu entendo o cenário não apenas como uma parte do romance no qual a ação se desenvolve, mas como um personagem em si. Não sei se é uma abordagem muito original da minha parte, mas é a ideia fundamental e foi com base nela que as epígrafes foram concebidas. É, entretanto, a razão mais superficial, por assim dizer. Nesse sentido, acho que posso afirmar que o recurso foi utilizado com o objetivo de situar o leitor no ambiente sujo, degradado, cínico, mesquinho e calhorda da história, sem que, para isso, eu precisasse me estender no desenvolvimento dos outros personagens pelo narrador.

Aqueles canalhas são o que são e, nas epígrafes, mostram bem por que são.

Seja como for, o entendimento do cenário como personagem também está imbuído de uma razão filosófica mais profunda e que estaria arruinada se eu a explicasse aqui em detalhes. Perceba que eu me refiro à razão, não exatamente ao romance. É que, embora este, em larga medida, dependa daquela, seria uma pena privar o leitor da possibilidade de aproveitar esta oportunidade. Para compreendê-la, e aqui está a intenção do autor, o leitor deve apreciar a obra. Talvez encontre lá muito mais do que eu, o autor, entendo que esteja dito.

É este o meu convite.

Com efeito, as epígrafes cumprem essa tarefa com perfeição. Excelente artimanha literária. Como trickster existencial que sou, e genjutsushi amador, fingirei que não houve xeque-mate e prolongarei um pouco mais nossa entrevista. Como seu comentário anterior deixou claro, a ambientação da trama é sórdida e alguns personagens - Sérgio e Magno, particularmente - chegam a ser mais que canalhas. No entanto, de tanta sordidez, você tira, como um mago do chapéu, coisas sublimes - como o leitor terá o prazer de descobrir. Essa mistura entre o sórdido e o sublime, na medida certa, era o que almejava Victor Hugo em sua prosa e sua dramaturgia - bem como, evidentemente, em sua obra poética. Hugo, em boa medida, encontrou esse caminho pelas vias da dor e da compaixão. Como você diria que esse processo se dá para você? Como você olha para tanta coisa vil e mesquinha e encontra ali matéria para a busca do excelso?

Como estamos usando metáforas do xadrez, essa pergunta se assemelha ao famoso, e poderoso, "Cavalo do Kasparov". No xadrez, fala-se em temas: o "garfo" (quando o adversário ataca duas peças ao mesmo tempo), as colunas abertas para as torres, o xeque duplo, o xeque a descoberto, etc. Eu acho que, quanto ao livro e ao processo para escrevê-lo, trata-se do tema do "alívio". Como te falei antes, minhas ideias foram sofrendo modificações muito profundas com o passar dos anos. Eu costumava me definir como um otimista, um "entusiasta da raça humana". Pobre de mim... Passei, porém, e por razões que não consigo compreender, tampouco lhe explicar, a dedicar muita atenção aos vícios, à maldade. Só que é preciso levar a sério a lição de Nietzsche e tomar cuidado com isso. Então, voltando ao tema do "alívio", a ideia foi, primeiro, pintar o cenário e seus atores com as piores e, entendo, as mais realistas tintas possíveis para poder, depois, sentir o prazer visceral de respirar ar puro. E acho que é um processo natural, na verdade. É preciso ver a beleza do devir, a impermanência do mal, ou, pelo menos, acreditar nisso. Porque, no fundo, se você pensar bem, talvez concorde comigo que o pessimista não passa de um otimista amargo.

Muito bem. Me dou por vencido e convencido. Agradeço a agradável entrevista. Que tal um aforismo para encerrar a conversa?

Quem agradece sou eu, Luiz. Gostaria de dizer algumas palavras finais e que se relacionam com o aforismo que você me pediu. É que boa parte de Herdeiros, como o leitor talvez perceba, é sobre o conhecimento. No sentido mais amplo possível. E o conhecimento tem como condições o que percebemos e o que sabemos de antemão, ainda que este saber também tenha dependido, antes, da percepção. É, em última análise, algo que se fundamenta na dualidade do “ser”: sujeito e objeto. Isso em um sentido hegeliano, por assim dizer. Não pretendo, com isso, antecipar nada, embora, provavelmente esteja fracassando miseravelmente neste propósito. Espero que o leitor me compreenda e me perdoe.

Dito isso, encerro com o seguinte aforismo: “é na escuridão que mais claramente vemos”.



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